This is as silly as if a fish (which cannot live outside the water) should say: if no eternal life is to come to me after this life in the water, I want to leave the water for the land.
Spinoza
Este ensaio é a continuação de uma conversa tida com o Professor António Feijó anos antes: é um gesto de gratidão e a obrigação de melhorar o argumento.
Comensurabilidade como ponto de partida: ουτ ισοτης µη ουσης σνµµετριας
A primeira dificuldade filosófica do Capital tem a sua origem em Aristóteles: a complexidade do acto de trocar implica uma forma de comensurabilidade entre objectos categoricamente diferentes: implica ainda uma forma de igualdade que não pode simplesmente ser derivada da qualidade imediata destes objectos enquanto comodidades. Esta é uma intuição filosófica estritamente não empírica, ou, dito de outra forma, é uma intuição acerca da impossibilidade de encontrar um fundamento empírico para a realidade. A forma não-contemplativa de apreender o acto complexo de troca tem uma natureza recuperativa ou é o resultado de um esforço metafísico. Ou seja, tem de oferecer resistência a um tipo particular de indiferença. A forma desta indiferença é muito particular: consiste numa forma de habituação, por necessidade estrita da vida coletiva da espécie, a um tipo de satisfação imediata. A reversão desta forma de indiferença é a comunhão.
O que caracteriza o tipo particular de indiferença que defini anteriormente consiste na distorção da apreensão da importância da inventividade humana condensada em qualquer comodidade. Isto é, esta distorção resulta de uma forma de empirismo. A comensurabilidade notada por Marx no início do argumento tem a sua origem na apreensão autorreflexiva da criatividade humana.
Antes ainda de considerar a relação autorreflexiva e a sua generalidade: a refutação do empirismo é iniciada por Marx através da qualificação da categoria da qualidade. Notem que esta qualificação não é epistemológica, mas estritamente metafísica. A observação Aristotélica acerca da noção de comensurabilidade implica uma hierarquia particular na ordem da apreensão do estatuto de comodidades dentro de uma determinada prática: esta hierarquia implica a transfiguração da categoria da qualidade através do seu envolvimento numa prática.
Esta última ideia empurra o argumento na direção oposta a uma forma de apreensão imediata e contemplativa. A razão é a seguinte: a apreensão imediata é a-histórica, e a apreensão estritamente contemplativa consiste numa forma de monotonia.
Comensurabilidade e Personalidade
A expressão banal de um produto ser qualitativamente comensurável com outros está em ter um valor. No entanto, a noção de ter um valor é difícil de interpretar. A dificuldade, irei eu sugerir, está em interpretar exaustivamente a unidade das categorias implicada pelo verbo ter.
A unidade das categorias é experienciada em todas as comodidades de forma autorreflexiva ― existe um sentido em que cada comodidade funciona como um espelho da continuidade histórica da acção humana. No entanto, é estritamente necessário proceder à interpretação desta forma de unidade, pois de outra forma o insight contido no primeiro volume do Capital perde-se.
Este insight pode ser tentativamente descrito da seguinte forma: valor ― no sentido em que algo tem valor ― deriva de uma ou mais personalidades. Neste sentido, a observação de Aristóteles interpretada por Marx ― que deriva da apreensão do carácter não-acidental da comensurabilidade entre comodidades distintas ― consiste em interpretar esta não-acidentalidade enquanto a forma de agir de um ser (Wesen na terminologia dos Manuscritos) que tem uma personalidade. Por esta razão, a teoria descrita no Capital é uma teoria acerca da transferência da personalidade e consequentemente a comunhão não-explícita entre personalidades ao longo da história.
Se seguirmos a teoria da comodidade explicitada no Capital, percebemos que a dificuldade consiste na apreensão do princípio de transferência da personalidade para um objeto. A esperança metodológica está na convicção de que a descrição correta da comodidade resgata esta de uma forma de anonimato estrito, emergindo a sua identidade real e não-acidental; ou seja, a comodidade passa a ter a forma de uma personalidade condensada.
A minha sugestão é a seguinte: começar por um argumento acerca do carácter não-acidental do valor, interpretando as implicações metafísicas do verbo ter identificadas por Aristóteles. Estas implicações são por um lado categóricas, e irão iluminar a utilização que Marx faz das categorias da qualidade e da quantidade, e são ainda metafísicas, ou seja, evidenciam uma forma de ser.
Por estas duas razões, em vez de proceder à explicitação da diferença entre valor de uso e valor de troca, a minha sugestão é antes regressar a Aristóteles com o fim de interpretar a generalidade da forma ter valor, assim como a exigência cognitiva que lhe corresponde. As considerações que se seguem consistem em duas formas de interpretar o verbo ter, com o fim de extrair algumas das implicações necessárias para a cognição da forma ter valor.
(O argumento que se segue irá pressupor aquilo que Frede identifica como a pressuposição aristotélica para a apreensão das categorias: ou seja, que não existe um critério único ― lógico, gramatical ou ontológico ― que seja suficiente à cognição categórica. A sugestão de Frede consiste em assumir que todas estas considerações ― lógicas, gramaticais e ontológicas ― devem contribuir para a interpretação de uma forma de cognição categórica, p. 48[1]).
1º momento de interpretação da unidade categórica que caracteriza o verbo ‘ter’: explicitação das implicações entre categorias
Qualidade. Aristóteles introduz a discussão acerca das implicações metafísicas do verbo ter com um comentário acerca da qualidade. O primeiro exemplo concerne as virtudes enquanto disposições adquiridas. Alguém tem coragem na medida em que a coragem é o princípio de acções corajosas. Aristóteles imediatamente estende o exemplo de forma a incluir hábitos. A relação entre disposições e hábitos é aqui meramente assumida: a razão para tal é que Aristóteles está a pressupor uma noção de posse de qualidades sem para já distinguir entre tipos de qualidade distintas. No entanto, existe uma diferença importante: uma disposição adquirida qua coragem distingue-se de um hábito não-reflectido na medida em que o último não representa um exercício de razão prática. Esta distinção é uma qualificação inevitável da noção de posse e é exigida pela interpretação categórica: reparem, esta interpretação pressupõe a noção de posse de uma personalidade, neste caso enquanto estrutura da diferença entre o potencial exercício prático e o mero hábito.
O que temos então é a revelação da natureza reflexiva da interpretação categórica do verbo ter através da antecipação do conceito de posse ― este é o propósito deste exercício: apreender a unidade categórica enquanto reflexão de uma personalidade.
Quantidade. Aristóteles passa então à categoria da quantidade, notando que esta designa formas contínuas e discretas. Neste sentido o exemplo de Aristóteles é relevante. A distinção pressupõe a noção de divisibilidade e o exemplo de quantidade contínua utilizada por Aristóteles concerne a altura que um corpo humano tem. Continuidade é interpretada enquanto não-divisibilidade e por sua vez não-divisibilidade é interpretada enquanto unidade orgânica. Aristóteles antecipa a possibilidade de medir um corpo humano em metros cúbicos. No entanto, a passagem da continuidade à divisibilidade implica uma forma de redução comparativa: o corpo humano enquanto medida é reduzido ao anonimato da noção de quantidade em geral. Ou seja, enquanto mera quantidade discreta o corpo humano passa a representar uma forma de dispersão: tem mais ou menos quantidade, dependendo de quanto ou mais se acrescenta ou subtrai.
Posse. Ter quantidade é possuir uma quantidade num determinado momento, i.e. posse implica uma forma temporalizada de unidade. Ter uma túnica é ter uma túnica a dado momento e ter um anel é ter um anel numa determinada parte do corpo a dado momento. A posse categórica de uma relação parte-todo temporalizada é a posse de um conceito de unidade suscetível a deterioração; que pode ser uma forma de privação ou de obliteração.
Parte-Todo. Os exemplos Aristotélicos concernem posse enquanto posse de comodidades ― e.g. a túnica e o anel. Estas herdam automaticamente a experiência peculiar da necessidade humana, assim como a unidade orgânica do corpo humano. A continuidade categórica da posse condensa noções distintas de privação. Deixar de ter um anel é perder a posse de algo, deixar de ter um dedo é perder uma parte de um todo não recuperável. Dividir uma túnica é reduzir a sua continuidade extinguindo a sua qualidade, dividir um dedo é privar alguém de um dedo e obliterar a forma intacta de uma mão, e por sua vez a forma intacta de um corpo. Ou seja, a noção de privação e de obliteração é uma noção inerentemente temporal que qualifica o carácter orgânico, ou meramente mecânico da relação parte-todo.
Propriedade. Aliás, a sua forma temporal qualifica a noção de propriedade de duas formas distintas. A relação ter uma floresta é ter uma floresta enquanto a floresta durar ou enquanto aquele que tem a floresta durar: a duração da relação cessa quando um dos termos cessar. Ter dores de cabeça é ter a duração destas até cessarem, já ter uma doença crónica é representativa de uma forma de permanência definitiva. Ter uma floresta pode implicar transmissibilidade, alguém tem uma floresta enquanto não a vender, já as dores de cabeça e a doença crónica são intransmissíveis. Se uma doença for transmissível, então temos uma forma de contágio, que representa por sua vez posse sem aquisição voluntária.
Relação. Aquilo que é voluntário qualifica a noção de relação fortemente. O voluntário condensa a noção de aquisição e ainda de manutenção, preservação e proteção, entre outras. Ou seja, a noção de aquisição voluntária condessa uma variedade de formas práticas. Esta relação prática varia conforme a identificação e distinção categórica daquilo que é possuído. A noção de relação não é indiferente à natureza categórica dos termos da relação. Neste sentido ter uma floresta, ter um carro e ter um amigo diferem dado o reconhecimento das distinções categóricas entre aquilo que é possuído. Ter uma floresta exige o reconhecimento categórico do benefício ecológico da floresta e por isso não a preservar é incorrer num dano ecológico; não manter um carro que se tem é uma forma de negligência insípida; não proteger um amigo é uma forma de cobardia e oblitera em absoluto a forma ter um amigo. Ou seja, quem negligencia o carro ainda tem o carro, quem negligencia a floresta passa a ter gradualmente aquilo que foi uma floresta e quem negligencia um amigo deixa de o ter a partir desse momento. As qualificações temporais seguem-se da estrutura prática da unidade categórica. Logo, quem recupera o carro ou a floresta recupera em maior ou menor grau um status quo ante, ao recuperar a funcionalidade do carro ou da floresta, reinterpretando qualidade enquanto função; quem recupera um amigo não recupera um status quo ante, mas antes algo qualitativamente superior, reinterpretando qualidade enquanto reconciliação.
Conteúdo. Finalmente, ter implica uma relação contentor-conteúdo. Esta relação é categoricamente diferente da relação parte-todo. Aquilo que contem algo pode ter uma relação orgânica com o conteúdo, mas não necessariamente. O contentor pode conter coisas distintas em momentos distintos, mantendo sempre uma relação acidental com o conteúdo. Assim, um vaso pode conter, água, água e flores, só terra, terra e flores ou óleo. Já a forma como um crânio contém um cérebro não é acidental. A relação orgânica do crânio com o cérebro e todas as suas partes é a sua forma. A temporalidade da relação contentor-conteúdo é categoricamente interpretada dependendo do carácter essencial ou acidental desta relação.
A revelação da experiência prática do tempo através da unidade categórica: comunhão
A complexidade da qualificação categórica da experiência da temporalidade revelada pela interpretação da unidade categórica é equivalente à apreensão da natureza prática da experiência humana do tempo. Marx antecipa nos Manuscritos a dificuldade na apreensão prática da temporalidade. Aliás, esta constitui parte da sua revisão do conceito de alienação. A introdução a esta noção é feita através de uma descrição da experiência não-imediata que a humanidade, ou na designação de Marx, a vida da espécie, faz da sua própria actividade (328).[2] Alienação é nos termos dos Manuscritos uma perda da natureza que constitui o carácter inesgotável de uma forma de actividade, isto é, a personalidade individual ― a teoria da alienação apresentada nos Manuscritos é na verdade uma teoria da perda da razão prática e consequentemente uma perda de identidade da espécie humana.
A associação entre actividade humana e natureza é estritamente não-empírica. No Capital Marx faz questão de salientar o aspecto categórico da investigação sobre o valor para evitar um Lockeanismo simples. No entanto, nos Manuscritos, Marx tem o cuidado de evitar esta noção simples de actividade. A razão não consiste meramente na refutação de uma forma de individualismo ― embora, também o seja ― a razão é antes evadir a distorção categórica introduzida pelo carácter contemplativo do empirismo, sendo a principal consequência a impossibilidade de apreender a dependência humana como uma necessidade endémica que decorre no tempo. Ou, dito de outra forma, o empirismo não tem os recursos metafísicos (porque começa pela negação da personalidade) para apreender a forma prática da dependência humana; ou ainda, no empirismo não existem as condições de possibilidade para apreender a dependência humana enquanto a comunhão de personalidades.
A apreensão prática do tempo é feita, no argumento dos Manuscritos, através de uma consideração da morte. A morte é triunfo do limite biológico da espécie sobre a personalidade individual. No entanto, esta não torna a personalidade ininteligível na sua existência para a espécie. Personalidade permanece condensada numa comodidade, ou numa obra, e esta condensação é para os que permanecem vivos. Por esta razão, Marx interpreta o sofrimento enquanto o motor da satisfação da espécie:
This appropriation of human reality, their approach to the object, is the confirmation of human reality. It is human effectiveness and human suffering, for suffering, humanly conceived, is an enjoyment of the self for man. (351)
A experiência do sofrimento mediado por uma comodidade é a superação da monotonia do empirismo, assim como o resgate da personalidade do anonimato histórico. No entanto, a experiência da personalidade é agora feita enquanto sacrifício, e o efeito prático ganha a sua posição numa vida, mesmo que esta tenha sido uma vida obliterada pela história. Por sua vez, a história é categoricamente a expressão da forma da comunhão da espécie.
Um breve comentário acerca da noção de eficácia
A relação entre o conceito de eficácia prática, como pertencendo a uma natureza, implica uma distinção mais precisa. Se eu apenas sigo as instruções de alguém para completar um exercício de matemática tenho, claro, a intenção de completar o exercício e existe uma unidade prática entre o fim e meios ― a completude do exercício e seguir as instruções do professor. No entanto, e tal como qualquer professor sabe, ter a intenção de completar o exercício e ter a intenção de aprender a fazer o exercício não são a mesma coisa. A razão é que ter a intenção de aprender a completar o exercício envolve a unidade de meios e fins ― a completude e a instrução ― e envolve também a apreensão da minha capacidade de auto-constituição que por sua vez não consiste num fim adicional, mas apenas na forma como algo é feito; ou antes, corresponde à eficácia de uma forma de acção. (Esta é aliás a razão pela qual um bom professor se torna dispensável: com a autonomia do aluno o professor deixa de ser preciso.)
Marx parafraseia a noção de eficácia da autoconsciência de formas distintas. A noção de eficácia, no sentido de uma forma auto-constitutiva é interpretada por Marx ― tal como Hegel já o tinha feito ― enquanto uma noção estritamente pro nobis (Hegel chamaria a esta forma de acção geistlich). Nos Manuscritos a formulação é trabalhada a partir da noção de talento individual, e.g. a actividade cientifica (350). Mesmo no caso desta actividade, onde o talento é exercido individualmente, o benefício é coletivo. Há aqui uma dificuldade filosófica, uma dificuldade que o argumento dos Manuscritos nunca consegue superar: a compreensão do talento individual como sendo pro nobis deriva meramente do entendimento natural da pertença a uma espécie em particular «I am active as a man» (350). No entanto, chegar a esta apreensão é o resultado de um esforço filosófico, um esforço que a ser descrito metafisicamente não escapa a uma certa coloração hegeliana: «Therefore what I create for myself I create for society, conscious of myself as a social being.» (350). Nesta passagem a noção de eficácia é qualificada através da apreensão de uma condição natural, e esta condição natural por sua vez não pode meramente ser descrita de forma autotélica, mas envolve a apreensão metafísica do nexo entre consciência, personalidade e criação.
Personalidade individual e a estabilidade da espécie: sacrifício
A apreensão do sofrimento nos Manuscritos antecipa e qualifica relevantemente uma das principais conclusões do primeiro volume do Capital. Nomeadamente, a distinção entre trabalho antecipado e trabalho. Numa passagem importante, Marx reconduz a distinção à apreensão da personalidade individual:
What economists therefore call value of labour, is in fact the value of labour-power, as it exists in the personality of the labourer, which is as different from its function, labour, as a machine is from the work it performs. (Vol.1, Chp.19)
Esta distinção constitui a condição de possibilidade de transformar o trabalho humano numa comodidade e é descrito no argumento de Marx como um dos motores da alienação. No entanto, a analogia escolhida por Marx é problemática. Ou antes, é deliberadamente problemática: a comparação entre uma personalidade e uma máquina é absolutamente terrível. Neste momento do argumento, Marx assume a equivalência estrita entre personalidade e comodidade como uma forma de provocação e assim a nossa sensibilidade categórica é reconvocada. Da seguinte forma: O que seria sacrificar uma máquina à sua função? Deixar uma máquina funcionar até esta rebentar? Não teria de ser muito mais do que cumprir um prazo, por exemplo; e a ser uma forma de sacrifício, seria o mero custo de uma qualquer necessidade, nada mais. É cruel fazer a máquina existir durante muito tempo no seu limite físico? Ou, reduzir a máquina a pura antecipação; a antecipação de um modus vivendi? Em ambos os casos a resposta é meramente utilitária, a expressão vulgar de utilidade, ou de necessidade, ou pior ― da esperança. Ainda assim, a máquina é ininteligível sem ser em comparação com uma personalidade individual; ou seja, a máquina tem valor e é categoricamente apreensível enquanto uma forma reificada da razão prática. A máquina é a pura conveniência que ninguém pode ser sem um custo moral. A máquina é uma fantasia de utilidade, a evidência de uma tendência curiosa para um mundo projectado, onde a autonomia da moralidade coincide naturalmente com a dependência vivida entre os membros da espécie.
A distorção causada pela analogia deixa-nos com a seguinte questão: qual é a forma da potência que existe na personalidade de alguém? Esta é uma expressão geral da vida humana. Agora, seria um erro imaginar que esta resposta nos vai conduzir apenas à expressão pura da deliberação prática. Nenhum humano pode meramente ser desligado do seu princípio de vitalidade mantendo ainda assim toda a potencialidade para o futuro, tal como todas aquelas máquinas que deixamos de usar e mais tarde redescobrimos com espanto ainda funcionarem. A resposta a esta pergunta confere inteligibilidade ao terror que acompanha qualquer antecipação e a sua apreensão representa na verdade a apreensão da totalidade da razão prática humana: o facto de o seu funcionamento ser como um órgão vital, cuja vitalidade é compreendida tanto no seu funcionamento intacto como na sua ausência.
A analogia escolhida por Marx conduz o argumento presente a um segundo momento fundamental: a apreensão categórica de uma comodidade revelou a personalidade condensada. A potencial substituição da máquina pela personalidade é impossível de apreender sem horror: este horror não deve ser sentimentalizado, pois não é apenas empático. Aquilo que estou a chamar horror é uma primeira intuição ― estritamente moral ― do conhecimento categórico de alguém que tem uma personalidade. Aliás, no Capital Marx refere Aristóteles como tendo antecipado a ideia da transferência da criatividade humana para um implemento: como se as ferramentas se movessem por vontade própria, tal como as criações de Dédalos. Esta é uma de muitas variações da fantasia filosófica do autómato, talvez umas das primeiras. No entanto, Marx qualifica a ideia de dependência e estabilidade contida na fantasia do autómato: está longe de ser verdade que a existência de um tal autómato teria como efeito a suspensão para sempre de todas as formas de sacrifício de uma personalidade individual à espécie. O sacrifício é o motor de toda a vida coletiva e todas as vidas individuais tendem para a uma vida coletiva ― aquilo a que Marx chama alienação é na verdade uma forma de despersonalização.
2º momento de interpretação da unidade categórica que carateriza o verbo ‘ter’: as implicações metafísicas de ter personalidade
Pensem no esforço tremendo para manter um tableau vivant. O esforço de contenção necessário para imitar a perfeita ausência de vida. A perfeição mimética de uma forma de stasis é intolerável à personalidade, é a evidência que mesmo na forma de uma imitação a redução a uma comodidade é contrária à personalidade.
O processo pelo qual uma ou mais personalidades passam a estar condensadas numa comodidade pressupõe estes dois modos de ser. Dois modos que não podem ser vividos sem custo ― a passagem de um ser enquanto acção a um ser enquanto passividade. A passagem da acção à paixão é o sacrifício. O membro do tableau que encena a Última Ceia não o pode fazer para sempre, não o pode fazer durante muito tempo; ou, dito de outra forma, o membro do tableau não pode ser uma figura sem se sacrificar; ou, o membro do tableau não se pode despersonalizar permanentemente e completamente ― não pode resistir permanentemente à própria natureza.
*
Regressemos então a Aristóteles para completar a interpretação do verbo ter. Numa passagem relevante da Metafísica, Aristóteles procede à interpretação do verbo ter de uma forma que deve ser lida como complementando a investigação iniciada nas Categorias. Esta forma de clarificação decorre da tese inicial relativa à unidade das categorias: ou seja, que esta unidade tem de ser restabelecida continuamente. A aplicabilidade das qualificações do verbo ‘ter’ introduzidas na Metafísica à noção de personalidade tem de ser justificada pelo telos de um determinado esforço de compreensão da peculiaridade de um ser: no nosso caso, a interpretação daquilo que é ser uma pessoa. Aliás, esta é uma das pressuposições na interpretação da unidade categórica. (Por esta razão, Frede sugere que a noção de categoria vai sendo desenvolvida por Aristóteles de forma a interpretar o carácter essencial de algo: «…the what it is of something is, or is part of, the essence of that thing or, to use Aristotelian language, the what it is to be for that thing» (45).)
Deixem-me então dar mais um motivo para as considerações que se seguem: a interpretação da unidade categórica tem de ser reinterpretada com o fim de revelar a unidade das formas ter valor e ter personalidade. A primeira intuição é, como disse antes, a não-acidentalidade da comensurabilidade entre comodidades; a segunda consiste na inesgotável complexidade do processo de transferência da personalidade para uma comodidade. Aquilo que estou a designar enquanto complexidade inesgotável implica os constrangimentos históricos desta reinterpretação, assim como os constrangimentos sensíveis que interpretamos enquanto necessidade.
Ter personalidade enquanto posse
A paráfrase aristotélica deste sentido de posse é extremamente peculiar: dirigir algo de acordo com a própria natureza ou impulso (1023a). A disjunção é difícil de interpretar. Desde já, esta implica uma forma de imposição. Aristóteles dá como primeiro exemplo a febre; a febre possui alguém, no sentido em que se impõe à sua natureza. Aquele que é possuído pela febre, tal como aquele que é possuído por um impulso é forçado a dar lugar a uma natureza que não é a sua. A febre é a passagem gradual de um estado intacto a um estado patológico, o impulso é a sua versão pontual. O que caracteriza os dois exemplos é serem versões temporais diferentes de uma forma de imposição. Em ambos os casos alteração implica um status quo ante (a saúde) que é reposto, mas que pode admitir de uma alteração para um estado final, que pode ser uma forma de permanência (a doença).
No entanto, existe uma forma diferente de posse. Aristóteles dá como exemplo a forma como um déspota possui uma cidade. O déspota impõe necessariamente um novo status quo, mas não se segue que este tenha de impor um novo modus vivendi. A razão é que posse no sentido legal admite que não exista uma alteração na forma daquilo que é possuído. Quem é possuído pela febre altera, quem é possuído pela inspiração também; a cidade que é possuída por alguém, tal como um quadro que é comprado, apenas muda de dono. Este sentido de posse unicamente legal não é uma mera variação gramatical: implica que o valor de algumas coisas está na sua preservação e não na sua alteração.
O exemplo final de Aristóteles reinterpreta alteração de uma forma final: quem possuí uma camisola altera a sua forma através do uso. Uso exclui neste caso reposição da forma inicial. Este último exemplo condensa uma intuição acerca da noção de sacrifício: a camisola é possuída até a sua forma finalmente ceder, o atleta é possuído pela inspiração até a sua idade o travar. A forma da camisola é sacrificada ao uso, a vida do atleta à inspiração.
Ter personalidade enquanto forma
Posse implica então uma noção peculiar de recetividade. Esta noção de recetividade é o conceito utilizado por Aristóteles para interpretar a implicação entre posse e forma. O material recetivo, por exemplo o bronze, recebe a forma humana. Uma personalidade, enquanto material recetivo, recebe a forma da inspiração: recebe a forma do limite de uma atividade, i.e. o recorde mundial: ou recebe a forma patológica, o limite da forma intacta. Dado o carácter passivo, esta determinação implica qualquer forma de passividade. Por esta razão, Aristóteles estende o seu exemplo inicial da febre: o corpo humano que tem a febre recebe a forma da febre; ou seja, recebe a forma patológica que lhe é tão acidental como a forma humana é para o bronze.
A personalidade é uma forma de atividade que não é impermeável a um número inesgotável de acidentes ― esta é uma interpretação do aspecto passivo da personalidade. Por esta razão, a febre afeta a personalidade, tal como o cansaço afeta a personalidade, tal como a inspiração afeta a personalidade. A personalidade é finalmente ou intermitentemente um material recetivo, e a condição de possibilidade da sua recetividade é a sua natureza ativa, que representa por sua vez a condição de possibilidade da resistência.
Ter personalidade enquanto conteúdo
O argumento chega agora a um momento fundamental: a noção de conteúdo utilizada por Aristóteles tem de ser qualificada pela distinção entre atividade e passividade; ou a variação entre o carácter essencial ou acidental que discernimos antes entre contentor-conteúdo. Aristóteles usa três exemplos distintos que forçam o leitor a prestar atenção ao carácter peculiar da relação contentor-conteúdo.
O valor de um copo está em poder conter de forma eficiente mais do que um líquido. Ou seja, o valor do copo reside na putativa variabilidade daquilo que é contido, este é o seu valor enquanto contentor. O copo, se for de vidro, por exemplo, exibe um limite, não pode conter algo que é demasiado quente ou algo que é demasiado frio. No entanto, isto não exclui a possibilidade prática de fazer um copo de um material que não ceda a este tipo de limite. Nesse caso a forma do copo é determinada pelo carácter utilitário do conteúdo.
Esta última ideia oferece um contraste importante aos dois exemplos seguintes: a cidade contém os cidadãos, assim como o barco os marinheiros, apesar de a cidade não ser mais justa, nem o barco mais ágil, com um maior grau de variedade de cidadãos ou marinheiros. A categoria da qualidade é aqui relevantemente qualificada: a cidade é mais justa se contiver apenas cidadãos justos e nenhum injusto, o barco é mais ágil se contiver apenas marinheiros perspicazes e nenhum marinheiro indiferente. Ou seja, o valor da cidade depende da qualidade do seu conteúdo. Por esta razão, estender a constituição da cidade à injustiça destrói a cidade ― a forma da cidade oferece resistência à injustiça.
No entanto, as cidades parcialmente injustas, tal como o barco ineficiente, ainda podem ser reconhecidos como a mesma cidade ou o mesmo barco. Podem ser reconhecidos geograficamente, ou pelo seu nome, mas não sem a história que lhes é peculiar: a cidade que já foi mais justa, e o barco que já foi mais eficiente.
O exemplo final implica a relação parte-todo, e não sobrevive ao tipo de variação que comentámos a propósito dos exemplos anteriores. A relação parte-todo exibe uma forma de identidade não-simplesmente-variável; ou seja, quando uma parte muda, muda também o todo que continha aquelas partes; como por exemplo um corpo humano, mas não necessariamente uma máquina, onde a parte pode ser reduzida à sua funcionalidade. A cidade admite justiça em grau, tal como o barco admite eficiência em grau; já o todo, que é o desenho, pode conter mais ou menos traços, mas não da mesma forma que o autocarro pode conter mais ou menos passageiros. O desenho passa a ser mais ou menos nítido, mais ou menos expressivo, o autocarro apenas mais ou menos confortável ou mais ou menos pesado. Com a saída dos passageiros, o autocarro passa sem alteração a um status quo ante, esta forma de reversibilidade é impossível ao todo do desenho, com a obliteração de alguns traços o desenho é agora melhor ou pior, mas mesmo no caso de reposição de um traço, a reposição não restabelece a superfície pictórica ao seu status quo ante. Assim, também Vuillard foi o todo que unia todos os seus quadros, e tal como o homem que é privado de um dedo, também ele passou a ser diferente de cada vez que pintou um quadro.
Ter personalidade enquanto resistência
Resistir a algo que é dado na própria natureza. Aristóteles dá o exemplo de uma coluna, que tem como efeito arquitetónico impedir que o teto se comporte da forma que lhe é natural. A forma geral descrita por Aristóteles consiste precisamente em tentar apreender a necessidade de oferecer resistência a um tipo de movimento ou acção que é dado numa determinada natureza. O exemplo arquitetónico serve este propósito, pois sugere um todo apreendido na forma de uma interação. Neste sentido, tal como a vontade que oferece resistência ao desejo de comer mais bolo, as colunas opem-se ao peso. A existência de uma coluna, se não for meramente decorativa, ou a forma da existência de uma coluna é sua oposição. Claro, um desejo em particular é pontual, o peso do tecto é permanente. Mas a natureza que tem desejos é também permanentemente pesada, assim como a vontade que lhe resiste é força permanente. Aquilo que designamos como a forma arquitetónica intacta é por esta razão a forma eficaz da interacção ― esta é a generalidade que Aristóteles está a tentar mostrar. No último exemplo, Aristóteles descreve o sentido implicado pelo verbo ter como aquilo que tem a capacidade de manter algo junto, ou aquilo que oferece resistência à dispersão das suas várias partes. Desta forma a eficácia da personalidade consiste em manter unidos desejos que se podem opor, ou tenta manter unidos interesses que se alteram, ou tenta manter unidas convicções que são abaladas ou reforçadas, ou tentar manter unidas aspirações que falham ou não, ou tentar manter unidas todas as inferências verdadeiras apesar dos erros até, tal como o tecto, ceder de vez. No entanto, a forma como a personalidade oferece resistência à dispersão é contrária à forma do tableau. A condição de existência deste é a imobilidade, a condição de existência da personalidade é a resistência.
Explicitação de uma implicação metafísica
Nos Manuscritos encontramos a explicitação das implicações metafísicas da personalidade na forma de uma qualificação à noção aristotélica de ser:
Man as an objective sensuous being is therefore a suffering being, and because he feels his suffering (Leiden), he is a passionate (leidenschaftliches) being. Passion is man’s essential power vigorously striving to attain its object. (390)
A intuição acerca da resistência é dada pela paráfrase do sofrimento enquanto autoconsciente; ou, se preferirem, como o sofrimento vivido conscientemente. A ideia de paixão descrita enquanto a actualidade de uma determinada personalidade implica a ideia aristotélica de actualidade de um ser enquanto vida, ou enquanto a forma de uma determinada vida (1072b27). Enquanto definição daquilo que é uma personalidade, a ideia de paixão implica sofrimento, isto é, implica a forma peculiar de conter a realidade de uma harmonia que não é dada automaticamente. Resistir é a forma da autoconsciência, o modo característico da personalidade que tem o seu telos para lá daquilo que é imediato ― que identifica o seu fim como sendo não imediato: reparem que Marx parafraseia esta ideia enquanto esforço para apreender o seu objecto.
Esta última ideia pressupõe uma noção complexa de exterioridade. Uma concepção relacional com uma natureza, ou com a potencial ameaça de uma natureza que é externa à personalidade, mas da qual a personalidade depende. No entanto, e para os efeitos do argumento presente, podemos simplesmente isolar um dos aspectos mais característicos do argumento de Marx: a necessidade tem um carácter universal, não redutível à satisfação individual (esta é a razão pela qual no primeiro volume do Capital Marx afasta o argumento acerca do nexo valor-necessidade de uma forma de particularismo; ou seja, esta é razão pela qual Marx tem de preservar o carácter geral desta intuição: «The nature of such wants, whether, for instance, they spring from the stomach or from fancy, makes no difference» (Vol.1, Chp. 1).
O que temos então é a forma geral da personalidade enquanto constituída por necessidade, mas não constituída exclusivamente por tal necessidade imediata e local. O que temos é a revelação da necessidade de apreender que o modo mais imediato de satisfação constitui uma distorção da apreensão metafísica da nossa natureza. Ou seja, Marx tem de reverter o aspecto imediato de um mero sistema de satisfação como primeiro momento de revelação da comunhão (existe nos Manuscritos um correlato desta ideia, contida na crítica ao conceito de acção defendido por James Mill, que é na verdade uma forma de atomismo, 372).
A forma desta reversão é a explicitação de uma forma de cognição estritamente prática, que é uma forma de cognição não-imediata, ou não empírica.
A forma não-imediata da reversão
Uma comodidade não é um produto natural, por esta razão possui uma forma prática. A apreensão de uma forma prática é um elemento da autoconsciência. A sua existência é categoricamente coincidente com a condição de possibilidade da sua apreensão. No entanto, seria um erro imaginar que o problema metafísico é resolvido na apreensão imediata de uma comodidade; isto é, que a sua natureza é imediatamente pensada. A apreensão imediata de qualquer comodidade na vida quotidiana é estritamente utilitária. A emergência da necessidade torna a comodidade opaca. Isto é, afasta-nos da apreensão da sua condição de possibilidade. Kant notou o princípio de transferência que temos vindo a comentar numa tentativa de nos advertir para o reducionismo implicado por uma forma empírica de apreensão de uma outra pessoa.
Now I cannot have the least representation of a thinking being through an external experience, but only through self-consciousness. Thus such objects are nothing further than the transference of this consciousness of mine to other things, which can be represented as thinking beings only in this way. (A347)
Seria um erro imaginar que o comentário de Kant concerne meramente as condições formais de apreensão daquilo que é a personalidade. O tipo de reducionismo a que Kant se está a opor nesta passagem tende a funcionar como uma forma de cegueira perante aquilo que é uma personalidade. Realmente, a formulação de Kant é uma variação de uma das suas principais ideias: que a liberdade e a razão são a forma de uma vida, uma ideia que alguns românticos tentaram rejeitar. Por exemplo, pensem na personagem de Hoffman que, imune a um tipo particular de dissonância cognitiva, compreende a poesia como o princípio de apreensão da personalidade: «The poetical soul is only accessible to the poetical nature.» O erro principal de Nathanel ― provavelmente dada a sua vulnerabilidade ― consiste em imaginar que a forma da apreensão da personalidade poética é distinta da forma de apreensão que temos vindo a distinguir como categórica. A exclusividade que Nathanel imagina possuir, ou antes, a não generalidade que este imagina ser o verdadeiro princípio da apreensão do carácter único de uma alma é na verdade uma forma de projecção. A razão é a seguinte: o caráter único de uma personalidade é dado categoricamente através de uma apreensão geral de uma natureza. Nathanel está a tentar encontrar uma formulação para a forma de apreensão singular do amor ― no entanto, não é possível amar alguém sem amar os constrangimentos da sua natureza ou, dito de outra forma: o amor não é compreensível sem uma noção estável de natureza humana.
O carácter geral de uma natureza não é uma forma genérica de existência. Aliás, a apreensão da personalidade oferece resistência a qualquer redução ao genérico: a comodidade, pelo contrário, é utilidade genérica. No entanto, a necessidade de reversão que tenho vindo a apontar como o principal esforço filosófico de Marx, o resgate da história da produção enquanto o resgate da natureza prática da humanidade, exibe uma dificuldade peculiar.
Deixem-me continuar o exemplo de Nathanel: a reação do personagem de Hoffmann é motivada por uma advertência peculiar acerca do autómato, nomeadamente que este: «seems to us to be playing the part of a human being». Esta é uma vantagem que não estrutura a apreensão imediata de qualquer comodidade: na verdade, há algo de narcísico na apreensão imediata de uma comodidade: esta funciona como um espelho da necessidade para qualquer indivíduo. As acções de Olympia falham na constituição de uma unidade, e são por isso um mero agregado. Ou seja, são as instanciações particulares de um mecanismo. Claro, um mecanismo é o produto da razão prática, mas não é o princípio da razão prática. O mecanismo deteriora-se, tal como o corpo humano, mas não sofre. Por esta razão, o comportamento de Olympia está em desacordo com a familiaridade e a expectativa. Já uma comodidade, porque é a expressão da necessidade, é sempre familiar e expectável. Suponhamos que Olympia ganhava autoconsciência, ou seja, a capacidade peculiar de conhecer as suas acções e inferências, sonhos, etc. O seu mecanismo enquanto princípio causal nunca poderia justificar nenhum dos seus actos. Há algo de terrível na imagem de Olympia como tendo de assistir eternamente a todas as suas acções repetidas vezes sem conta; isto é, dada a possibilidade de substituir o mecanismo ad eaternum. Evidentemente que a nossa apreensão deste terror pressupõe o nosso conhecimento das nossas acções como uma unidade e não enquanto mera repetição ou antecipação; especialmente no caso de por exemplo um músico que repete as mesmas escalas ao longo de toda a sua vida. Aliás, o terror advém da imagem conter uma forma unheimlich de passividade (pensem na expressão Anscombiana: «a special sort of seeing eye in the middle of the acting», §32). Isto não se deve à impossibilidade de assistirmos às nossas próprias acções como espectadores, mas antes ao reconhecimento de que esta representa uma forma patológica ― o terror que estou a descrever consiste na apreensão da ausência absoluta de resistência e resistir é liberdade situada.
Indivíduo e Espécie
Existe uma dificuldade quase insuperável com o uso filosófico de indivíduo. Esta dificuldade é contemporânea e consiste na tendência para evitar a explicitação metafísica do conceito de indivíduo enquanto uma personalidade. A consequência política mais repugnante consiste na obliteração da personalidade através da destruição da resistência natural na personalidade individual. Ou seja, consiste na vulgarização da noção de comunhão, que é a causa principal de todas as sociedades comunistas em existência e que existiram ― todas estas implicam e implicaram a obliteração do conceito de indivíduo ou de personalidade.
O argumento que Marx fez, desde os Manuscritos, é um argumento acerca da forma não redutível da cognição de uma outra pessoa (este argumento é qualificado de forma relevante no texto da Ideologia Alemã na forma da reversão de uma relação entre indivíduos: 464). Por sua vez, esta não é compreensível sem um entendimento categórico de uma personalidade. Este é o motivo pelo qual Marx localiza o carácter universal desta forma de cognição na História ― isto é, a necessidade de renovar a sua apreensão: «species-being confirms itself in species-consciousness and exists for itself in its universality, as a thinking being» (390). No final, a personalidade é impensável sem a universalidade de uma espécie, e é impensável sem existir para si em comunhão com todos os outros ou é impensável sem liberdade e intolerável na forma de opressão.