COMO CITAR:

Madeira, Pedro. «Henry David Thoreau, Walden e «Ktaadn»». Forma de Vida, 2017. https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2017.0069.



DOI:

https://doi.org/10.51427/ptl.fdv.2017.0069

Pedro Madeira

 

[Veja aqui o direito de resposta de Alda Rodrigues a esta recensão.]

 

Pouco antes de entrarmos no ano em que Henry David Thoreau completaria duzentos anos, a Relógio D’Água lança uma nova tradução de Walden, por Alda Rodrigues. Esta publicação importante é também oportuna. Não tanto por assinalar a efeméride, mas sobretudo porque se acumulam os sinais de que Thoreau, que até há muito pouco tempo esteve ausente, ou quase, do panorama editorial português, está hoje na moda em Portugal.

Segundo o catálogo da Biblioteca Nacional publicou-se pela primeira vez uma tradução de Thoreau em 1972, mas só na segunda metade dos anos oitenta se inicia, lentamente, uma campanha séria de divulgação da sua obra em Portugal, pela Antígona. Em 1999 esta editora publicou, finalmente, Walden, mas a edição levou outra década a vender-se. Um exame ao catálogo da editora mostra que a situação se alterou significativamente depois disso. Entre 2012 e 2016 a Antígona publicou mais três livros de Thoreau e lançou as terceiras edições de Walden e Desobediência Civil. Mais ou menos no mesmo período, em 2011, o compositor Tiago Sousa e o realizador Rodrigo Areias apresentam obras suas, Walden Pond’s Monk e Estrada de Palha, respectivamente, como glosas precisamente desses dois textos. Não arrisco muito se disser que Thoreau é hoje um pequeno fenómeno pop em Portugal.

Evidentemente, da ausência, ou escassez, de traduções, não se pode concluir que um autor não seja lido. A voz de Thoreau (e a de Emerson, autor que a Relógio D’Água também começou recentemente a traduzir) está presente em Pessoa, ouvindo-se com especial nitidez nos poemas escritos em nome de Alberto Caeiro. Não é decerto um acaso que o actual sucesso editorial do norte-americano coincida com um período de enorme popularidade de Pessoa.

O livro agora publicado pela Relógio D’Água não é a primeira edição portuguesa da obra mais popular de Thoreau, e talvez do transcendentalismo americano, mas, sendo a edição da Antígona uma adaptação da tradução brasileira de Astrid Cabral (acrescentada de algumas notas de Júlio Henriques), Alda Rodrigues é o primeiro português a traduzir Walden, que surge aqui acompanhado de «Ktaadn» (1848), ensaio, esse sim inédito em Portugal, cujo tema ostensivo é uma excursão à montanha do mesmo nome.

Esta publicação é, por todas estas razões, um acontecimento digno de ser celebrado. Não se compreende por isso o apagamento da tradutora, e presumível editora, do volume. É pena, por exemplo, que a explicação da escolha original de juntar «Ktaadn» a Walden seja relegada para uma curtíssima resenha na contracapa que nos diz que este é «um dos (...) mais belos textos de viagem» de Thoreau. Uma edição é sempre um argumento acerca do livro editado. Neste caso teria sido bom que o argumento fosse um pouco mais explícito.

Até porque traduzir Thoreau, em cuja obra o sentido literal é, frequentemente, enganador, é uma tarefa ingrata. A seguinte passagem é um bom exemplo disso:

 

A minha “melhor” divisão – a minha sala de visitas –, sempre pronta para receber visitas, era a mata de pinheiros por trás da minha casa. Era aí que levava os meus convidados ilustres no verão, onde um empregado doméstico varria o chão, limpava o pó à mobília e mantinha tudo em ordem, sem exigir nada em troca. (p. 124)

 

A expressão «priceless domestic» (p. 141), habilmente traduzida como «empregado doméstico (…) sem exigir nada em troca», é um bom exemplo do uso deliberadamente desconcertante que Thoreau faz da língua. A tradutora privilegia uma leitura que se pode dizer literal do adjectivo «priceless», ou melhor, dos elementos que o compõem («sem preço»), em detrimento da acepção mais comum, «valioso», mas também da acepção contrária, «sem valor», ambas em uso. Nenhuma destas se adequa ao contexto, que exige um outro sentido, pseudoetimológico, que nunca se usa e os lexicógrafos não reconhecem, que a perífrase da tradutora captura. A sua opção limita um pouco o sentido da frase — o que é muitas vezes inevitável —, mas a necessidade de evitar o sentido próprio do termo justificam-na.

A tradução de «withdrawing room» (p. 141) por «sala de visitas», no início do parágrafo, é mais discutível. Embora literalmente correcta, ou talvez por isso, faz desaparecer informação que o leitor talvez não pudesse dispensar (o mesmo se pode dizer das palavras «on whose carpet the sun rarely fell», que são omitidas). «Withdrawing room» tem, ou tinha, efectivamente o sentido que a tradução lhe dá, mas no tempo de Thoreau era já muito mais frequente empregar-se «drawing room» para exprimir a mesma ideia. Ora, «draw» e «withdraw» são, neste contexto, antónimos, e, realmente, o termo empregado por Thoreau tinha, na acepção original acolhida pelo American Dictionary de Webster (1828), um significado aparentemente oposto: «a room behind another room for retirement». O paralelo entre este verbete e o modo de referir o pinhal («the pine wood behind my house», p. 141) é claro, e mostra que, à semelhança do que fez com «priceless», Thoreau activa deliberadamente duas acepções contraditórias, sugerindo um sentido mais abrangente que as excede e reconcilia (e ignorando, também neste caso, a etimologia real do termo, que oferece uma solução prosaica para a contradição aparente: «withdrawing room» era um gabinete reservado anexo à sala de jantar). «Withdrawing room» não é força de expressão, mas designação própria do lugar para onde o autor se retira («withdraw»), para usufruir de um convívio verdadeiramente íntimo que requer, como esclarece algumas linhas antes, que se esteja «tão fisicamente longe que é impossível ouvirmos a voz um do outro» (p. 124).

Portanto, o verdadeiro convívio é a solidão, as melhores visitas são as que não estão cá, e só se conversa em silêncio. A solução destes e outros mistérios é, em última análise, a leitura. Símbolo da relação do homem com a natureza tal como a concebe o transcendentalismo, o livro é a realização possível da intimidade paradoxal de que fala Thoreau. Passos como este mostram quão pertinente é a lição de Matthiessen, que no clássico American Renaissance insiste que os modelos de Emerson e Thoreau são escritores ingleses do século XVII, como Donne, Herbert e Sir Thomas Browne. A teoria da linguagem que Thoreau enuncia no capítulo final de Walden parece confirmá-lo: «A verdade volátil das nossas palavras devia trair constantemente a inadequação da afirmação final. Esta verdade traduz-se instantaneamente; só o seu monumento textual permanece» (p. 279). A tradução disfarça o sentido técnico do inglês que tem «residual» e «literal» em lugar das palavras que sublinhei. Todo o capítulo é um manifesto a favor de técnicas que obriguem o leitor a desconfiar do sentido usual de palavras comuns. Thoreau quer dar ao leitor que fala inglês a sensação de que Walden está escrito numa língua morta, isto é, fazer de Walden um clássico instantâneo, que é preciso ler como se lêem os «livros heroicos»: «mesmo que impressos nos carateres da nossa língua materna, estarão sempre escritos numa língua considerada morta em tempos degenerados; devemos procurar laboriosamente o significado de cada palavra e verso, conjeturando um significado mais abrangente [do] que o uso comum permite» (p. 90; acrescento entre parênteses rectos a preposição que, por lapso evidente, é omitida).

Nem o próprio Walden é o que parece. Sobre os pescadores que visitam o seu lago, Thoreau observa: «they plainly fished much more in the Walden pond of their own natures» (p. 130). Há, portanto, dois Waldens (ou um para cada pescador), e cabe ao leitor conjecturar o que é esse outro Walden, «das suas naturezas». Este problema não se põe na tradução, que estabiliza a metáfora: «no lago Walden, claramente, pescavam mais na sua própria natureza» (p. 115). «Walden» designa aqui necessariamente um objecto distinto das naturezas dos pescadores ao passo que, no original, o veículo e o conteúdo da comparação, a natureza «externa» e «interna», se fundem completamente. O leitor tem boas razões para suspeitar que este «Walden» é também, ou sobretudo, uma imagem do livro do mesmo nome, que, como vimos, também não se deve confundir com o seu resíduo «literal». No capítulo «Os Lagos» a tradução também torna mais difícil identificar a comparação estruturante entre o lago e um olho: «Such is the color of its iris» (p. 176), do seu «arco-íris» (p. 155) na tradução; ou «It is earth’s eye; looking into which [«mergulhando» (p. 162), na tradução] the beholder measures the depth of his own nature» (p. 186).

Dir-se-á que o tradutor tem o direito, muitas vezes mesmo o dever, de evitar a tradução literal. Mas neste caso sacrifica-se o entendimento literal das palavras de Thoreau a um entendimento literal do próprio livro, que aliás também encontra expressão no texto da contracapa. Lê-se aí que o livro «transmite um maravilhamento pela natureza de um lugar». Ora, Thoreau leva-nos ao lago Walden para nos mostrar, precisamente, que o lugar onde se está não interessa. Creio que o diz mais claramente em «Solidão»: «There is commonly sufficient space about us. Our horizon is never quite at our elbows» (p. 130). Mais uma vez, a tradução «literalizada» revela-se inexacta: «O nosso horizonte está sempre distante» (p. 115). Thoreau glosa aqui a ideia transcendentalista da coincidência entre o sujeito e o objecto. A ideia é que o horizonte nunca nos tolhe os movimentos, que o mundo corresponde exactamente à nossa capacidade de o apreender.

O tradutor de Walden não pode deixar de manifestar uma posição crítica, e nas soluções encontradas por Alda Rodrigues nota-se às vezes a ausência de uma resposta amadurecida à totalidade da obra. Mas há também alguns erros manifestos de leitura. Na última página de «Solidão», por exemplo, carros que parecem escunas passam a escunas que parecem carros e, um pouco mais adiante, aparece esta frase deturpada: «Não sou adorador de Higeia, filha de Esculápio, nem doutor no poder curativo das ervas, como os que são representados (...) com uma serpente numa mão, tendo na outra uma taça» (p. 122). Na verdade, é Higeia, filha do «herb-doctor» Esculápio, que é tradicional representar com estes emblemas, e é isso que está no original (as palavras sublinhadas — por mim — estão a mais e «representados» devia ser «representada»). Estranham-se erros como estes, ou a omissão de uma frase inteira no último parágrafo de «O Campo de Feijões» [«These beans have results which are not harvested by me» (p. 166)].

Há também alusões veladas que desaparecem completamente. Quem leia o texto em inglês pode ou não saber que «Moore of Moore Hall» é o herói de uma velha balada inglesa, ou que «Old Mortality» é a personagem epónima de um romance de Walter Scott, mas é seguramente impossível ao leitor português reconhecê-los no «Mouro da Mouraria» (p. 167) e no «Velho Mortal» (p. 230), que de resto já apareciam na edição da Antígona, que devia ter sido corrigida. A personagem de Scott percorria a Escócia a retocar epitáfios, actividade que Thoreau transforma num símbolo da relação entre o corpo e o espírito, imaginando um «Old Mortality, say rather an Immortality» (p. 269) que traduzisse «a imagem gravada nos corpos humanos, o Deus de quem as pessoas são apenas monumentos desfigurados e tortos» (p. 230). Esta informação, que a tradutora podia até ter dado em nota, desaparece completamente. Um resultado semelhante decorre da tradução distorcida dos versos de Donne incluídos em «Leis Superiores» (na página 190), em que é impossível reconhecer a alusão ao episódio da vara de porcos relatado por São Mateus (8:28-34).

Do ponto de vista estritamente editorial também podia ter havido mais cuidado. Uma falha menor é a transferência da epígrafe do livro da folha de rosto, lugar que sempre ocupou, para o início do primeiro capítulo. Mais grave é não se indicar o texto que serviu de base à tradução. Se, no caso de Walden, isso até podia ser considerado supérfluo, o mesmo não se pode dizer de «Ktaadn». Este texto apareceu pela primeira vez em 1848 na Union Magazine em cinco entregas com subtítulos próprios, e com um título diferente, «Ktaadn, and the Maine Woods», mas a maior parte dos editores prefere a lição de The Maine Woods (1864), que dá o texto indiviso e com o título abreviado. A edição portuguesa opta, sem nenhuma justificação, por uma divisão aparentemente arbitrária em seis partes.

Alda Rodrigues evidencia, em muitas ocasiões, discernimento crítico e competência linguística mais do que suficientes para desempenhar esta tarefa espinhosa. O seu texto é em geral fiel e lê-se com agrado. No entanto, a ocasião exigia uma edição um pouco mais cuidada.

 

Nota Bibliográfica

As citações do original inglês de Walden seguem a edição de J. Lyndon Shanley: Henry D. Thoreau, Walden. Princeton, NJ: Princeton UP, 1971. Consultou-se também o American Dictionary of the English Language de Noah Webster (1828), pelo fac-símile disponível aqui.

REFERÊNCIA:

Thoreau, Henry David. Walden e «Ktaadn». Lisboa: Relógio D'Água, 2016.