COMO CITAR:

Ferraria, Ana. «Italo Calvino, O Visconde Cortado ao Meio». Forma de Vida, 2015. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0059.



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2015.0059

Ana Ferraria

Escrita durante as décadas de 1950 e 1960, a trilogia Os Nossos Antepassados (I Nostri Antenati), de Italo Calvino (1923-1985), reúne histórias sobre a realização de sonhos humanos e pretende desenhar “uma árvore genealógica dos antepassados do homem contemporâneo”, antepassados, esses, que juntam em si características de todas as pessoas comuns que o leitor vê à sua volta. De acordo com Italo Calvino, o homem contemporâneo– dividido, mutilado, incompleto e inimigo de si mesmo – havia perdido a sua harmonia clássica, mas ganhara, em compensação, uma complexidade moderna, tornando-se, portanto, um tema literário por excelência.

O Visconde Cortado ao Meio (Il Visconte Dimezzato), primeiro volume (1951)  desta trilogia que inclui também os títulos O Cavaleiro Inexistente e O Barão Trepador, segue a história do visconde Medardo de Terralba, desde a sua partida para uma guerra santa, onde é ferido por uma bala de canhão que o corta longitudinalmente em dois, até ao momento em que, regressadas milagrosamente as suas duas partes separadas na guerra, estas se voltam a unir e a reconstruir um ser humano completo. E é precisamente de completude que fala esta fábula moderna. Nos dois primeiros capítulos, é-nos apresentado um jovem visconde, chegado à Boémia para, ao serviço do imperador católico (austríaco, supõe-se), combater os muçulmanos. Incauto e destemido, entusiasmado e inexperiente, o visconde coloca-se diante da boca de fogo de um canhão (p. 21). Apesar de perder um braço, uma perna, um olho, uma orelha, metade do peito e do abdómen, os médicos de campanha conseguem salvá-lo e o senhor Medardo regressa ao seu castelo italiano, onde os súbditos o esperam, curiosos (p. 25).

A curiosidade não é tão grande como a surpresa: além de regressar apenas o lado direito do visconde, parece que também apenas o lado mau do seu espírito retorna. Por condenar vários homens à morte, por dar origem ao episódio que irá trazer a morte a seu pai e por adquirir o hábito de cortar a meio animais e plantas, Medardo ganha fama de Maligno. A justificação para esta compulsão é, não obstante, mais racional do que emocional: “Pudesse eu assim dividir ao meio todas as coisas inteiras”, declara, “pudesse assim tudo libertar-se da sua absurda e ignorante inteireza”. Quando era inteiro, o visconde via apenas a superfície das coisas; agora que se encontrava dividido, compreendia a natureza de uma forma mais profunda e preciosa, visto a beleza e a sapiência habitarem apenas aquilo que não está inteiro (p. 76). Na perspectiva desta personagem, os cérebros inteiros possuem uma inteligência vulgar, talvez por se dispersarem por conteúdos e formas distintas, o que os impossibilita de se aperfeiçoarem em algo concreto. A sugestão do visconde implica que a solução para a busca de unidade do homemmoderno poderá ser assumir e forçar a dispersão a que está sujeito; escolhendo e submetendo-se à metade que lhe compete, em detrimento da metade que sobra.

O temor que os habitantes das imediações de Terralba sentem em relação ao visconde sofre uma estranha inflexão quando se lhe descobrem acções benévolas. O mistério não tarda a resolver-se – a metade esquerda e bondosa, julgada perdida na guerra, regressara também à terra. O leitor pressente imediatamente que, se o meio-visconde Maligno inspirara ódio, o outro meio-visconde irá despertar o tédio e a apreensão (p. 115). À semelhança de que se passa com Cândido, de Voltaire, a generosidade do Bom acarreta frequentemente angústia e mesmo a destruição alheia (p. 133). Compreende-se, assim, que o problema não está na metade – boa ou má – a que o homem se submete, mas no facto de ser sempre insuficiente viver-se pela metade.

A lição de moral – se fizermos questão de encontrar uma – é natural: o homem contemporâneo, feliz ou pelo menos livre, é aquele que se consegue manter inteiro: um homem que, nas palavras do narrador deste conto, não é “nem mau nem bom, mas antes uma combinação de bondade e de maldade”, e que, além disso, possui a sabedoria adquirida pela experiência de ser, à vez – ou, no caso do visconde, simultaneamente – uma e outra metades do seu ser (p. 151). Este despertar de consciência para a incompletude humana e a consequente representação da sua busca pela unidade perdida é uma representação já comum do homem contemporâneo. Da mesma forma que um pintor utilizaria um contraste cromático para evidenciar esta nova alienação, explica Calvino, o escritor utiliza um novo contraste narrativo para salientar o que lhe interessa: neste caso, o dimidiamento dos homens. Medardo torna-se a representação por excelência da dicotomia do homem moderno, que, quando inteiro não se sente uno, por não ter capacidade para perceber e contemplar toda a natureza e, quando dividido, acaba por perder as características que o tornam um ser social, capaz de agir de forma diversa e ponderada.

O estilo de Calvino torna breve a leitura deste pequeno livro. A cadência é rápida e ritmada e a acção, que supostamente tem início no século XVII, durante a guerra entre o império austríaco e o otomano (apesar de esta nunca se ter travado na Boémia), actualiza, no século XX, personagens e episódios daquele século e utiliza a história do visconde – o homem pré-contemporâneo ostensivamente dividido em dois – para estilizar práticas sociais passadas e presentes. Nas vizinhanças da vila de Terralba existe uma aldeia de leprosos – que, como era habitual durante a Idade Média, viviam isolados da sociedade, ocupados com afazeres pouco pragmáticos como a música e o sexo (p. 94) –, assim como uma aldeia de huguenotes, fugidos da França, onde, na segunda metade do século XVI, se levara a cabo uma guerra santa contra o protestantismo. Ao contrário dos leprosos, os huguenotes trabalham de sol a sol, professando, com cuidado, uma religião que foram esquecendo, com os anos e as fugas (p. 62). A inclusão destes diversos grupos sociais, mais do que para contextualizar a época, serve, em Calvino, para expiar as faltas humanas que abundam, ainda, em meados do século XX. Em 1951, militante do partido comunista italiano, o jovem escritor enseja enunciar, senão criticar, os males que continuam a enfraquecer a sociedade dos homens: a ingenuidade, o utilitarismo, a ociosidade, o fanatismo, a ganância, a avareza, a intolerância, fazendo assim, de uma fábula inverosímil, uma obra de características neo-realistas.

A capacidade narrativa de Calvino é já evidente neste conto de juventude, em que as acções se sucedem de forma rápida e imprevisível, aligeirando o conteúdo do relato e imprimindo-lhe um tom jocoso e jovial. O narrador, sobrinho bastardo do visconde, conta-nos, com uma precisão que roça a omnisciência, os episódios passados durante a guerra, assim como os acontecimentos que se desenrolam na sua vila, alguns dos quais a que tem acesso privilegiado e outros que adivinha ou que lhe terão sido relatados a posteriori. A acção parece desenrolar-se no decurso de alguns anos, dada a progressão da idade do narrador. É chegado à adolescência, explica, que se apercebe que a busca da inteireza das coisas lhe traz tristeza e solidão (p. 152). Retoma-se, assim, o problema fulcral do livro: criança, lutava contra a incompletude do tio; prestes a concluir os anos de juventude, compreende que a tarefa da vida é a busca perpétua de algo que possa preencher um vazio que não se esvai. Escondido entre “as raízes descobertas das grandes árvores do bosque”,  imaginava e inventava personagense  “histórias intermináveis e fantásticas” (p. 152). Uma delas, supõe-se, é a história do visconde cortado ao meio.

Referências

Italo Calvino. 2008. Cercare chi e cosa in mezzo all’inferno non è inferno. Colloqui fiorentini. DIESSE.

REFERÊNCIA:

Calvino, Italo. O Visconde Cortado ao Meio. 1951. Trad. José M. Calafate. Lisboa: D. Quixote, 2015.