Ninguém se espanta se a rapariga, nos anos sessenta, acorda perfeitamente penteada e maquiada depois de uma noite de amor. Ninguém repara se o herói que se fartou de levar na tromba ainda tem a popa no sítio, nem se vislumbra nela  traço da agressão. Mas a mala com que a mesma rapariga sai de casa para iniciar uma vida livre, porque está ela tão leve? Raramente na vida da ficção em imagens se vê pesada uma mala de viagem. Nem ao emigrante, passando a salto a fronteira, nos parece que lhe pesa. A mala, nos filmes, é leve; no palco, leve. Na vida, não.

Abre-se excepção à leveza da mala nas comédias em que a mala tem rodas e é pesada e implicante, para que das duas uma, ou alguém ajude, ou alguém tropece, mas esse alguém é normalmente o rapaz da rapariga e isso constitui o início da história. A mala ou é técnica da intriga e aí pesa, ou é adereço e atira-se de uma penada para qualquer lado. Sempre me fez confusão esta coisa de uma mala que se ginga para dentro da bagageira como se nada fosse; como se ela não levasse dentro as pedras do passado, não sinalizasse um enigma histórico quanto ao futuro dessas pedras.

Há, talvez, uma explicação lógica. Quem parte, no cinema dito naturalista (como adverte a Wiki,  não confundir com “naturismo” e acrescento eu, sobretudo, não confundir “naturismo” com “nudismo”) quem parte, dizia, é pobre por inerência. Não tem muito de seu. Daí a leveza da mala. Então, para quê a mala, continente atravancador para nenhum conteúdo? Porque não a honesta trouxa com um pente, um canivete, duas pagelas, um naco de broa e, digamos, um coto de vela? 

Foi com este problema em mente que revi La Ragazza con La Valigia (1960) do cineasta Valerio Zurlini, que havia de fazer em 1976  Il Deserto dei Tartari, baseado numa história de Buzzati. La Ragazza con la Valigia é uma esplendorosa e pungente Claudia Cardinale e o rapaz a iniciar o Jacques Perrin imberbe e puro. Tentem lá cortar os adjectivos à Claudia Cardinale e boa sorte com isso. A mala da ragazza é a mala de couro dos viajantes pobres daqueles tempos, um pouco batida das andanças. Num dos primeiros planos do filme vemos a mala na bagageira de um descapotável de sedutor e o sedutor a querer tirá-la e deixá-la (e à rapariga) no meio de lado nenhum; em seguida, o abandono da mala efectiva-se (e o abandono da rapariga); revemos a mala quando a rapariga procura o sedutor no seu palazzo; rejeitada, a rapariga carrega a mala, que depois passa para as mãos do inocente irmão do sedutor, o jovem Lorenzo. Nesta passagem é que nós percebemos, pelo quase imperceptível desequilíbrio do rapaz, que a mala é pesada, e que é ele quem vai carregá-la até à cidade. Também é ele que carregará, com a mala, a culpa que o irmão não quis aceitar. Da mala, no dia seguinte – e assim se explica, em parte, o peso - surge um ferro de engomar de viagem que a rapariga quer vender ao jovem, de modo a ter com que pagar o quarto da pensão. Mas é o jovem que não tem com que pagá-lo, ademais a rapariga num assomo de nobreza, deixa de lho querer vender. O rapaz arranja dinheiro e acaba por transportá-las – rapariga e respectiva mala, agora já de táxi, para um hotel decente ; aí, o porteiro do hotel experimenta também o peso da mala. E daqui em diante não há mala. Nunca mais se vê a mala. O padre alude à mala na frase: “Pegue na sua mala e volte para donde veio”. Sim, mas onde pára a mala? 

Procuramos concentrar-nos no sac à main da rapariga já que, em termos de bagagem, não temos muito mais a que nos agarrar. Este saco da rapariga é de um mau gosto dificilmente ultrapassável, uma espécie (não vejo de momento outro símile) de prato de panquecas de que pende uma borla de reposteiro. Vá-se a mala, fique-nos o saco. Este saco acaba por ser substituído, e muito a propósito, no momento em que a rapariga está a ser reinventada pelo jovem, que rouba dinheiro a uma tia para vestir a rapariga, justamente, de tia, por uma carteira de bom corte; logo substituída, no fracasso da reinvenção, pelo sac à main da borla, cujo serve, na única cena de murro, para a rapariga defender o rapaz, batendo com ele na cabeça do promotor-corruptor. E também desaparece o sac à main. Na penúltima magnífica cena na praia não há bagagem, os amantes encontram-se finalmente na impossibilidade do seu amor (que é também a realização de que essa possibilidade existiu), e o mais que temos é um lenço branco do rapaz, com que a rapariga lhe trata as feridas do combate contra o corruptor. Concentradíssima nesta questão particular de malas e de sacs à main escapou-se-me a visão panorâmica. Não percebi o final e ao que parece não se consegue perceber bem uma história a que nos escapa o fim. Na última cena, a rapariga não tem mala, não tem saco, apenas carrega um envelope com umas notas deixadas pelo rapaz, em vez da prometida carta de amor. O comboio veio e foi. A rapariga está triste e decepcionada. Eu, perplexa. Depois explicaram-me o final. Fez sentido. Percebi tudo. Esqueci logo. Diz-se que Flaubert dizia que “le bon Dieu est dans le détail”. Mas não está. Também não está.

Conversa de Mesa

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