COMO CITAR:

Rodrigues, Telmo. «Mike Houghton, I've Always Kept a Unicorn: The Biography of Sandy Denny». Forma de Vida, 2015. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0042.



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0042

Telmo Rodrigues

Quando há uns anos começaram a circular rumores sobre uma nova biografia de Sandy Denny, os fãs apressaram-se a louvar as boas notícias nas redes sociais e em fóruns da internet dedicados à cantora; o motivo do entusiasmo não era a ausência de material publicado sobre Denny, mas o facto de a biografia mais bem-sucedida comercialmente ser a de Clinton Heylin, No More Sad Refrains (Helter Skelter, 2002).

Heylin, conhecido pela biografia de Bob Dylan (Behind the Shades: The 20th Anniversary Edition. Faber & Faber, 2011), é um escritor agressivo que sustenta o trabalho de investigação com ideias fortes sobre o alvo da sua atenção, criando por vezes ligações polémicas entre o trabalho e a vida privada dos biografados. Essa agressividade está completamente evidente na biografia de Denny que escreveu, onde não evitou abordar os problemas da cantora com o álcool e vários tipos de drogas; além disso, a personalidade controversa e os problemas de auto-estima de Denny, sobretudo a crescente fobia ao palco, foram explorados pormenorizadamente. Para muitos fãs, colegas e amigos da cantora, o maior problema foi Heylin não se ter coibido de analisar a carreira de Denny à luz da vida privada, assumindo ser demonstrável que a falta de sucesso enquanto cantora esteve ligada a um conjunto de más decisões, incluindo a associação artística e pessoal com o músico australiano Trevor Lucas, com quem acabaria por casar, e que, segundo Heylin, não só era uma figura menor no mundo musical como também teria sido um dos responsáveis por Denny nunca se ter afirmado artisticamente (além de colaborarem nos Fotheringay, Trevor foi produtor de Denny).

A biografia de Nick Houghton seria, portanto, correctiva relativamente à de Heylin e reporia, assim se esperava, a verdade acerca desta cantora que muitos músicos identificam como a melhor voz da música britânica das últimas décadas. Esse aspecto correctivo está, de facto, presente e nota-se não num tom acintoso, mas antes no que poderia ser descrito como tom democrático: todos têm direito a expressar a sua opinião sobre Denny e os momentos polémicos da sua vida são explicados e interpretados pelas numerosas testemunhas que Houghton entrevistou pessoalmente (ou que citou a partir de entrevistas recuperadas no seu trabalho de investigação). A democracia nesta biografia vai tão longe que Houghton utiliza a descrição que Heylin fez dos últimos dias de Denny na sua obra de 2002, assumindo-a como a mais fiável, sem pôr em causa, como muitos puseram, as implicações que Heylin dela retirava. A morte de Denny foi atribuída a uma hemorragia cerebral, provavelmente derivada de uma queda. Heylin questionou o papel dos pais de Denny, que se teriam recusado a ir com a filha ao hospital depois de uma queda na casa que tinham na Cornualha (semanas antes da morte de Denny), por vergonha de serem vistos com uma bêbada; questionou também o papel de Trevor, uma vez que este tinha abandonado a mulher e, sem que ela soubesse, levado a filha ainda bebé para a Austrália (várias testemunhas defenderam Trevor acusando Denny de ser uma mãe irresponsável, algo que nenhum dos biógrafos deixa de referir).

Mas a descrição do último fim-de-semana de vida de Denny, durante o qual ela se refugiou em casa da amiga Miranda Ward, e com que esta biografia termina, marca um dos momentos mais fracos do livro de Houghton, que ignora os pormenores para seguir apenas a descrição geral que Heylin já havia feito, juntando algumas opiniões recolhidas mais recentemente, mas que não acrescentam nada. A debilidade do final encontra paralelo nos primeiros capítulos, onde Houghton lista as considerações de testemunhas e conhecidos, deixando, democraticamente, que opiniões contraditórias coabitem sem que sobre elas exerça qualquer pressão analítica. Nesses capítulos iniciais que descrevem a vida de Denny até chegar aos palcos de pubs londrinos em que se cantava música tradicional, todos os que por instantes tiveram oportunidade de partilhar alguns momentos com a cantora têm direito a opinião, diligentemente registada por Houghton. Poderíamos concordar que a possibilidade de ter vários testemunhos díspares contribuiria para uma imagem mais completa de Denny, mas o resultado desta lista de citações, além da cacofonia democrática, torna-se fastidioso e, sem os detalhes sobre a vida pessoal, ficamos apenas com um esboço da vida da biografada.

A presença do autor nota-se pela primeira vez quando analisa a qualidade das demos que Denny gravou em casa em 1966 (pp. 64-66), demonstrando aí que a mais-valia deste volume depende dos conhecimentos técnicos do autor sobre música e não das ideias que tem sobre a vida da biografada (além de escrever para revistas de música, Houghton representou várias bandas enquanto funcionário da Warner). A partir do momento em que chegamos à carreira de Denny, sobretudo depois dessas primeiras gravações, Houghton recupera poder sobre o que está a escrever, revelando um domínio extraordinário sobre o meio musical britânico. O autor segue a carreira de Denny de gravação em gravação: a artista começa a gravar com os Strawbs, antes de chegar a vocalista dos Fairport Convention; depois de deixar a banda, adia o início da carreira a solo com a entrada nos Fotheringay, a banda do futuro marido. Depois dos reveses comerciais dos primeiros discos a solo, Denny regressa aos Fairport Convention naquela que será, segundo Houghton, a decisão mais polémica, com consequências graves na sua vida artística e pessoal, nomeadamente no que diz respeito à dependência de álcool e cocaína. Nesse momento, como noutros, são tratadas com mais pormenor questões relacionadas com as gravações e a logística das digressões, ou com o modo como os vários estilos e gostos musicais de cada elemento dos Fairport contribuem para as canções da banda. No entanto, porque Houghton também considera que a decisão de Denny é um erro, estes aspectos mais mundanos são reavaliados e, nas páginas que relatam esse período, o livro torna-se genuinamente interessante.

 Exceptuando essa secção, a vida de Denny surge como pretexto e é apenas a âncora à volta da qual gira um conjunto de personagens que de alguma maneira foram intervenientes no meio musical sobre o qual Houghton concentra a atenção. Gerry Conway, baterista que trabalhou diversas vezes com Denny, especialmente nos Fotheringay, afirma a certa altura que a vida artística da cantora estava «enleada» com a sua vida privada de tal forma que aquilo que afectava uma, afectava necessariamente a outra (p. 378). Ora, nesta biografia parte-se do princípio de que, sendo isso verdade, basta concentrar a atenção num dos aspectos para que o outro seja compreendido. Houghton comete o erro de assumir, por exemplo, que as letras de Denny são sempre óbvias acerca do que se passava na sua vida privada, supondo que a indicação de um tema, ou a nomeação do sujeito sobre quem a canção foi escrita, são suficientes para que os sentimentos que a canção articula fiquem completamente explícitos. No entanto, as metáforas de Denny são muitas vezes excessivamente crípticas para que as possamos compreender sem nenhum tipo de explicação; o erro maior consiste em imaginar que podemos depreender os pormenores da vida privada através daquilo que a canção nos faz sentir.

A dificuldade em lidar com a vertente pessoal da vida de Denny parece resultar de uma espécie de pudor, o que poderia ser uma posição eticamente admirável. Neste caso, contudo, passa apenas por debilidade de um autor que assume como verdades incontornáveis lugares-comuns tão gastos quanto falaciosos: «As contradições na persona de Sandy são inerentes ao cantor-compositor; o compositor pode ser intensamente reservado mas o cantor – tanto em cima como fora do palco – é uma figura pública» (p. 257). O interesse em Denny, ou em qualquer outra pessoa, consiste precisamente na maneira em como este tipo de lugares-comuns são postos em causa: pessoas que confirmam lugares-comuns não são, normalmente, pessoas muito interessantes. Abordar a vida privada não depende necessariamente de uma abordagem agressiva ou indecorosa: decorre apenas da posição antidemocrática de que um autor deve ser responsável por tomar decisões e escolher os detalhes que iluminam essa vida, sabendo de antemão que não há verdades sobre pessoas, apenas descrições mais, ou menos, adequadas.

REFERÊNCIA:

Houghton, Mike. I've Always Kept a Unicorn: The Biography of Sandy Denny. Londres: Faber & Faber, 2015.