Linha de Fuga

Conhecer a terra a partir do ar —
eis um projecto que não tem a ver
com ter peso e dois pés e caminhar
 

nem ver coisas de perto e perceber
que se bate um ritmo na vertical.
Não. Entre pairar e apreender,
 

de longe, a luz e a terra plural;
entre a suspensão e a velocidade
que produz ritmos na horizontal;
 

entre a terza rima alada de Dante
e tudo o resto; entre uma sombria,
um grifo ou uma garça-branca-grande;
 

a rola-do-mar e a cotovia,
a alma-de-mestre e o cisne-mudo,
a escrevedeira-das-neves, a cia,
 

o melro e o ganso-de-bico-curto;
o flamingo e a gaivota-marfim,
o pintarroxo, o pilrito-escuro;
 

e até mesmo entre o bufo e o chapim,
o chapim-rabilongo e a carriça,
o grou e a gaivota-de-Audouin,
 

uma caturra, um galo de crista,
maçarico-bique-bique, marabu,
e uma mariquita-de-mascarilha;
 

entre todos estes e mesmo algum
que ainda não tenha sido inventado,
pássaro trazido pelo simum,
 

nunca antes visto, arrevesado,
pássaro impróprio, inexistente,
tão novo que ficasse camuflado,
 

desapercebido, intransigente,
suspenso entre o caos, o ar e a luz;
entre isto e a imensa terra inclemente,
 

a terra que nos oprime e conduz,
e a cinza, a leveza e tudo o resto,
tudo o que nos eleva em contraluz;
 

entre andarmos de pé e essoutro gesto —
existe uma vertigem e um abismo
e a alma sempre grita: «Presto! Presto!»
 

— que a vida é pouca e falta um paraíso
em todas as nossas visões de agora.
Falta principalmente um espaço liso
 

e um sobrevoo que liberte a hora
do que lhe pesa — saudade invertida
que é a de olhar o que vemos agora

como quem morre por estar de partida.
Presto! — porque é necessário compor
outra coisa mais suspensa e mais viva.
 

Amar não basta; nem sequer a dor.
Corte amorosa é coisa de pássaro.
Cenas, cantos e aspecto de flor
 

são tarefas de ânimos diáfanos,
porventura cordatos, ou volantes,
como o Scenopoeetes, quase cálamo,


que escolhe e corta as folhas circundantes,
uma por uma, com arte e destreza,
virando o seu lado mais faiscante
 

para cima, compondo breve cena,
um palco subtil debaixo de um ramo
onde enfim se tenta um canto que exceda


o elã, nem divino, nem humano,
mas quase imperceptível, mineral,
como uma linha de fuga num plano
 

que não é nem coisa, nem animal,
talvez nem cosmos, nem corpo, nem alma,
mas uma espécie de vida atonal.
 

Não basta ter uma crista bem alta,
nem sequer um bom esqueleto pneumático.
É preciso ser mais que ave peralta —
 

— ou menos. Porventura um branco árctico,
um súbito tédio ou um vazio,
qualidade intensiva, som abstracto,
 

mas que flui mais forte e veloz que um rio —
o desejo.


Alçapão — Quadrados no Chão

Por baixo dele, a morte continua
mas não aqui, CUBRIQUE RUDO,
aqui há um segredo por detrás do medo,
aqui é tremendo:
o ar.
 

Lírido, arílico, ardírido, fúrgido,
será possível um dia
percorrer todo o infinito que existe
na franja de um voo?
 

Haverá por aqui tantos vazios
como aí, nas entremargens do difuso,
vazios suficientes
para fazer saltar cavalos?
 

O que é tremendo é o ar.
Não se enganem, esses que descobrem
a violência nas grandes coisas.
Não são sublimes os rochedos,
nem as tempestades imensas, nem
as montanhas, o que é tremendo,
o que é tremendo é o ar,
batrílico, imbrilionado, colírico,
caos irisado de onde as cores
emergem, como velocíssimas
coisas volantes.

 
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