Há qualquer coisa de arrepiante e sinistro na publicidade, como se tudo aquilo existisse num universo paralelo, impalpável e, no entanto, material. Mas este cartaz é apenas monstruoso: numa sala comum, uma família diverte-se em conjunto ao serão. A menina ri-se para o tablet, o pequenito entusiasma-se com o futebol na televisão, a mãe sorri ao computador e o pai – que já podia muito bem ter dado à sola - , no canto mais remoto do sofá,  dá ao telemóvel um riso maroto.  O pêlo eriça-se nos braços, os bocados do cérebro encarregados da nossa parte crítica e emotiva batem sinapses como loucos. Mas, pouco depois, o realismo instala-se. Não será isto melhor do que jogar à bisca? À soturna bisca? Não será melhor do que ouvir os cônjuges em discussão por falta de outra diversão? Pergunto, é só. Mas a questão não é moral. É cultural. Ficaríamos mais em paz se todos eles estivessem, cada um de per se, com o focinho enfronhado num livro? Num livro? Que é como quem diz num romance, num poema, numa historieta inventada, numa ficção? No instrumento mais escapista e anti-social que alguma vez se inventou? Tão escapista que tiveram de lhe andar à cata de virtudes cognitivas competitivas ou nem a alma se lhe aproveitava! Vivemos do hábito, é o que é.

Porque estava a ver ted talks atrás de ted talks e o nível de imbecilidade dos ted talkers ia fermentando e crescendo a olhos vistos até ir dar, por uma inevitabilidade qualquer da sua arquitectura, às inspirational ted talks. Ora eu tenho um ódio vesgo ao inspirational.

image1.jpg
 

Eu e o inspirational

O inspirational é o lúmpen da banha da cobra; é a religião sem transcendência; a doutrinação pela superstição; o amor do obscuro aspirativo em nós; a manipulação das partes moles do carácter; a instauração da irracionalidade; e por aí fora. Este ted talk durava só dez minutos, graças a Deus, e a rapariga era self employed (sonho de uma vida). Com sonhos assim, só não é feliz quem não quer. Ela queria que nos tornássemos mais felizes através do desenho. O nosso cérebro diz ela que percebe melhor quando se lhe faz um desenho. Quando me falam no “nosso cérebro” eu vejo o laboratório do Dr. Caligari (não o gabinete do doutor, mas o seu laboratório) onde se alinham frascos de aleijões, fetos abortados, um cérebro em formol. Esse cérebro em formol é o que eu vejo. Somos nós de um lado e o “nosso cérebro” do outro. Nós temos de lidar com o nosso cérebro, temos de saber iludir e enganar o nosso cérebro, temos de saber domesticar o nosso cérebro. O nosso cérebro é um animal de circo. O nosso cérebro tem lá os seus caprichos que ou se arrastam desde a noite dos tempos e não há nada a fazer ou são adaptativos e/ou teleológicos e também não há nada a fazer. A admirável plasticidade do nosso cérebro é afinal a de um emplastro passadista com ideias fixas. Para esta rapariga, portanto, para sermos mais felizes temos de fazer um desenho de como queremos ser daqui a, digamos, dois anos que é para o “nosso cérebro” ver o desenho e perceber, ah! deve ser isto que a dona quer. O nosso cérebro é o Rantanplan dos Dalton. Tira pelo sentido. Desenhamos a nossa vida daqui a dois anos e depois é dar três passos: visualizar, acreditar e pôr tudo a mexer. A rapariga desenhou, é verdade, mas o que me tocou (ou tocou o “meu cérebro”) foi a atenção fixa do público. Havia mesmo quem tirasse notas. Nos ted talks o público toma notas quando fala o Nobel ou a miúda dos desenhos da felicidade em prospecto.    É o facto contextual que importa: está sentado a ouvir alguém que está de pé a falar. O facto de estar de pé a falar leva a que se tire notas do que está a dizer. 

Podeis, portanto, calcular a minha surpresa, quando o meu cérebro se pôs a querer desenhar a nossa vida daqui a dois anos. Para ele, estaremos no Tahiti, a surfar, numa boa; mas não sei surfar, nem tenho força. O meu cérebro quer lá saber, o sonho dele é que vale. Tive de pesquisar, parece que no Thaiti não se surfa, apenas no Hawaii. O meu cérebro achou bem, desde que seja no Pacífico. Com aquelas carradas de plástico no oceano, perguntei? O tédio de uma água perfeita e permanentemente azul turquesa? E anémonas cortantes, peixes venenosos, alforrecas mortíferas, embora muito belas? Mas ele não quer saber, desenhou a nossa vida daqui a dois anos numa ilha do Pacífico. Não se pode surfar mais perto, ali na Caparica? Não se pode, a água está fria. E será então assim a nossa vida:

image2.jpg
 

Eu e o meu cérebro no Pacífico

Agora vamos pesquisar as ted talks sobre as vitaminas. Que é para irmos bem vitaminados para as ilhas do Pacífico, porque o meu cérebro percebe (não é parvo, longe disso) que nas ilhas isoladas do Pacífico há uma falta milenar de nutrientes. 

Conversa de Mesa

Partilhe:
Facebook, Twitter, Google+.
Leia depois:

Kindle