Sarte é o inferno são os outros. Os habitantes de Königsberg acertavam os relógios por Kant – isto dá logo uma ideia do género de menino que ele era. Só conseguia pensar racionalmente, por universais. Tudo o que não era universal, para ele, era como se fosse. Já Proust é a madalena e a sensualidade da memória. Longos parágrafos sonhadores com muitas orações subordinadas, não sei se ainda se diz assim, às vezes é o diabo para perceber a que são elas subordinadas. Tias excêntricas. Um amor mais ou menos anormal pela mãe. Highlights ( licht, licht, mehr licht!) de um universo, é o que se leva desta vida. Tchekov é vamos para Moscovo e seus derivados. Kafkianas por antonomásia são as repartições de finanças que têm senhas ordenadas de A a J, de que apenas há duas letras, de cujas letras não há senhas, porque os dois funcionários que não estão de férias podem fazer apenas o que podem fazer; se esses contribuintes aí sentados fossem crianças, chicoteadas por madrastas grimmescas, perdidas em florestas perraultianas, e merendassem morangos com natas à la Rabelais, aí seria Condessa de Ségur; e se tudo isso se passasse num bairro castiço de Buenos Aires, as crianças fossem furtivas sombras de homens suados e velhacos em virtude de desejos oblíquos, com reflexos de lâminas e cantos dengosos, seria Borges. Tudo isto, mas num poço sem fundo, com uma lâmina de aço gigantesca suspensa acima do corpo, temos Poe. Se cegos à esquina pedem esmola e não cantam milongas obsessivamente é Victor Hugo, é Fialho d´Almeida, a não ser que o plano seja fixo, e é Oliveira. Não dou importância ao pormenor que me há-de perder (o stress, por exemplo) e vivo um fenómeno tipicamente kleisteano. Apanho um autocarro que me leva para um cenário de guerra por engano, quando lá chego e penso “estou perdida!”, não, a paz é declarada, exulto, mas há um atirador furtivo que assesta sobre mim o cano da espingarda… Kleist puro. Continuando no tema autocarros: uma pessoa faz um imenso discurso sobre a esperança a outra que a ouve até ao fim e sai da sala, empolgada, com toda a sua vida pela frente. Vai tão feliz que é atropelada por um autocarro. Ora isto já não é Kleist. É Schopenhauer? Seria, se o Universo continuasse impávido. Mas como o público se ri (nervos, provavelmente) é a comédia adolescente dos Monty Python. O atropelamento por autocarro é traço grosso e quando acontece dá o desconforto do Livro de Job, o de um sentido de humor divino abaixo das suas Dignidades; aliás, qualquer vida interrompida no instante nos faz temer pelo sentido generalizado das coisas; o mais que se tira dela é somos pó, não somos nada, carpe diem, etc. – o que é obviamente outro tema. Porque se continua a ligar somos pó a carpe diem é o que nunca entenderei. Agora Shakespeare. Ena pá, Shakespeare! É reinos por cavalos e loucos por charnecas. Na minha caneca das tisanas vem a seguinte citação: “One touch of Nature makes the whole world kin”, ao lado de um coelhinho à la Dürer, acolitado de folhas de ácer e um cogumelo com bom aspecto (venenoso? não venenoso?). Posso em minha defesa alegar que não me importa em nada a literatura de caneca, nem de T-shirt, nem as tatuagens que dão lições de vida, mas a citação era familiar, embora não o fosse o sentido eco-ecuménico em que ali era usada. É Shakespeare, é Troilo e Créssida, é Ulisses a manobrar Aquiles na Cena III do Acto III. Se se lembram, o que ele quer dizer, se é que podemos sabê-lo, tira-se pelo contexto. Os homens são todos iguais nisto, é que se interessam pelo que é novo e inédito, esquecendo os feitos e os heróis do passado. São uns malvados, ingratos e voláteis, é essa a sua natureza. Na caneca, ao invés, essa Natureza benigna que nos faz irmãos de coelhos&cogumelos é tomada fora de contexto como a nossa parte melhor. Para caneca, não está mal. E também é Shakespeare. 

Conversa de Mesa

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