[A Forma de Vida tem o prazer de apresentar a tradução de um texto originalmente escrito em inglês e que será publicado num número especial de Conversations: The Journal of Cavellian Studies, editado por David LaRocca.]
Destinado a ser apresentado numa cerimónia de homenagem, «Celebrar a Vida e a Obra de Stanley Cavell», Emerson Hall 105, Universidade de Harvard, sábado, 10 de Novembro de 2018.
É uma honra estar aqui, com membros da família Cavell, com amigos e com colegas, para celebrar a vida e a obra de Stanley Cavell, para com quem tenho incalculáveis dívidas de gratidão e que recordo com o maior afecto e a maior admiração.
O papel de Cavell na minha vida foi o de um pai filosófico. Ele é sobejamente conhecido por defender que «a filosofia é a educação dos adultos»,[1] e o tipo de paternidade a que me refiro implicou abrir a porta da filosofia ao meu eu de jovem adulta. Não se tratou de uma indução num programa de investigação teórica do tipo que já na altura dominava a filosofia académica. O método de Cavell era incitar os alunos a confrontar e interrogar as nossas próprias reacções intelectuais, levando-nos a questionar «porque fazemos o que fazemos, julgamos como julgamos»,[2] e pondo-nos em posição de pensarmos por nós próprios. É um projecto pedagógico exigente, e Cavell dedicou uma assinalável quantidade de tempo e energia a apoiar os jovens pensadores que o rodeavam. Aquilo que vou contar é a história de duas coisas extraordinárias que ele fez enquanto meu professor, acontecimentos tornados mais marcantes pelo facto de eu não ser oficialmente sua aluna.
A primeira vez que encontrei Cavell em Harvard foi no final dos anos oitenta, era eu aluna de licenciatura. Já há algumas décadas que era um dos filósofos mais admirados e amados do mundo, por isso não é de estranhar que eu tenha ficado curiosa e que me tenha inscrito num seminário dele sobre Emerson, diligentemente escrevinhando apontamentos à medida que ele dissertava sobre coisas como a aversão ao conformismo e a confiança em si. Embora na altura não tivesse uma noção clara do que seria trazer estas coisas para a vida em si, senti um entusiasmo que não conseguia explicar e queria saber mais. Era, no entanto, demasiado tímida para o abordar ou ir ao gabinete dele no horário de atendimento. Os meus professores, de forma geral, impressionavam-me como se fossem seres de outro mundo — uma experiência nada invulgar para uma estudante vinda de um meio não-académico — e, à luz do modo ao mesmo tempo jubilantemente descontraído e marcadamente grave com que envergava a sua extrema amplitude de conhecimento, Cavell era particularmente assustador. Particularmente encantador e, por isso, particularmente assustador. Não lhe pedi para orientar a minha tese de licenciatura, embora fosse substancialmente dedicada à sua obra. Contudo, quando chegou a altura da defesa oral da tese, para a qual caiu no engodo de ser arguente, esforçou-se por contar piadas e fazer apartes com vista a descontrair-me. Quando, depois de ter o meu AB,[3] consegui um cargo de professora numa escola internacional no Equador, ele encorajou-me a candidatar-me a programas de doutoramento em filosofia e escreveu cartas de recomendação para as minhas candidaturas. E, quando, por causa de o meu companheiro — Nathaniel — estar na Faculdade de Medicina de Harvard, suspendi o meu programa de doutoramento na Universidade de Pittsburgh para fazer um ano académico de novo em Harvard, Cavell contratou-me como sua assistente de investigação e também enquanto uma das palestrantes do seu icónico seminário Perfeccionismo Moral. Isto foi uma breve amostra das minhas interacções iniciais com Cavell, e, embora já tivesse muito por que estar grata se fosse tudo o que houvesse a dizer, trata-se apenas do cenário para os episódios mais marcantes que quero contar.
Saí de Pittsburgh dois anos antes de terminar o doutoramento. Por algo que não foi de todo responsabilidade minha, não conseguia continuar ali, e a circunstância foi palco do único período gravemente triste da minha vida. Com vista a tirar-me de Pittsburgh, o Nathaniel fez por obter uma bolsa de estudo em saúde pública em Harvard, e ambos conseguimos lugar como preceptores residentes na Mather House. Teoricamente, este seria um contexto deveras satisfatório para terminar o doutoramento, mas na prática as coisas não estavam bem. Deixei de conseguir trabalhar. O meu método habitual envolvia um exercício de visualização em que mapeava mentalmente um conjunto de ligações conceptuais e depois, por assim dizer, andava pelo espaço relevante até estar confiante de conhecê-lo bem. Mas havia sido abalada na minha capacidade de me mover com confiança por entre um conjunto de conceitos. Não conseguia fazê-lo, e durante quase um ano desisti da ideia de uma carreira em filosofia, esperando apenas terminar uma dissertação aceitável. Não que tenha estado inactiva durante este período. Dava aulas e interagia com os meus pares de filosofia, o que incluía reunir-me com Cavell de vez em quando. Mas, mesmo com amigos mais chegados eu não falava muito sobre o que se estava a passar, e de modo nenhum me teria passado pela cabeça sobrecarregar Cavell. Pessoalmente, ele era, segundo a minha experiência, capaz de silêncios expectantes animadores, destinados a encorajar um interlocutor. Mas não era propenso a fazer perguntas despropositadas. Mesmo assim, foi uma das poucas pessoas na minha vida que não apenas reparou que eu já não era a pessoa que tinha sido, mas que também reconheceu abertamente que o sabia. Cavell tinha obviamente noção de que este gesto de reconhecimento era tudo menos eticamente insignificante — ele é, afinal, o filósofo que escreveu o livro sobre estes assuntos[4] —, e, longe de se esquivar às exigências que tal lhe impunha enquanto meu amigo e professor, acolheu-as, descobrindo maneiras de me ajudar a reconstruir o respeito por mim própria.
Uma vez, no meu pior momento, encontrei-me com ele ao final da manhã no café da Beacon Street que ficava do lado oposto à sua casa, onde era costume encontrar-se com alunos e colegas, o Busy Bee.[5] Falámos sobretudo do tipo de coisas de que falávamos maioritariamente naqueles tempos — a escrita, textos filosóficos que partilhávamos, amigos comuns, feminismo, política, literatura, cinema e por aí adiante —, mas eu tinha-me enchido de coragem para lhe dizer uma coisa, e por fim consegui, com um esforço enorme, pronunciar algo como: «Preciso de alguém que me diga que acredita que eu consigo fazer isto.»
Mostrou a consideração que teve por aquilo que lhe dissera respondendo-me no seu modo vagaroso, encantador. «Sempre que quiseres», disse ele, «sempre que quiseres.»
Passados uns momentos, continuámos a falar sobre outros assuntos. Mas ele estava a falar a sério, e esteve à altura do que disse.
Dizem que nenhuma boa acção fica impune, e a minha segunda historieta não contradiz em nada este exemplo de sabedoria popular. No tempo em que era sua assistente de investigação, em 1994, perguntei a Cavell se oficiaria uma cerimónia celebrativa da minha relação com o Nathaniel. Com treze anos, reconheci o rótulo de «feminista» como adequado à imagem que tinha das minhas próprias aspirações, e — aproveitando a deixa de uma visão do mundo social em função do género de que não vou falar aqui — decidi nunca casar. Quando li a obra de Cavell sobre o casamento, a distinção que faz entre a instituição e o ideal do casamento causou-me uma grande impressão.[6] Mesmo antes de me ter deparado com a expressão «cerimónia de compromisso», os seus trabalhos sobre estes temas já me tinham sugerido a possibilidade de uma fête não-institucional em honra do ideal. Então, se eu e o Nathaniel íamos para a frente com tal celebração, logicamente a única pessoa que poderia presidir a ela de forma justa seria Cavell. Durante o difícil período após ter saído de Pittsburgh, deixei simplesmente de pensar nisso, mas, quando as coisas se tornaram mais fáceis outra vez — algo que devo em grande parte a Cavell —, recuperei o plano. O próprio Cavell relata que «aceitou com satisfação o [meu] convite para [ele] desempenhar o papel de presidir ao que se convencionou chamar uma cerimónia de compromisso»,[7] e, embora tal esteja de acordo com a minha memória dos acontecimentos, lembro-me de ficar admirada pela seriedade com que considerou o nosso convite. Em 2000, o Nathaniel e eu mudámo-nos para Manhattan para ocupar os nossos primeiros lugares como professores auxiliares, ele na Faculdade de Medicina de Cornell e eu na New School for Social Research. Quando abordei Cavell novamente acerca da nossa ideia para a cerimónia, ele sugeriu que eu fosse até Boston para falarmos sobre isso, coisa que obviamente fiz, embora não sem algum temor e tremor.
O Nathaniel e eu acabámos por convidar amigos e colegas para os terrenos de uma casa de campo dos pais do Nathaniel, no norte do estado de Nova Iorque, para dia 15 de Setembro de 2001.[8] Quatro dias antes da nossa celebração, aviões voaram contra as torres do World Trade Center, apenas uns quarteirões a norte do apartamento em Battery Park City onde na altura morávamos. Mesmo enquanto, com milhares de outras pessoas, estávamos a tentar fazer o caminho a pé a oeste e a norte das torres, decidimos que, a ser possível, iríamos avante com os nossos planos. Embora alguns amigos e familiares que estavam a planear apanhar um voo para Nova Iorque não tenham conseguido juntar-se a nós, a festa — que incluiu, além de um número assinalável de filósofos e médicos de Boston, a quase totalidade do corpo docente de filosofia da New School for Social Research — acabou por ser maior, e não mais pequena, do que se esperava, avolumando-se com mais de duzentos convidados. Não foi um dia em que alguém mostrasse escrúpulos em trazer mais um amigo, vizinho ou familiar. O próprio Cavell disse mais tarde ter tido dúvidas acerca do seu desempenho enquanto mestre de cerimónias. Observando que, obviamente, ele não podia dizer «declaro-vos marido e mulher», afirmou ter-se depois censurado «por não ter tido a presença de espírito para fazer uma declaração final que incluísse todos os presentes, [algo] que tivesse atingido aquilo a que Austin dá o nome de “entendimento” num enunciado performativo».[9] Apesar das apreensões de Cavell, a sua conduta na cerimónia foi, segundo me lembro, brilhantemente magistral, tornando os procedimentos em algo completamente natural e dotado de autoridade, e Cathleen Cavell estava lá com ele, ambos formidavelmente elegantes, contaminando com a sua graça e dignidade naturais todo o evento. O Nathaniel e eu ficámos sem nenhuma dúvida de que o efeito que pretendíamos — o de que a nossa união recebera a aprovação do reconhecimento colectivo — tinha sido alcançado.
Cavell morreu numa altura em que, com a ascensão dos movimentos de extrema direita, impelidos pelo ódio, nos Estados Unidos e não só, o discurso e a prática políticos estão a tornar-se cada vez mais sinistros e violentos. Sei que não sou a única entre os filósofos aqui reunidos a acreditar que se tornou urgente identificar e empregar recursos para uma crítica eficaz. Nem sou a única a defender que é imperativo estar disposto a recorrer às ferramentas filosóficas que herdámos e a examiná-las, deixando espaço para a possibilidade de termos de rejeitar algumas por serem inúteis ou em si mesmas ideológicas. Este exercício de auto-análise foi aquilo que Cavell ensinou mais fervorosamente, sublinhando de forma consistente a sua importância para uma sociedade democrática.[10] Termino com a gratidão ilimitada que lhe devo, não apenas por me ter convidado a entrar para uma irmandade de filósofos socialmente comprometidos, mas por me ajudar a ultrapassar um abalo na minha auto-percepção que outrora fez com que esta vida filosófica parecesse fora do meu alcance — e, na verdade, por mostrar com grande virtuosismo que, longe de ser incompatível com a alegria, a seriedade do empreendimento é na vida uma das mais gloriosas e felizes buscas.
[1] The Claim of Reason: Wittgenstein, Skepticism, Morality, Tragedy, Oxford, Oxford University Press, 1979, p. 125.
[2] Ibid.
[3] A.B. é abreviatura de «artium baccalaureus», o nome latino para Bachelor of Arts (B.A.), que a Universidade de Harvard usa para designar este grau. (N. da T.)
[4] Ver The Claim of Reason, op. cit., em particular a Parte II. Ver também «Knowing and Acknowledging», em Must We Mean What We Say? A Book of Essays, Cambridge, Cambridge University Press, 1969, pp. 220-245 e Disowning Knowledge: In Seven Plays of Shakespeare, Cambridge, Cambridge University Press, 1987.
[5] Devo a David Cavell o ter-me lembrado do nome deste estabelecimento.
[6] Pursuits of Happiness: The Hollywood Comedy of Remarriage, Cambridge, MA, Harvard University Press, 1981.
[7] Little Did I Know: Excerpts from Memory, Stanford, CA, Stanford University Press, 2010, p. 519.
[8] Em Little Did I Know, op. cit., Cavell descreve a cerimónia como tendo tido lugar em Massachusetts Ocidental. Embora se trate de um erro, é um erro compreensível. A propriedade onde a cerimónia teve lugar fica em Hillsdale, NI, muito perto da fronteira com Massachusetts, e a pousada onde alojámos os Cavell fica, de facto, em Massachusetts.
[9] Little Did I Know, op. cit., p. 520.
[10] Sobre este assunto, ver Nancy Bauer, Alice Crary e Sandra Laugier, «Stanley Cavell e a Contradição Americana», em The Stone no New York Times, 2 de Julho de 2018.
* Tradução de Helena Carneiro.