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Porque seria agradável capturar o eco daquelas discussões desesperadas, solenes e divertidas que enchiam de vida aqueles velhos tempos.

Joseph Conrad

 
 

Há nove anos, o autor teve oportunidade de redigir um testamento apressado. Uma vez que uma das provisões desse documento nomeava Joseph Conrad executor literário do autor, acabámos a discutir o problema das biografias literárias em geral e das nossas em particular. Chegámos muito rapidamente, como era nosso costume, a uma fórmula, ambos sentindo uma aversão desmedida pelo tipo comum de biografia oficial dos homens de letras que viveram, em geral, uma vida sem atribulações. Mas concordámos que, caso a vida de um escritor tivesse interesse para além da mera escrita à qual se dedicou, essa vida poderia facilmente ser tema de uma monografia. Nesses casos, deveria ser escrita por um artista e ser uma obra de arte. Escrever: «Joseph Conrad Kurzeniowski nasceu no dia tal, do ano tal, na cidade “Tal e Tal”, na Província de Kieff», e assim prosseguir, não levaria a uma descrição como aquela que este grande homem desejaria. Assim, aqui, na medida da qualidade outorgada, têm uma projecção de Joseph Conrad na maneira como este, aos poucos, se revelou a outro ser humano ao longo de muitos anos de grande intimidade. É dessa maneira que, gradualmente, Lord Jim aparece a Marlowe, ou que qualquer alma humana aparece gradualmente a outra alma humana. Isto porque, de acordo com a nossa maneira de ver a coisa, um romance deve ser a biografia de um homem ou de uma situação, e uma biografia, seja de um homem ou de uma situação, deve ser um romance, ambos sendo, se executados eficientemente, descrições de situações como aquelas que constituem as nossas vidas.

Isto é, portanto, um romance e não uma monografia; um retrato e não uma narração: se se vier a provar ter algum valor, uma obra de arte e não uma compilação. É conduzida exactamente ao longo das linhas por nós traçadas, tanto para o romance que é biografia como para a biografia que é romance. É a descrição de uma situação planeada, em primeiro lugar, para que vejam o sujeito no seu ambiente. Não contém qualquer tipo de documentação; para ela não foram pesquisadas quaisquer datas e até as citações, com excepção de duas, ficaram por verificar, tendo sido recuperadas da memória do autor. É a impressão do autor de um escritor que se declarou impressionista. Nos momentos em que se veio a verificar que a memória do autor falhou em relação a um detalhe por curiosidade investigado mais tarde, o autor deixou que a falha permanecesse na página; mas em relação à honestidade da impressão no seu todo, o autor acredita que nenhum homem poderia – ou se atreveria a – impugná-la. Foi isso que pediu Joseph Conrad: a tarefa foi cumprida com o mais pio escrúpulo. Porque algo humano era-lhe mais precioso que as riquezas das Índias.

 

Guermantes, Seine et Marne, Agosto.

Bruges, 5 de Outubro de 1924.

Ford Madox Ford


«C’EST TOI QUI DORS DANS L’OMBRE»ª

 

I

 

Era mais pequeno do que grande em altura; muito largo de ombros e de braço comprido; tez escura, com cabelo preto e uma barba preta aparada. Tinha os gestos de um francês que encolhe os ombros com frequência. Quando tínhamos deveras assegurado a sua atenção, colocava um monóculo no seu olho direito e perscrutava a nossa cara de muito perto, como um relojoeiro olha para o mecanismo de um relógio. Entrava numa sala de cabeça levantada, algo rígido e com ar insolente, fazendo um gesto semicircular com a cabeça. Neste movimento isolado tinha revelado para si próprio a sala e o seu conteúdo; a sua insolência devia-se à sua determinação em controlar aquela sala, não a subjugar os seus ocupantes, sendo a sua paixão principal a discriminação de pormenores para si mesmo.

Na Quinta de Pent, abaixo das South Downs, havia uma cozinha grande com um chão de tijolo ondulado. Neste chão sentava-se um grande número de gatos: eram necessários para controlar os ratos e conseguiam um pouco de leite pela manhã. Todas as manhãs, um pisco selvagem com o peito vermelho e o corpo verde-seco saltitava, ao invés de voar, pelo chão da cozinha, entre os gatos que esperavam. Os gatos afastavam o olhar, latejando as unhas embainhadas para dentro e para fora. O pisco saltitava através da passagem interior da cozinha, transversalmente pela sala de jantar baixa e assim pelas escadas do quarto acima. Quando a criada abria a porta do quarto, com o correio e o tabuleiro do chá, o pisco voava pelo quarto escuro e baixo e empoleirava-se num pente, espetado numa escova no tocador, à frente das janelas longas, baixas e chumbadas. Esperava por migalhas de pão e pedaços dos torrões de açúcar do tabuleiro de chá. Nunca tinha sido ensinado a meter-se nestas aventuras. Este pisco assistiu à abertura da primeira carta que o autor recebeu, há mais de um quarto de século, de Joseph Conrad. O pisco observou com o seu olhar atento a folha de papel azul acinzentado escrita com a letra grande, assaz ornamental… Mais tarde, afogou-se numa leiteira, o que retirou ao seu aspecto o ar de um visitante do além.

Por cima da enorme cozinha ficava o enorme Quarto dos Homens, onde os contratados da quinta se tinham acostumado a dormir. O acesso fazia-se por um escadote que se retirava à noite para que os contratados não matassem o agricultor ou fizessem pior à mulher dele. As janelas baixas deste quarto baixo eram chumbadas em forma de diamante, o vidro já fosco pelo verdete de muitos anos. Numa destas janelas estava riscado, sem dúvida a diamante, o nome «John Kemp» e o ano 1822. Conrad sempre contestou o nome «John Kemp» por não ser suficientemente aristocrático para o herói de Romance, que era neto de um conde, mas o autor gostava e assim permaneceu no livro.

Anos antes disto, passando os olhos pelas páginas da All the Year Round,ª de Dickens, à procura de gravuras de Ford Madox Brown, sobre quem escrevia uma biografia, o autor tinha-se deparado com uma descrição curta da versão oficial do julgamento de Aaron Smith. Tinha sido o último julgamento por pirataria a ter lugar no Old Bailey e o prisioneiro tinha sido absolvido. A história contada por ele no banco dos réus era suficientemente parecida com a história de Romance, tal como se encontra actualmente. Depois de ler os primeiros parágrafos ocorreu imediatamente ao autor: aqui estava, de facto, aquilo a que chamávamos um tema, lido com um certo tom como se a palavra estivesse em itálico. Isto porque alguns temas agarram-nos com uma força quase sobrenatural, como se alguma coisa aparecesse por trás da palavra impressa, escrita ou pronunciada, ou de dentro da aura de um incidente observado na vida real, nos agarrasse pelo pescoço e nos dissesse mesmo: «Trata-me». Assim, na penumbra da Sala de Leitura do Museu Britânico, enquanto fazia aquela primeira leitura, foi quase como se o espírito do lugar exclamasse: trata este tema. Se o fizeres, significará fortuna; se não o fizeres, uma vida inteira de azar. Trouxe fortuna.

O primeiro tratamento dessa história pelo autor era de uma ligeireza inimaginável. Era como o sussurro de um nonagenário e como se o autor se tivesse esforçado para que fosse como o sussurro de um nonagenário. Foi acabado mesmo antes de Conrad ter visitado o autor em Limpsfield pela primeira vez, por volta de 1898… A razão que terá levado o autor a escrever sobre piratas, só Deus sabe; ou a razão para que, tendo-se decidido a escrever sobre piratas, tenha sido sua ambição tratá-los como se fizessem parte de um manuscrito muito desbotado de uma tragédia grega! Mas era essa, com certeza, a sua ambição e, como se veio a provar, foi-lhe concedido que alcançasse a sua ambição. Cada frase tinha uma queda abrupta na cadência e cada parágrafo desvanecia-se. As últimas frases desse primeiro esboço eram: «Sobre as nossas cabeças um rouxinol» (fazia algo: «Vertia a sua alma», provavelmente, ou «Vertia a sua melodia no ar estival», a cadência pedindo, aqui, onze sílabas ª). «Como estávamos em Junho, cantava um tudo nada rouco»… O leitor observará que o autor já tinha, por esta altura, lido o seu Três Contos, da mesma maneira que as primeiras palavras do primeiro livro de Conrad estavam anotadas nas guardas e nas margens da Madame Bovary. As últimas cadências de «Herodíade» eram, então: «Et tous trois, ayant pris la tète de Jokanaan s’en allaient vers Galilé. Comme elle était très lourde, ils la portaient alternativement» *. No que à cadência diz respeito, as últimas frases eram exactamente um pastiche das precedentes. Em cada uma, a primeira frase contém dezanove sílabas; a última começa com «Como estávamos», e distingue-se pelos sons “u” de «June» e «lourd» e pelos sons “or” de «hoarse» e «portaient» ª. Tinha sido assim que, antes de o autor e Conrad se conhecerem, ambos haviam estudado o seu Flaubert…

Conrad apareceu à esquina da casa trazendo uma criança pequena; isso não foi um entrave à sua passada ligeiramente rígida e ao movimento semicircular da sua cabeça enquanto absorvia a estranha residência, as alfaces protegidas dos coelhos por uma rede de arame ou a vista imensa que se estendia à frente da pequena casa de campo. Estava acompanhado pelo Sr. Edward Garnett. Naquela época, o autor estava dominado por um daqueles achaques de entusiasmo pela agricultura que o têm subjugado de tempos a tempos, de tal forma que os escritores descritivos que o têm acompanhado vos têm dado uma imagem dele de uma alternância inquietante, entre o finório de Picadilly, de cartola, fraque e polaina, e o trabalhador rural extraordinariamente sujo. O Sr. Garnett vivia mais ou menos a um hectare, subindo a colina; o Sr. Conrad e a família estavam hospedados em Limpsfield Chart. Naqueles tempos, era ambição do Sr. Garnett aparentar-se com aquilo a que os franceses chamam «lézardé»: poderia ser um longo, longo lagarto, indistinguível, não fosse pelos óculos, das pedras monstruosas da sua residência cavernosa e troglodita. Vista da sua mansão, a pequena casa de campo de dois quartos do autor poderia parecer-se com um fragmento vulcânico deitado fora. O Sr. Garnett reprovava frequentemente o autor por usar frisa cinzenta-escura. Era a causa, dizia ele, de uma mancha no lado da colina de Limpsfield, em cujos tons nos deveríamos misturar. O autor estava absorto a realizar experiências sugeridas pelo Professor Gressent, da Sorbonne, em Paris. Tentava que dez alfaces crescessem onde antes tinham estado dez mil urtigas e estava a escrever artigos para a Outlook sobre o uso da batata enquanto extirpador de cardos, em areia. Hoje isto é aceite como boa prática agrícola.

Conrad não deixou qualquer impressão no autor. O Sr. Conrad era o escritor de Almayer’s Folly [A Insensatez de Almayer], um livro excelente do tipo romântico, mas demasiado próximo do estilo de Alphonse Daudet, alguém que o autor já tinha ultrapassado na escola, sabendo de cór, aos dezoito anos, as Cartas do Meu Moinho. Um escritor jovem e grandioso, na altura. Mas no que diz respeito a escritores ou artistas grandiosos, já na altura o autor en avait soupé,* embalado pelas provas de Rossetti, tendo Swinburne, Watts-Dunton, Hall Caine (Sir Qualquer-coisa Hall Caine) e todos os Pré-Rafaelitas entre os objectos mais comuns da sua paisagem. E o Sr. Garnett costumava acompanhar as Promessas maiores, uma a uma, para atiçar o autor como se ele fosse um leão sarnento. O autor rugia, sem dúvida. Foi assim que o Sr. Garnett acompanhou Stephen Crane, Conrad, Lord Ollivier, agora Ministro da Índia de Sua Majestade, a mulher do Secretário da Sociedade Fabiana, o Secretário da Sociedade Fabiana… Uma procissão inteira: precisamente como se eu fosse um leão sarnento numa colecção de animais itinerante. Ou, talvez, um homem no jardim zoológico! E o Sr. Garnett era quem atiçava, dizendo aos distintos que o autor possuía demasiada personalidade para vir a ter público… Foi o período mais deprimente de uma vida a que não faltam períodos deprimentes. 

Talvez o autor rugisse. Rugiu, naturalmente, nessa ocasião, mas certamente que sentiu aversão por Conrad como se sente aversão por aqueles que passam à frente da nossa jaula e nos atiçam. Mais tarde, subimos até ao relvado inclinado da residência do Sr. Garnett com algumas crianças. É precisamente desse momento que aparece ao autor uma memória real deste génio maravilhoso… Uma das crianças rastejou pelo relvado inclinado como os gatinhos recém-nascidos; por sua vez, outra, um pouco mais velha, com uma expressão atenta, avançou precisamente como um cul de jatte das nossas ruas de Paris, enquanto Conrad punha o monóculo no olho. Os dois punhos fincados no chão, uma perna curta esticada, a outra dobrada por baixo, loura e determinada, equilibrava-se sobre a relva com as mãos e passava o corpo entre os braços. Conrad atirou a cabeça para trás e riu-se; o monóculo caiu-lhe; pô-lo no olho outra vez e fitou a criança; atirou a cabeça para trás, rugiu e pronunciou palavras estranhas em francês marselhês… Logo a seguir, o Sr. Garnett asseverou ao Sr. Conrad, pela terceira vez, que o escritor tinha demasiada personalidade para os seus escritos virem a ter público. Era, obviamente, enorme lisonja…

O autor deixou, assim, Limpsfield e regressou à Quinta de Pent. Entre ele e Conrad caiu uma cortina pesada. Então, inesperadamente, chegou a carta a cuja leitura o pisco tinha assistido. O autor tinha de facto rugido em Limpsfield. Tinha-lhe contado, evidentemente, a história de John-Kemp-Aaron-Smith, pois Conrad pedia-lhe para considerar a possibilidade de uma colaboração nessa história – a qual, tinha-lhe dito o Sr. Garnett, tinha demasiada personalidade para vir a ter editora. Teria sido, de outra maneira, uma impertinência de Conrad. E Conrad nunca era impertinente. A sua educação, até para o merceeiro, era sempre oriental. 

A resposta do autor foi a óbvia, que era melhor Conrad vir e ver por ele próprio aquilo em que se estava a meter. E Conrad veio. Mas dessa vez Conrad veio… Ele era como o Sultão dos Crentes Verdadeiros a entrar num mercado de escravos. E, para o autor, assim permaneceu até à sua morte lamentável. Era um cavalheiro aventureiro que tinha navegado com Drake. Isabelino: era isso o que ele era. Têm-lhe chamado eslavo; têm-lhe chamado oriental; têm-lhe chamado romântico. Não foi nada disto excepto aparentemente, para o seu merceeiro; um homem tem de ter uma aparência para apresentar ao merceeiro ou a visitas vespertinas. Ele próprio era apenas Homem: homo europeaus sapiens, compatibilizado com o século XVI. Não havia nada no mundo que ele apreciasse mais do que chamuscar a barba do Rei de Espanha, tirando escrever um livro bom. Bem, conseguiu ludibriar os Holandeses na Malásia e escreveu os melhores livros do mundo.

Tinha uma égua velha extraordinária, com orelhas tão compridas que podia passar por uma mula. Chamava-se Nancy. E tinha um cabriolé preto de vime. E preocupava-se com estas coisas com a paixão acirrada de um homem: o que ele possuía tinha de estar impecável: rédeas, freio, cabeçada, ração… Lembro-me de uma vez, no pátio de uma estalagem em Winchelsea, um cavalariço miserável, enorme e gordo, com um metro e noventa, pálido; estava encostado a uma parede, a cara agitada, da cor da cola de parede. Disse, ofegante: «Já ouvi falar no leeão britânico mas protejam-me do urso ruuusso…», russo sendo o mais próximo de polaco que conseguiu. Conrad tinha estado a falar com ele: andava a roubar a ração de aveia da égua…

Com uma hipersensibilidade a impressões, o autor também se lembra de Conrad a atirar chávenas de chá para a lareira durante uma discussão sobre o direito divino dos reis – uma discussão com uma senhora que alegou, despreocupadamente, que Maria Antonieta era culpada de traição à França. O autor não ouviu a discussão toda porque estava a discorrer sobre a árvore genealógica da família Dering a um cavalheiro muito surdo. Nem sequer é plausível que Conrad tenha atirado as chávenas para a lareira uma vez que, à saída, a senhora disse: «Que homem encantador, o Sr. Conrad! Tenho de o ver mais vezes.»

Resumindo, era na paixão de Conrad que se reparava em primeiro lugar e era essa paixão que ele usava na sua escrita: o ar taciturno, os gestos largos e os olhos nos quais a luz era como o brilho de um vulcão. Isto não é escrita ornamental: a personalidade dele merece estes atributos. Também se reparava na sua cortesia. Depois da discussão com a senhora sobre a sucessão divina dos reis estava pálido, exausto, quase ofegante. Isso porque ele se lembrava de Maria Antonieta na Conciergerie, tão mal apresentada, tão carente dos filhos, tão pálida e desleixada que para ele ela era real e lembrava-se dela. Estava morta e uma senhora respeitável não devia, cruel e alegremente, fazer pouco de – e era disto que se tratava – rainhas mortas. Não pode valer tudo neste mundo cão: senhoras respeitáveis vestidas de seda não devem abocanhar a reputação de senhoras respeitáveis que estavam agora mortas e que outrora vestiram sedas ainda mais respeitáveis. Era a falta de imaginação da humanidade em geral que, sendo-lhe assim rapidamente resumida e apresentada, despertava nele tal paixão e lhe apelava a tal contenção. Espera-se que seja evidente que foi só para o autor que ficou a impressão de chávenas de chá a serem atiradas para a lareira. O autor viu Conrad igualmente exasperado quando o Bispo de Londres, regressando de São Petersburgo depois da Segunda-Feira Sangrenta, observou que os russos continuariam sempre a ter problemas até lhes ser incutido o gosto fogoso dos britânicos por jogos ao ar livre! Detestava russos, o seu coração estava mais com os Bonapartistas do que com os Bourbon, mas que se pronunciassem tolices sobre aqueles que sofrem enfurecia-o.

É típico de Conrad: é tão típico de Conrad que, passados cinco anos, quando ele e o autor chegaram aos últimos parágrafos de Romance, onde o autor tinha escrito: «Pois sofrer é a sina do homem», Conrad tenha acrescentado: «mas não um defeito inevitável ou desespero inútil que não tenha fim: sofrer a marca da humanidade que contém dentro da sua dor a esperança de felicidade, como uma jóia incrustada em ferro.» Ele tinha a marca da humanidade!

Assim, chegou à Pent para ver aquilo que o esperava. Veio por paixão – e para sofrer. O autor raramente viu tamanho sofrimento como o que Conrad suportou durante a leitura daquele primeiro esboço de Romance. Conrad esperava um drama com piratas cubanos, imenso e soturno, como Salammbô, com uma luz avermelhada, tendo lugar, como era o caso, num palco distante… Durante o primeiro e segundo capítulos – aqueles que se passavam na Quinta de Pent – manteve-se silencioso. Depois tornou-se silencioso. Pois ele parecia ter em si uma capacidade para aquilo que poderiam ser escalas de intensidade do seu silêncio. Não há dúvida de que escutou as primeiras páginas com um ou outro movimento para acender um cigarro, com um relaxamento dos membros ou uma mudança de posição na cadeira. Estes devem ter, gradualmente, cessado.

A saleta da Pent era uma divisão com uma viga a atravessar o centro do tecto baixo; rosas-da-china cor-de-rosa mostravam sempre botões insignificantes que espreitavam por cima dos parapeitos. Um celeiro enorme onde se guardavam as colheitas da paróquia, com um telhado grande de colmo, escurecido pelo musgo, ocupava a vista toda se nos sentássemos à lareira; ocasionalmente via-se um rato avançando meditativamente nessa superfície. Se nos aproximássemos da janela víamos um relvado estreito a estender-se até um muro de tijolo baixo, a seguir ao qual o nível descia até uma eira grande, normalmente coberta com palha e ocupada, frequentemente, por um ou dois bois. Conrad e o autor plantaram uma laranjeira, germinada de um caroço, debaixo da parede norte deste jardim estreito. Ainda estava viva em 1917, crescendo até à cimalha da parede baixa, local onde o seu desenvolvimento era travado pelo vento norte. Era uma divisão silenciosa e simples.

O autor sentava-se na cadeira do avô, de costas para a janela, ao lado da lareira, lendo, o manuscrito levantado à luz; Conrad sentava-se à frente, numa poltrona com assento de verga, ouvindo atentamente. (Quantos anos não passaram Conrad e o autor sentados ali, desta maneira!)

Começámos aquela leitura depois de almoço, num dia um tanto curto; os candeeiros foram trazidos com o chá. Durante esse intervalo, Conrad mostrou-se nervoso e deprimido; ensimesmado e quase não respondendo a perguntas. Sendo Conrad, à altura, pouco mais do que um estranho, esta foi a primeira experiência do autor com aquilo que poderia ser uma depressão de Conrad acerca de um problema artístico: era como uma corrente forte a pressionar uma divisão inteira. Na altura, de costas para o candeeiro e com Conrad completamente na sombra, o autor continuou a sua leitura, apenas com a impressão de que os membros do seu ouvinte estavam todos enrolados na poltrona e que se contraíam gradualmente. Havia muitas sombras pronunciadas na divisão baixa onde a maior parte da luz estava no tecto. 

Conrad começou a gemer… Por esta altura tornou-se relativamente óbvio para o autor que Conrad não aprovava o tratamento das aventuras de John Kemp, pelo menos das que se passavam em Cuba; e o autor já tinha uma ideia razoável acerca do temperamento de Conrad para não o questionar sobre o seu estado de saúde. O autor sente agora que foi com teimosia silente que continuou a ler, ao calor da lareira, para aquelas sombras agora vocalizadas… As interrupções por exaspero aumentavam em duração. Passaram a: «Oh! Oh!… Ai Senhor, meu caro Hueffer…» E mais para o fim: «Ai Senhor, meu caro companheiro, como é possível…» O autor terminou com a declaração de que, sendo Junho, o rouxinol cantava um tudo nada rouco. Esta observação zoológica, apesar da cadência, foi a estocada final no desalento de Conrad. Tendo cessado a voz do autor, exclamou: «O quê? O quê? O que disse?» Quando ouviu que aquilo era o final, gemeu e disse: «Valha-me o Senhor!» – pela última vez. Há escritores – escritores franceses – que conseguem guardar a revelação final de um romance longo mesmo até às três últimas palavras. Era por isto que ele esperara. O autor teria preferido morrer a ter usinado um livro assim.

Conrad era o mais incomparável criador de esquemas para riqueza repentina e ilimitada, ou para glória célere e imortal. Vê-lo embarcar numa destas aventuras era, em si mesmo, encorajador. O seu rosto iluminava-se, os músculos esticavam-se; primeiro discorria sobre a sua ideia e depois largava as amarras. Obviamente que o seu treino de mestre marinheiro a seduzir comerciantes orientais reticentes a transportar carga que não queriam expedir, a preços que não queriam pagar, em navios de carga capitaneados por Conrad e que, de uma maneira ou de outra, se mostravam inadequados à mercadoria – este treino ajudou-o com negociações cara-a-cara. Observá-lo, debruçado sobre um balcão, a persuadir o estólido Sr. Dan West, merceeiro do Hythe, a conceder-lhe crédito nunca antes concedido naquela cidade de comerciantes, era um estudo singular sobre fascínio. O merceeiro barbudo e pisco – e muito bom merceeiro: quem me dera conhecer um tão bom noutro sítio – provavelmente compreendia a transacção que envolvia, essencialmente, pagamentos a três meses, hipotecas sobre, temo dizê-lo, seguros de vida – sabe Deus o que mais! – e, depois, avançar triunfante para a White Hart, onde a afectuosa, morena, escultural e muito bonita Menina Cobay presidia sobre o nicho obscuro dessa taberna velha… E lá se sentava o merceeiro, benevolente, contente, a pestanejar um pouco, um homem nos seus cinquenta, sólido e rico, algumas vezes presidente de câmara da sua cidade arcaica, com um grande conhecimento sobre os homens, tranquilamente complacente para com o visitante romântico que tinha chegado até ele… Sem dúvida que ele poderia ser o Stein de Lord Jim, contemplando o herói desse trabalho magnífico e dizendo para si mesmo: «Romântico!… É isso que ele é. Romântico!»… E a bela, escultural e vagarosa Menina Cobay, invariavelmente silenciosa. Pelo menos o autor nunca a ouviu pronunciar uma palavra, exceptuando quando, anos mais tarde, passando de carro por aquele antigo Cinque [sic] Port, o autor tomou um copo, pelos velhos tempos, ao balcão da White Hart, e a Menina Cobay, com o seu olhar enigmático, perguntou pelo Sr. Conrad, à altura há muitos anos longe da Quinta de Pent, exactamente como uma das mulheres silenciosas dos primeiros livros de Conrad: a heroína de Falk, que nunca pronuncia uma palavra… O autor, lamentável e infelizmente, parece tornar-se Marlowe. Assim seja…

Conrad era Conrad por ser os seus livros. Não era o caso de fazer literatura: ele era literatura, a literatura do Aventureiro Nobre Isabelino… Imaginem partir naquele cabriolé de verga, puxado pelo que parecia ser uma mula, para persuadir um merceeiro do Hythe a dar-vos três anos de crédito… Imaginem partir de Stanford-le-Hope, um porto seguro onde pelo menos havia contacto com barcos, estuários, marés e ilhas, para uma terra interior desconhecida, com população selvagem e desconhecida, de colinas despidas, o refúgio do mar longe da vista, para persuadir um desconhecido manejador da caneta, o melhor estilista em Inglaterra, a ceder a sua liberdade em nome de uma parceria náutica – ceder, também, o seu «tema» charmoso, exactamente como se se tivessem aventurado pelas terras interiores depois de Palembang só para pedir a alguém acabado de conhecer que revele para exploração conjunta o local secreto de um daqueles riachos misteriosos onde se encontra ouro. Uma aventura exactamente como aquela de Vitória… E depois insultar o dono do riacho com gemidos, suspiros, «ó Senhores» e contorções… Bem, todos os que apoiámos Conrad até à sua última, tão grande vitória, fomos as personagens subordinadas dos seus livros, aturando as suas exigências extorsivas de crédito, paciência e temas… Os Steins, os Whalleys, os Capitães MacWhirrs… E, agora, os Marlowes!

Porque, durante algumas horas naquele dia longínquo do nosso Romance, o leitor pode estar certo de que a própria existência desse trabalho esteve em risco. Foi mesmo como se Rumpelstiltkin tivesse aparecido para levar o filho da Rainha. (Conrad cita Grimm na epígrafe: «O duende respondeu: Não, algo humano é-me mais precioso do que todas as riquezas das Índias!») O autor, disso pode estar certo o leitor, foi sempre majestosamente indiferente à sorte dos seus livros, à estima que por eles era tida – por qualquer alma excepto por Joseph Conrad –, a coisas como uma carreira, reputação e o resto. Conrad dificilmente escolheria um melhor explorador de riachos a quem recorrer. Mas o autor não era, na altura, ignorante em relação às vicissitudes das relações humanas e das parcerias literárias. As disputas terríveis entre Henley e os herdeiros e executores de Stevenson enchiam as páginas da imprensa naquela altura. Ou, então, podemos recordar os efeitos de Boswell na fama de Johnson. Fazer aquilo que Conrad desejava imperativamente, ceder o riacho para uma parceria, era… estar a pedi-las!

Esteve, então, em risco. Mas ali apareceu gradualmente, depois do jantar, numa casa rural ao longo de uma noite comprida que durou até às duas da manhã: a magia. Foi magia! Haviam ocorrido revelações. Conrad tinha exposto os seus desejos de forma despojada. Em Limpsfield, ouvindo o autor desenvolver o seu «tema» extraordinário – acerca de Aaron Smith, o último pirata a ser julgado no Old Bailey, da Enseada com o Rio Media ao fundo e as escunas piratas com Nikola el Escoces a capitanear, zarpando para o saque do brigue Victoria, com a sua carga de toros de madeira, rum, açúcar para refinar e corantes – Conrad tinha imaginado um livro robusto, com cada gota do tema bem espremida. Enquanto que era típico do autor que, apesar de no julgamento Aaron Smith ter deposto para uma senhora envergando o nome exótico de Seraphina Riego, filha de um juez de la premiera instancia, conhecida como a Estrela da Lei Cubana, habitante da cidade de piratas de Rio Media, em Cuba, o autor tenha muito cautelosamente deixado esta senhora de fora do primeiro esboço do livro, sendo a senhora que se sentava com John Kemp debaixo do rouxinol rouco uma figura chamada Veronica, delineada criteriosamente com ombros expostos e lenço… Conrad esperara ouvir uma leitura de um trabalho pelo melhor estilista de Inglaterra, vasto em popularidade como A Ilha do Tesouro mas tão «escrito» como Salammbô, no qual, pela adição de uns toques de descrição, atmosfera marítima, névoas, cordames e coisas do género, numa quinzena, a fortuna se estendesse aos pés dos aventureiros… Foi mais uma daquelas iniciativas mágicas… E eis que, depois de cinco anos de trabalho havia Romance com o seu succês d’estime. Nem sequer muito disso, uma vez que os críticos da nossa terra preferida não acreditam em colaborações.

Foi aqui que entraram na história a maravilhosa conduta e capacidade de mudar de atitude de Conrad. Agitado, o autor tinha explicado, mesmo antes do jantar, a natureza da tour de force que tinha tentado alcançar. Esta era a narrativa de um homem muito velho, a olhar para trás, para o dia do seu romance – como o narrador olha para trás, hoje. Estão a ver, agora, o verdadeiro primeiro esboço de Romance. Em boa verdade, é assim que decorre, de acordo com o esquema técnico por nós os dois estabelecido.

Assim, antes do jantar, Conrad ouviu a apologia do autor com uma certa indiferença frígida. Naturalmente, se era esse o caminho, sem dúvida… Mas porquê escolher este tema?… Um homem de sessenta e dois anos… Sim, sim, claro… No entanto, manteve-se fechado na profundeza da sua desilusão e ainda mais na sua reprovação pelo criminoso que se apoderara daquele tema e não extraía dele, agarrando-o pelo pescoço, cada gota de sangue e encanto… Não gostava do autor como se de um criminoso, a fortuna esbanjada, um Livro reduzido à estrutura mirrada de uma façanha técnica. Exclamou: Deixe-me ver isso. Deixe-me ver o manuscrito; folheou as páginas com repugnância como se fossem a prova de um crime… Esbanjar fortuna – isso não era exemplar: assassinar um tema – isso era homicídio, obsceno, anómalo… A campainha para o jantar tocou…

Ao jantar havia senhoras; o Conrad deprimido gradualmente transformou-se em Conrad. A pimenta surgiu como tópico de conversa. Declamou acerca de as maiores guerras no mundo terem sido travadas por pimenta. As Ilhas das Especiarias, o Oriente, entraram na divisão durante um curto espaço de tempo, com a Velha Escadaria de Wapping, as tendas do exército em Constantinopla no final da guerra russo-turca, com Conrad como simples marinheiro no convés de um barco de transporte da Messageries Maritimes. Seguiu-se uma disputa exasperada sobre se o açafrão tinha sabor – no decurso do consumo de um prato de caril. Conrad declarou que o açafrão não tinha qualquer sabor; o autor, que o açafrão era uma das ervas com o sabor mais forte de entre todas as ervas imagináveis. Conrad afiançou que tinha transportado cargas inteiras de açafrão; tinha passado a vida a transportar cargas de açafrão; não tinha tido outras ocupações. Por seu turno, o autor tinha dado mais açafrão a aves doentes do que aquele que Conrad alguma vez tinha transportado e tinha, para além disso, criticado cozinheiros suficientes para formar tripulações inteiras por não usarem a quantidade de açafrão necessária no poule au riz… Conrad declarou que isso servia apenas para dar uma cor agradável ao arroz. O autor caracterizou-a como sendo uma cor desagradável e ofensiva… Os olhos de Conrad brilharam ameaçadoramente; os seus dentes brancos sob o bigode puxado para trás. Ambos contemplámos as Areias de Calais… Alguém mudou o tema da conversa para pérolas…

Em todos os milhares de conversas que tivemos ao longo dos anos só discutimos por causa destes dois temas: sobre o sabor do açafrão e sobre se é possível distinguir uma ovelha da outra.

A seguir àquele primeiro jantar, Conrad conversou, havendo entre os presentes pessoas com quem simpatizava… Nestas ocasiões, era parecido com o seu Mirror of the Sea [O Espelho do Mar]. Na verdade, grande parte de Mirror of the Sea era simplesmente a conversa dele que o autor estenografou de improviso, lembrando a Conrad, na altura num estado depressivo grave, várias passagens do seu relato… E eis que, há três semanas, o autor conduziu uma geringonça encapotada, preta e trémula por uma região de colinas vulgares, a continuação das colinas do Kent, para lá do Canal. Lá foi, sacudido atrás de uma fêmea quadrúpede extravagante, por campos de trigo que ventos brandos transfiguravam em patas de gato. E o paralelo era tão intimamente exacto que o autor deu consigo a dizer para si mesmo: «Bem, Ford, mon vieux, como descreveria aquele campo de trigo?»… O leitor deve tomar este registo de uma coincidência como sincero…

Porque foram inúmeros os dias em que, atrás da égua amigável de Conrad ou de um pónei Exmoor do autor, bem menos amigável, seguíamos – entre 1898 e 1905, digamos – por uma região de colinas vulgares, perguntando-nos como poderíamos descrever os campos de cereais maduros, uma parcela de quatro hectares com couve roxa, um forno de secagem. Experimentávamos as palavra francesas: sillonnébleu-foncébleu-du-roi tentávamos outra vez em inglês; procurávamos no fundo das nossas memórias por outras palavras francesas às quais assimilar as nossas palavras inglesas e assim prosseguíamos durante horas tranquilas.

 Assim, faz hoje três semanas – e assim regressamos aos nossos amores antigos! – o autor partiu exactamente de um desses sítios decrépitos, um edifício rural numa região indistinta sobre montes pequenos, por uma estrada secundária rija e ouviu Conrad dizer-lhe: «Bem, Ford, mon vieux, como descreveria aquele campo de trigo?»… Sem terem estes detalhes, não poderão perceber o quão imensamente forte é a impressão que este génio belo deixou numa mente dificilmente impressionável ou atreita a criar afectos… Por isso o autor continuou a matutar no assunto.

Continuou a pensar, primeiro em francês e depois em inglês: «Champs de blés que les vents faibles sillonaient… campos de cereais… Não, campos de cereais não, que isso, para os americanos, significa campos de milho *… Campos de trigo… Campos de trigo que o fraco… ligeiro… leve… que tipo de ventos, brisas, aragens…» Não há ocupação mais agradável num dia calmo: é mais relaxante, na verdade, do que pescar num lago… «Campos de trigo que ventos brandos transfiguravam em patas de gato… Isto é, naturalmente, demasiado literário…»

Estas considerações mantiveram-se activas na sua cabeça enquanto era sacudido pelo empedrado de granito execrável até à estação delapidada de uma cidade de comerciantes. Continuou a pensar em trigo, empoeirado, bronzeado, dourado, como se a fugir por uma pequena encosta acima – enquanto comprava bilhetes a uma mulher antipática atrás de uma grade; enquanto comprava um jornal inglês a uma mulher muito gentil de avental azul. Na plataforma da estação disse: «Dont les vents faibles sillonaient les surfaces roussâtres…»ª, enquanto olhava para as letras maiúsculas negras no jornal que o companheiro mantinha dobrado. Ocorreu-lhe de imediato: Isto é uma piada de mau gosto… Este jornal é daquele tipo de jornal que faz piadas de mau gosto… Estava a falar comigo. Nem há cinco, nem há três… minutos… Nem há três segundos: mesmo agora, nesta plataforma… a voz cerrada com o sotaque sombrio, um tanto reconfortante…

O autor exclamou: Veja! Veja!… O companheiro desdobrou o jornal. O anúncio ocupava duas colunas, em maiúsculas negras… MORTE SÚBITA DE JOSEPH CONRAD. Estavam a demolir uma sala de espera antiga na plataforma oposta, três homens de picaretas, esbranquiçados pelo pó: uma parede estava partida em ziguezagues. «C’est le mur d’un silence éternel qui descend devant vous!»* Caiu sobre a parede empoeirada uma cortina de luar, corrida pelas sombras negras de carvalhos. Estávamos numa varanda que tinha um telhado de vidro. Debaixo do telhado de vidro trepavam maracujás e gavinhas de videira estrangulavam-nos. Estávamos sentados em espreguiçadeiras. Era uma da manhã. Conrad estava à nossa frente, a conversar. A conversar sem parar entre as parcelas de luar e da sombra dos maracujás e das videiras! A cidade pequena onde nos encontrávamos dominava o Canal inglês a partir do cimo do monte. Vestia um jaquetão escuro e calças brancas.

Falava da Malásia, de palmeiras, das mulheres pequenas de rajás, vestidas com sarongues – ou talvez não fossem sarongues? – acocoradas à sua volta no chão; ele próprio sentado no chão, de pernas cruzadas, a ensinar as mulheres pequenas dos rajás – a usar máquinas de costura! Atracada a um cais podre – como se fosse em Palembang, embora não fosse, naturalmente, Palembang – estava a sua escuna. A escuna tinha o porão com meia carga de espingardas debaixo de meia carga de máquinas de costura. Os rajás, maridos das mulheres pequenas, não gostavam dos seus suseranos holandeses e, naquele país, a Guerra tem durado não cinco mas sim trezentos e cinquenta e cinco anos…

Era assim, então, que ficava Conrad nas alturas em que conversava como naquela primeira noite depois do jantar. Aí, mantinha normalmente a voz baixa, algo íntima e reconfortante. Começava por falar devagar mas mais tarde falava muito depressa. O seu sotaque, um tanto cerrado, era precisamente o sotaque de raças mais escuras que níveas. Impressionou o autor, em primeiro lugar, enquanto francês de Marselha puro: falava inglês com grande fluência e distinção, com correcção na sintaxe, as palavras exactas quanto ao seu significado mas a acentuação tão irregular que se tornava difícil, às vezes, percebê-lo; o seu uso de advérbios era tão excêntrico como simplório. Usava de forma arbitrária «dever» e «desejar».ª Gesticulava com as mãos e com os ombros quando queria ser convincente mas, quando se abandonava à agitação da conversa, gesticulava com o corpo todo, agitando-se na cadeira, aproximando-a da nossa. Levantava-se de um salto, finalmente, e afastava-se um pouco, a andar para trás e para a frente na extremidade da sala. Quando o autor falava ele era um bom ouvinte, sentando-se quase enroscado enquanto o autor caminhava ininterruptamente, para trás e para a frente, ao longo da ponta estampada do tapete.

Conversámos desta forma desde cerca das dez, quando as senhoras se retiraram para dormir, até às duas e meia da manhã. Falámos sobre Flaubert e Maupassant – sondando-nos, na verdade. Na altura, Conrad ainda continuava inclinado a manter o seu gosto por Daudet – por livros como Jack. O autor desprezou isso com o ar de pessoa superior que nos diz que o Hermitage já não é um vinho para cavalheiros. Falámos de Turguéniev – o maior de todos os poetas: «Byelshin Prairie» [«A Pradaria de Byelshin»], de Letters of a Sportsman [Cartas de um Desportista], a melhor coisa alguma vez escrita; Turguéniev, deitado, enrolado num manto na pradaria, à noite, a alguma distância de uma grande fogueira ao lado da qual os rapazes dos cavalos conversavam de forma inconsequente acerca da Russalka das florestas com o cabelo verde e das ninfas da água que nos arrastam para nos afogar no rio.

Concordámos que um poema não era aquilo que se escreve em verso mas aquilo que, escrito em verso ou em prosa, tem beleza na sua construção. Concordámos que escrever romances era a única coisa importante que restava ao mundo e que aquilo de que o romance necessitava era da Forma Nova. Confessámos um ao outro que desejávamos escrever, um dia, Prosa Absoluta.

Mas aquilo que realmente nos aproximou foi uma devoção por Flaubert e Maupassant. Descobrimos que ambos tínhamos decorado Felicite *[sic], A Lenda de São Julião Hospitaleiro, longas passagens de Madame BovaryA NoiteO Brejeiro do Morin e longas passagens de Uma Vida. Ou pelo menos decorado o suficiente para que, quando um se atrapalhava, o outro pudesse continuar a partir daí. E de facto, na última ocasião em que nos encontrámos, em Maio deste ano, concordando que tínhamos mudado pouco, surpreendentemente pouco – ah, nem um bocadinho! – começou o autor: «La nuit, balancé par l’ouragan…», e Conrad continuou: «tandis que le feu grégeois ruisselait», mesmo até «Et comme il était très fort, hardi, courageux et avisé…» ª

Antes de nos retirarmos naquela primeira noite, Conrad confessou ao autor que antes de sugerir uma colaboração tinha perscrutado alguns homens de letras acerca da conveniência do pedido. Disse que lhes tinha exposto as suas dificuldades com a língua, a lentidão com que escrevia e o aumento em fluência que podia adquirir durante o processo de rever minuciosamente as palavras com um mestre de inglês reconhecido. O autor imagina que ele tenha perscrutado o Sr. Edward Garnett, W. E. Henley e o Sr. Marriott Watson. Destes, o único que Conrad mencionou foi W. E. Henley. Declarou, sucinta e cuidadosamente, que tinha dito a Henley – Henley tinha publicado O Negro do Narciso na sua Review * — «Veja bem. Eu escrevo com tamanha dificuldade: os meus pensamentos menos expressos, os íntimos e imediatos, são em polaco; quando me expresso com cuidado, faço-o em francês. Quando escrevo, penso em francês e depois traduzo as palavras dos meus pensamentos para inglês. Isto é um processo impraticável para alguém que deseja ganhar a vida a escrever usando a língua inglesa…» E Henley, de acordo com o que Conrad disse nessa noite, tinha dito: «Porque é que não pedes ao H. para colaborar contigo? É o melhor estilista da língua inglesa nos dias de hoje…» O autor, deve ser lembrado, apesar de ser dez ou quinze anos mais novo que Conrad, era mais experiente do que ele, pelo menos no que diz respeito a ser um autor publicado, para além de ser o mais bem sucedido dos dois no que às vendas dizia respeito.

Henley não tinha dito nada disto, obviamente. De facto, como o autor relatou noutro local, por ocasião de um duelo verbal que tinha tido mais tarde com Henley, essa personalidade de linguagem violenta observou: «Quem Diabo és tu? Nunca ouvi o teu nome, sequer!», ou palavras semelhantes a estas. Provavelmente nem importa muito. O que tinha acontecido, sem sombra de dúvida, foi que Conrad terá mencionado o nome do autor a Henley e este terá respondido: «Atrevo-me a dizer que servirá, como outro qualquer». Não, provavelmente não importa, excepto enquanto vislumbre do carácter e dos métodos de Joseph Conrad e da sua habilidade para alcançar aquilo que queria…

Porque foi evidentemente une émotion forte que o autor sentiu naquelas primeiras horas da madrugada, numa divisão suficientemente escura de uma casa rural. Nessas situações, a voz reconfortante de Conrad, algo arrastada, ganhava uma entoação mais polaca e descia. O seu rosto iluminava-se; era como se sussurrasse: como se ambos sussurrássemos numa conspiração contra um mundo adormecido. E sem dúvida que era isso. O mundo não nos queria, certamente: não naquele momento; e ter a reputação de melhor estilista do inglês era suficiente, praticamente, para nos enviar para o cárcere. Algo de desconhecido, era disso que se tratava…

De qualquer maneira, quando, empunhando um castiçal achatado, o autor conduziu finalmente o seu convidado até um quarto frio, sombrio, coberto com papel de parede empalecido, e lhe fechou a porta, sentiu como se um rei estivesse enclausurado por aquelas paredes. Um rei-conspirador: um pretendente soberano; Dom Carlos de um mundo onde os súbditos são sombras.

 

II

 

Sobre o que aconteceu imediatamente a seguir à história de Romance, o livro, a memória do autor conserva-se em branco! Talvez fosse fácil reconstruir imagens a partir de probabilidades ou consultando uma ou duas pessoas. Mas isso não estaria de acordo com o espírito do pacto: este é um registo da impressão deixada por Conrad, o Impressionista, noutro escritor, também ele impressionista. É uma oferenda In Memoriam, construída exclusivamente a partir de memórias.

Há alguns anos, o Sr. H. G. Wells aproveitou para escrever aos jornais. Declarou que o autor o tinha visitado e informado de que tinha persuadido Conrad a colaborar com ele. A memória do Sr. Wells deve muito certamente tê-lo traído, apesar de o assunto não ser de grande relevância. Aquilo que permanece muito claramente na cabeça do autor é o seguinte…

O autor e Conrad fizeram várias remodelações e alterações durante a ocupação da Pent; o autor ocupou-a por vários anos; nessa altura, Conrad vivia com o autor e com a sua esparsa mobília, quase toda de origem Pré-Rafaelita. Agradava a Conrad escrever numa secretária Chippendale na qual Christina Rossetti já tinha escrito, ou noutra que pertencera outrora a Thomas Carlyle: naqueles tempos retirávamos estes pequenos e animadores prazeres da vida. Depois, Conrad acabou por ocupar a Pent em definitivo, a casa lúgubre, sob as colinas despidas, exercendo sobre ele um grande fascínio. Quando saíamos pela porta da frente – o Sr. Walter Crane, que ocupou a casa mobilada durante uma das nossas andanças pelo Kent e pelo Sussex, tinha pintado um grou japonêsª e escrito alguns versos nessa porta – quando saíamos, dizia, o jardim estreito que dava para a eira tinha um carreiro curto de tijolo que seguia sob as janelas e era muito tranquilizante ver os contornos achatados da região a estenderem-se por uma distância grande, uma convolução a confluir noutra. O carreiro de tijolo secava muito depressa no mais húmido dos tempos: Conrad caminhava nele durante horas, para cima e para baixo, como se num tombadilho, tranquilizado pelos contornos da região. Naquela zona de Inglaterra, as palavras de Carlos II são absolutamente correctas; é que, com a protecção oferecida pelas colinas e a posição próxima do mar, não há praticamente um único dia em que um homem não possa sair à rua – pelo menos na extensão de um carreiro de tijolo debaixo das suas janelas. À frente, o grande celeiro cortava logo a paisagem mas viam-se os campos à direita, pelo que era um local muito calmo e privado… E na verdade, este ano, numa das nossas últimas conversas, Conrad mencionou o facto de ter, pela primeira vez na sua vida, na sua residência actual, amplamente mais apropriada, um escritório só para ele. E acrescentou: «Oh, mas não é a Pent!» Também disse que o celeiro grande das colheitas tinha ardido por altura da debulha.

No nosso tempo costumávamos entreter-nos a disparar sobre os ratos com uma espingarda Flobert, a partir do carreiro de tijolo. Havia trilhos feitos por esses animais no colmo verde-escuro do celeiro e podíamos vê-los progredir descontraidamente de uma ponta à outra da grande superfície em plena luz do dia. Então… Tzzzzt, soltava a Flobert e o silvo da bala pequena no colmo fazia com que um rato saltasse por cima das rugas da palha envelhecida para dentro de um buraco qualquer, precisamente com a robustez de um tigre a saltar cursos de água. Se a memória não me falha, nunca acertámos num rato: mas um sucesso notável foi atribuído ao autor. Disparado a uma distância incrível – uns oitenta metros, ou assim, algo de colossal! – um rato cinzento grande e velho colapsou debilmente enquanto atravessava a estrada. Corremos até lá e empurrá-mo-lo com a coronha. Esse feito foi para sempre atribuído ao autor como um feito de pontaria extraordinário, muitas vezes referenciado. Se alguém falasse de tiro, Conrad dizia: «Oh, mas devia ter visto o tiro do Ford àquele rato!…» Na verdade, o autor, tendo mais experiência agrícola, estava certo de que o rato estava a morrer de velhice antes de terem disparado sobre ele, a bala nunca o atingiu. Mas manteve sigilo até ao dia desta confissão… Não, lá na Pent não éramos elitistas! Jogávamos dominó, Conrad com paixão e a perícia de um mestre. De facto, em quantas Mecas citadinas e cafés belgas não teremos atirado os ossos brancos e pretos por cima de mesas de mármore redondas e brancas! Jogávamos écarté ou, quando mais sérios, xadrez, mas normalmente dominó, ao qual o autor não se lembra de ter alguma vez vencido um jogo. Às vezes, o autor empurrava uma bola de golfe pelos campos, com Conrad, no carreiro de tijolo, julgando a actividade com o desdém, digamos, que o seu colaborador concedia a Daudet. Uma vez, o autor sentou-se para descrever por palavras, com seriedade, a satisfação que sentimos quando conseguimos uma boa tacada de saída e vemos a bola branca liricamente contrastada com o azul do céu. Era um texto diligente, com mots justes e tudo. Conrad olhou para aquilo com cuidado e, depois, lentamente e sem expressão, levantou os ombros e as sobrancelhas, regressando nós ao dominó.

 

ª «És tu que dormes na sombra», verso do poema «Tristesse d’Olympio», de Victor Hugo. N. do T..

 

ª Para as obras mencionadas que não tenham tido edição em Portugal é indicada, entre parênteses rectos, na primeira ocorrência, a tradução literal dos títulos correspondentes. Relativamente às publicações periódicas, foi mantido o seu nome original, devido à natureza das publicações em questão. N. do T..

 

ª A escansão refere-se aqui ao número de sílabas da expressão em inglês: «poured out its melody on the summer air». N. do T.

 

* Em francês, no original: «E os três, pegando na cabeça de Iaokanan, foram-se para os lados da Galileia. Como era muito pesada, revezavam-se a transportá-la.» (Tradução de Pedro Tamen, Três Contos, de Gustave Flaubert, Lisboa: Relógio d’Água, 2005.) N. do T.

ª Ford refere-se às palavras da frase no original: «As it was June it sang a trifle hoarsely». N. do T.

 

* Em francês, no original. Todas as ocorrências pontuais em francês, latim, castelhano e italiano, deixadas na tradução, ocorrem dessa forma no texto original. N. do T.

 

ª «Sulcado», «azul-escuro» e «azul-real», respectivamente. N. do T.

 

* A dificuldade de Ford está relacionada com o duplo significado da palavra «corn»: em inglês britânico, a palavra denota qualquer tipo de cereal, enquanto que, em inglês americano, a palavra denota, normalmente, milho. Optou-se por manter a tradução literal, em que «corn», no sentido britânico, significa cereal. N. do T.

 

ª «Cujos ventos brandos sulcavam as superfícies arruivadas,…» N. do T.

 

* «É o muro de um silêncio eterno que cai diante de vós!» N. do T.

 

ª Aquilo a que Ford faz referência, aqui, é ao uso aleatório que Conrad fazia de «shall» e «will», dois verbos modais ingleses que são muitas vezes, mas não sempre, permutáveis. N. do T.

 

* Ford refere-se aqui ao conto de Flaubert intitulado «Um Coração Simples», cuja protagonista é Félicité. N. do T.

 

ª «A noite, embalada pelo furacão…»; «enquanto o fogo grego fluía»; «E como ele era tão forte, audaz, corajoso e prudente…» N. do T.

 

* Referência à publicação periódica editada por Henley, New Review. N. do T.

 

ª A palavra inglesa para grou é «crane». N. do T.