CONSELHO
Cerca de grandes muros quem te sonhas.
Depois, onde é visível o jardim
Através do portão de grade dada,
Põe quantas flores são as mais risonhas,
Para que te conheçam só assim.
Onde ninguém o vir não ponhas nada.
Faze canteiros como os que outros têm,
Onde os olhares possam entrever
O teu jardim como lho vais mostrar.
Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém,
Deixa as flores que vêm do chão crescer
E deixa as ervas naturais medrar.
Faze de ti um duplo ser guardado;
E que ninguém, que veja e fite, possa
Saber mais que um jardim de quem tu és –
Um jardim ostensivo e reservado,
Por trás do qual a flor nativa roça
A erva tão pobre que nem tu a vês…
Fernando Pessoa
Embora não seja datado, sabe-se que «Conselho» foi o último poema publicado por Fernando Pessoa, em Novembro de 1935 (mês da sua morte), no terceiro número da revista Sudoeste. A minha apresentação agrupou em torno de «Conselho» um conjunto de textos directa ou indirectamente relacionados com o poema: parte do ensaio «Álvaro de Campos I ou as audácias fictícias de Eros», de Eduardo Lourenço (Fernando Pessoa Revisitado, 1973); parte do poema «Autocrítica», de Alexandre O’Neill (Feira Cabisbaixa, 1965); parte de um poema de Mário Cesariny (O Virgem Negra. Fernando Pessoa explicado às Criancinhas Naturais e Estrangeiras, 1989). A leitura baseou-se na intuição de que nestes textos está patente um mesmo preconceito em relação a Fernando Pessoa, que consiste em contrapor a sua vida «humana» à sua vida «literária», com prejuízo da primeira; isto é, concluindo-se que a primeira seria, ao contrário da segunda, deficiente. Tratando-se de um preconceito comum de leitores e críticos em relação a escritores, tal parece exacerbar-se quando o escritor é Pessoa, com a particularidade de aquilo que se contrapõe à literatura ser, mais precisamente, a sexualidade.
A primeira dificuldade do poema é a identificação do referente de «quem te sonhas», no primeiro verso. O uso do verbo «sonhar» como pronominal e reflexivo, em que «sonhar-se» se comporta como «magoar-se» ou «lavar-se», recaindo a acção do sujeito sobre si, resulta em estranheza gramatical. Se em vez de «quem te sonhas», no entanto, tivéssemos «quem tu és» — cerca de grandes muros quem tu és —, não seria talvez menos difícil identificar o que «de grandes muros» se deveria cercar. Reconhecendo e abraçando a dificuldade (que nem é das maiores, no poema), podemos conviver com ela considerando que «sonho» é metáfora recorrente em Pessoa para «literatura»; nesse sentido, «quem te sonhas» pode ser lido como «quem te escreves» (um tipo de estranheza gramatical não alheio a Pessoa), ou até como «quem tu és» (que aparece, aliás, no terceiro verso da terceira estrofe).
Retoricamente, o poema funda-se numa antítese entre mostrar e esconder (o visível e o invisível); e entre fazer e não fazer (a acção e a inacção, ou a não-acção). O visível é do domínio da acção, e o invisível do domínio da inacção. O que se esconde é deixado sem cuidados, ideia expressa de forma abrupta, numa única frase — à semelhança do que acontece no primeiro verso do poema —, no último verso da primeira estrofe («Onde ninguém o vir não ponhas nada.»), e concretizada nos últimos três versos da segunda estrofe («Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém, / Deixa as flores que vêm do chão crescer / E deixa as ervas naturais medrar.»). O que se mostra, por sua vez, dá trabalho («Põe quantas flores são as mais risonhas»; «Faze canteiros como os que outros têm»). A antítese é sintetizada no belíssimo verso «um jardim ostensivo e reservado», que se prestaria a ser uma boa definição de poema, quando não uma definição ainda melhor de ser humano. O lado «ostensivo» do jardim é o das «flores mais risonhas» e dos «canteiros como os que outros têm»; o acesso ao lado «reservado» está condicionado pelos «grandes muros».
Os verbos como «ver» e seus correlatos — «entrever», «fitar» — dependem do verbo «mostrar», sendo o desígnio de «mostrar» expresso pelos verbos «saber» e «conhecer»: «Para que te conheçam só assim»; «E que ninguém, que veja e fite, possa / Saber mais que um jardim de quem tu és». Quanto ao «duplo ser guardado», podemos entendê-lo mais propriamente como um ser duplamente guardado: pelos muros e pelo jardim. Se os muros e o jardim servem para alguma coisa — para guardar e esconder —, não é certo que a erva e a flor nativa tenham uma finalidade. Sabemos, porém, que o seu desenvolvimento é inevitável. Nesse sentido, o conselho é parcialmente vão: ninguém precisa de deixar crescer e medrar «as flores que vêm do chão» e «as ervas naturais», porque elas crescem e medram naturalmente, e fazem-no fora do nosso alcance. Se um conselho é sempre redundante da perspectiva de quem o dá, quando é dado de si para si, como parece ser o caso, e tratando-se de um poema, estaríamos na presença de uma «arte poética». Segundo a leitura que faço, «Conselho» é um poema sobre o que nos está vedado, sobre o que não vemos e se desenvolve sem a nossa agência — sobre o que desconhecemos nas nossas vidas, «humanas» ou «literárias».
É característica habitual dos críticos tentarem ver além dos muros que os autores, propositadamente ou não, colocam em seu redor. Fernando Pessoa, aliás, diz algo sobre isso na carta a João Gaspar Simões de 11 de Dezembro de 1931, apresentando como funções do crítico, entre outras, a seguinte: «compreendendo a essencial inexplicabilidade da alma humana, cercar estes estudos e estas buscas de uma leve aura poética de desentendimento. Este terceiro ponto tem talvez qualquer coisa de diplomático, mas até com a verdade, meu querido Gaspar Simões, há que haver diplomacia.» (Itálicos meus.) Eduardo Lourenço vê em «Conselho» a diplomacia poética e impotente de Pessoa, a auto-ocultação no seu nível mais elevado, pois é à sexualidade que diz respeito. Para Lourenço, a heteronímia, em particular, foi uma estratégia, uma solução «precária», mas «eficaz», que permitiu que o «enclausuramento» de Pessoa não fosse total. A heteronímia teria sido organizada por um impulso de ordem erótica, manifestando-se e ocultando-se nela o «mistério de Eros» particular de Pessoa. Na heteronímia vê Lourenço «três formas distintas e entre si ligadas» da «sexualidade branca» (a «impossível indiferença sexual») de Pessoa. O que está em causa na sua interpretação é a ideia de que Pessoa não podia escapar ao desvendamento inerente a toda a criação e a toda a linguagem, por muitos esforços que empregasse no cultivo do seu jardim, e «preferindo a tudo, incluindo a saída pela loucura ou o suicídio, o jogo que sem cessar o alude, em vez da sua revelação». Na obra de Pessoa vê Eduardo Lourenço, como afirma também no ensaio «Fernando Pessoa ou o Não-amor» (Fernando, Rei da nossa Baviera), a manifestação da experiência da ausência do Eu a si mesmo e ao mundo, traduzindo cada um dos heterónimos uma «única e estranha visão do amor como ausência suprema», como «não-amor» — Lourenço refere ainda um «angelismo erótico» e um «horror ao amor em geral». Lembramos o Fausto de Pessoa: «Sinto horror / à significação que olhos humanos / contêm» (Terceiro Tema, XII); «O horror metafísico de Outrem! / O pavor de uma consciência alheia / Como um deus a espreitar-me!» (X).
Na leitura de Eduardo Lourenço, vejo enfim uma crítica velada a Pessoa: seria poeta genial, mas não conseguia lidar com a sexualidade e o amor; em suma, não sabia viver. Alexandre O’Neill, no poema «Autocrítica», depois de dizer que a Pessoa «devemos todos tanto», censura-o em relação a três aspectos distintos: 1) a lucidez («Muito querido Pessoa, saberias agora / que não basta ser lúcido, merda»), numa referência ao poema de Álvaro de Campos «Cruzou por mim, veio ter comigo, numa rua da Baixa»; 2) a ocultação da intimidade, numa alusão directa a «Conselho» («não basta / a gente coser-se com as paredes / e cercar de grandes muros quem se sonha»); 3) o artigo sobre o provincianismo português («não basta dizer basta de provincianos!»).
Em O Virgem Negra, por sua vez, Cesariny ficciona a dissecação do corpo morto de Pessoa — talvez uma metáfora de crítica literária. Na primeira das três partes do livro, Cesariny põe Pessoa a falar de si, das suas influências e do seu lugar na história da literatura; na segunda parte, onde se insere o excerto que trouxe para a minha apresentação, são os poemas que falam de Pessoa (com a voz de Cesariny, bem entendido). Ao reescrevê-los, Cesariny explica o que estaria escondido neles, o seu sentido oculto ou negro. O «virgem negra» do título é o poeta «medonho, bisonho, tirado do natural», «lúcido até às fezes» — a mesma lucidez que O’Neill lhe censurara. Para Cesariny, em Pessoa a arte não se opõe à vida, opõe-se ao sexo. O verso «O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é», que, continua o poema, «como sempre, terá ficado por perceber (por mim até)», presente no poema do ortónimo «Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar», teria que ver com a mesma impossibilidade para o amor e a sexualidade apontada por Eduardo Lourenço. Ligado ao amor está, mais uma vez, o problema de ser visto e conhecido.
Para António M. Feijó, a exposição de Cesariny em O Virgem Negra é uma defesa dos direitos da vida e da experiência (do amor e do sexo) contra a arte e o pseudo-ascetismo de Pessoa, o «pinar só c’a cabeça» que Cesariny lhe atribui (Uma Admiração Pastoril pelo Diabo, pp. 117 e 118). Também na leitura de Lourenço parece haver uma crítica velada ao que está em causa na auto-ocultação manifesta nos poemas de Pessoa: a impossibilidade do amor, a «terrível virgindade», o medo do sexo, combatido com a dedicação exclusiva à arte — que, para Bernardo Soares, curiosamente, pertenceria só aos homens, pois a mulher é «essencialmente sexual» e nunca poderia atingir o nível máximo de sonho («Conselhos às Mal-Casadas», Livro do Desassossego).
Cito, em jeito de conclusão, mas sem ela, as duas estrofes finais do poema «Andaime», publicado pela primeira vez na revista Presença, em Junho de 1931, e cujo vocabulário se avizinha promissoriamente do de «Conselho»:
Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim —
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser — muro
Do meu deserto jardim.
Ondas passadas, levai-me
Para o olvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.
* Enquanto registo da sessão do Workshop de Filosofia e Literatura em que participei, em Janeiro de 2017, com uma apresentação sobre o poema «Conselho», de Fernando Pessoa, este texto é simultaneamente fiel e infiel ao propósito de a registar: por um lado, o tópico que apresentei é decerto aqui reavaliado; por outro, a minha memória da discussão que se seguiu à apresentação é, como o dia em que se realizou, longínqua. Agradeço aos editores da Forma de Vida pela oportunidade de voltar a reflectir sobre um dos meus poemas preferidos, fazendo-o, desta vez, por escrito. Chamo a este texto «Cosido com as paredes» por gostar da expressão, e por achar que, apesar de tudo, Alexandre O’Neill a usou bem a respeito de Pessoa.