O texto que se segue consiste numa interpretação da utilização da ideia de autoconservação, por parte de Schiller, enquanto elemento de uma poética. Dado que o ensaio foi lido e discutido no contexto de um colóquio, esta breve nota serve o propósito de dar algum contexto. 

O ensaio faz uma proposta que tem como ponto de partida a descrição feita por Kant do sujeito transcendental na primeira crítica. Claro, a aplicação deste conceito à leitura que Schiller faz da terceira crítica não pode ser feito sem muitas qualificações. Desde já, o sublime não é descrito como pertencente ao entendimento, mas antes à razão. Ainda assim, e mesmo nos termos da terceira crítica, a experiência subjetiva do sublime promove a imaginação por estar no limite do entendimento, mas não é por essa razão mera projeção, precisamente por ter como ponto de partida uma experiência da natureza, ou antes de um conceito subjetivo de natureza.

Tal como Kant descreve nas secções introdutórias, a analítica do sublime tem de explicitar a passagem da faculdade cognitiva através da imaginação ao desejo. Schiller introduz o conceito de autoconservação de forma a explicitar o carácter prático do sublime ab initio. As notas que se seguem tentam explicitar esta ideia como tendo o seu ponto de partida na relação entre um sujeito e um mundo, ou mais precisamente na relação entre um sujeito e a sua experiência do mundo, e finalmente, na relação entre um sujeito e uma experiência peculiar do mundo. Ou seja, as notas que se seguem são sobre a unidade de uma experiência do sublime que implica a passagem peculiar do teórico ao prático.   

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A subjetividade transcendental interpretada como garantia de uma experiência é semelhante ao impulso de autoconservação interpretado como garantia da presença de um desejo:

  1. A função da subjetividade transcendental como garantia de uma experiência é explicitada através da descrição kantiana do ato constitutivo que resulta na unidade da experiência como objetiva, no sentido relevante, que esta experiência, enquanto unidade autorreflexiva para um determinado sujeito, com uma determinada posição no mundo e que possui o conceito de experiência como podendo, no limite falhar ocasionalmente na constituição da objetividade, possuindo ainda, de forma relevante, o conceito de experiência como não podendo falhar em absoluto na constituição da objetividade. 

  2. Apesar do argumento transcendental conter uma forma de ceticismo residual, a teoria da unidade de aperceção está constituída de forma a revelar o carácter original da subjetividade transcendental, como relevantemente situada numa ordem espácio-temporal, e como constituindo a ordem objetiva de um mundo apenas: ou seja, a experiência é a garantia da objetividade ou é única garantia.

  3. A subjetividade transcendental interpretada enquanto garantia, é a condição de possibilidade de uma unidade da experiência num sentido geral (a unidade original), e é ainda, a garantia de uma experiência num sentido local, na medida em que de forma constitutiva produz continuamente uma unidade enquanto experiência para um sujeito, a partir de um determinado ponto, e por essa razão como conceptualmente estruturada numa forma que pode ser explicitada da seguinte maneira: a experiência é (a) comunicável e (b) criticável.  Aliás, mais precisamente as condições de uma experiência que enquanto experiência, sem abdicar do seu aspeto local, e por isso constituída de forma subjetiva é, (a) comunicável precisamente por ser (b) criticável enquanto inserida na ordem da objetividade: estes dois aspetos são a condição de possibilidade de uma forma complexa e inesgotável de comensurabilidade entre experiências subjetivamente constituídas por pessoas diferentes, em sítios e tempos diferentes. 

  4. A possibilidade constitutiva da unidade da experiência que relevantemente se insere na ordem objetiva e pode ser comunicada e criticada constitui o interesse, relevantemente na primeira pessoa, de um sujeito que mantém a sua experiência como relevantemente contribuindo para a ordem da objetividade: ou seja, este interesse na confluência da unidade da experiência qua objetividade é uma interpretação da função da garantia da subjetividade transcendental. Por exemplo, se alguém comunicar uma experiência, representável como uma unidade contínua, que obedece a uma forma espácio-temporal relevante para a inteligibilidade teleológica dessa experiência, e que enquanto segmento de uma unidade experiencial é comunicável como relevantemente contribuindo para a ordem da objetividade, então essa unidade é passível de ser criticada na seguinte forma: viste a forma como o falcão desceu sobre aquele pássaro, estando ambos em pleno voo! Sim, mas não era um pássaro, era um morcego, do segundo andar é mais fácil de perceber. O diálogo é a evidência de uma experiência enquanto constitutiva da ordem da objetividade, e é ainda evidência da espécie de garantia que o sujeito transcendental confere à unidade da experiência: a garantia da relevância subjetiva da unidade da experiência enquanto dependente da ordem objetiva: ou, a subjetividade transcendental é incompatível com a indiferença, relevantemente na primeira pessoa, ao nexo entre a unidade subjetiva da experiência e ordem objetiva. 

  5. O diálogo acima representa a garantia de uma experiência do sujeito transcendental qua interesse na constituição da objetividade sem prescindir, relevantemente, da localidade constitutiva da unidade experiencial subjetiva. No entanto, uma das condições de possibilidade da comunicabilidade e crítica de uma unidade experiencial subjetiva é que sendo a experiência ab initio conceptual esta pode assumir um aspeto geral ou pode ser remetida a unidade original que contém uma apreensão do funcionamento das faculdades ou capacidades para o conhecimento.

  6. Esta forma de generalidade da experiência condensa dois elementos importantes: a espontaneidade conceptual da razão enquanto ato constitutivo e a presença de um sujeito empírico que relevantemente localizado na ordem objetiva do mundo consegue generalizar segmentos da unidade da experiência subjetiva enquanto comunicáveis qua experiência. A comunicabilidade de uma experiência qua experiência, assim como a possibilidade da crítica relevante de uma experiência qua experiência revelam a mútua dependência entre a subjetividade transcendental e a posição local num mundo enquanto presença

  7. Esta mútua dependência entre garantia e presença é constitutiva do interesse poético. Na medida em que a comunicabilidade de uma experiência enquanto pertencendo a uma ordem reconhecivelmente objetiva, não tem de prescindir da sua relevância local, sendo aliás esta relevância valiosa para a condição da comunicabilidade crítica. Este interesse poético pode ser descrito — entre outras maneiras — como um interesse peculiarmente humano na inesgotabilidade da experiência de um mesmo mundo objetivo a partir de pontos distintos. Este interesse tem de ser caracterizado como um interesse na relevância de uma experiência comunicável, que condensa a presença de alguém. 

  8. No entanto, a experiência poética não é necessariamente redutível à comunicação de uma experiência qua experiência qua relato numa forma assertiva, mas antes uma experiência qua experiência que por suprimir através da atenção a continuidade monótona da experiência qua mero relato, podendo depois ser condensada numa forma poética. Ou seja, a comunicabilidade poética é relevantemente inserida na ordem objetiva, enquanto unidade da experiência, mas pode superar o mero relato da experiência, alterando os elementos constitutivos da experiência ou até mesmo mantendo estes. Isto que dizer que a comunicabilidade poética está necessariamente relacionada com a inteligibilidade natural do interesse poético que contém a possibilidade de tornar irrelevante a condição (b) da criticabilidade de uma experiência qua experiência qua mero relato numa forma assertiva ou para um poeta a objetividade de uma experiência enquanto unidade constituída de forma subjetiva é indispensável, sem a sua forma final ter de ser um relato monótono da continuidade da experiência qua asserção ou experiência é o ponto de partida da forma poética, mas não a sua forma final. 

  9. Assim, a superação da monotonia da experiência é uma condição necessária, mas não suficiente, da condensação da unidade da experiência objetiva numa nova forma e é ainda evidência de um desejo por parte de um poeta para comunicar a sua experiência qua experiência. Este desejo tem de ser pensado como formado por um nexo orético no qual ambos os seus elementos constitutivos são em absoluto indispensáveis: a apreensão da continuidade do mundo enquanto experiência relevantemente subjetiva e a condensação dessa experiência numa forma comunicável que supera a monotonia e converte a unidade da experiência numa unidade formalmente singularaquele poema, um poema em particular e não um poema em geral

  10. Schiller interpreta estes dois aspetos como sendo constitutivos da experiência do sublime. A noção que utiliza para dar sentido a este nexo orético é o impulso de autoconservação. A experiência poética é naturalizada de forma a garantir que a ameaça do mundo tem como efeito relevante produzir a apreensão do desejo de expressão enquanto continuidade da experiência precisamente porque quebra a monotonia através do carácter avassalador da experiência sublime. Assim, o instinto de autoconservação é uma garantia de uma forma experiência com relevância para a forma poética, mas não é ainda uma forma poética relevante.  

  11. Ou seja, a introdução por parte de Schiller da noção de autoconservação é uma garantia de uma presença, assim como de uma experiência existencial num mundo objetivo. Embora a noção existencial do impulso de autoconservação necessite do impulso primitivo para proteger a vitalidade enquanto desiderato, para haver a experiência do sublime é necessário prescindir do aspeto real do impulso de autoconservação que traduz numa reação a uma ameaça e anula a atenção necessária à supressão da monotonia.

  12. Assim a garantia da noção de desejo como primitiva à experiência do sublime aparece como uma condição necessária, mas não suficiente da atividade poética. Em relação à teorização na analítica do sublime, a introdução da noção do impulso de autoconservação efetua de forma plausível a transição da noção teórica do sublime matemático para a noção prática.

  13. A potencialidade que Schiller reconheceu no caráter primitivo da noção de impulso de autoconservação é que este, tal como a noção de um sujeito transcendental enquanto experiência, possui a mesma generalidade em relação a todos os sujeitos possíveis, implicando ainda de forma relevante a subjetividade local de um determinado sujeito reinterpretada existencialmente.

  14. A vantagem de uma experiência que implica um elemento existencial está na sua potencialidade para uma representação poética. Esta vantagem dramática possibilita ao leitor compreender o sublime como um princípio de renovação da poesia a partir da natureza, devendo este conceito de natureza ser qualificado. A plausibilidade desta última ideia necessita assim de uma filosofia da arte em continuidade com uma poética.  O carácter existencial da garantia orética através da experiência do sublime contém a ordem objetiva do mundo como potencial representação poética, por garantir a unidade objetiva da experiência superando a monotonia da continuidade experiencial através da violência da experiência. 

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