Em cima do selim da bicicleta estática, experimento dores que vão durar dias. Tenho, por outro lado, medo de um prazer imprevisto. Assim é a vida, assim o ginásio, benévolo leitor. Pedalo durante quarenta e cinco minutos, temendo que a bicicleta voe disparada com o seu apêndice, o meu corpo, num assombroso acidente de montanha-russa. Somos vinte ciclistas de salão, uma turma de escola, pedalando para sítio nenhum em benefício dos músculos inferiores, que vão para casa fortalecidos e tonificados. Ao grito da professora, aumentamos a resistência da bicicleta, o ritmo da pedalada diminui, os músculos começam a dar de si. Saber andar de bicicleta não é aqui um requisito; podemos simular subidas, rectas, sprints. À minha frente, dois homens de meia-idade, corpos enxutos e glabros, deixam no chão poças de suor, a única vitória que se obtém numa aula de Spinning.

Repetem-nos em cada canto do ginásio que o mais importante é mantermos forte o nosso centro – não o coração ou a cabeça, mas os nossos abdominais. Contraindo-os, as pernas e os braços fazem melhor o trabalho, protegem-se as costas, e a postura agradece. Na aula de ginástica localizada, semelhanças com os vídeos aeróbicos de Jane Fonda são delírio ou nostalgia. Às primeiras batidas da música que acompanha o exercício de agachamentos, o professor vai declamando a compasso, conforme nos baixamos: croissant; croissant; croissant. Maravilhoso poema concreto, dito – deduzo – para sentirmos no lombo o que custa queimar as gorduras acumuladas pela ingestão de inocentes croissants folhados. Terá alguém pensado, ao ouvir aquilo, em correr para a pastelaria? Do mesmo professor ouvi também as palavras de ordem, mais prosaicas, «não desiste, insiste», ou «a dor é amiga», não raro durante os exercícios que detectam a mentira como um mestre-escola, aqueles em que se usa apenas o peso do corpo.

A aula de Body Pump é frequentada sobretudo por mulheres e homens magros, dos quais destoa um casal de gordos. Para quem ainda não os conheceu, podem ser vistos em fotografias à entrada do ginásio, num quadro pendurado atrás do balcão da recepção, em que, no final de cada mês, se afixam, por ordem, os resultados obtidos. Os deles são tão gritantes que se encontram ali representados em instantâneos; mês após mês, os seus corpos vão-se apequenando, a prova acabada de que a união faz a força. Joviais e levemente abaulados, ele e ela vestidos de algodão, são as pessoas que, depois de mim, mais prazer me dá observar no espelho do grande estúdio, pois, além de trabalharem com dedicação para o mesmo fim, vão para a direita quando todos vão para a esquerda, saltam no momento em que devem flectir, puxam quando devem empurrar. Ao ver a segurança que exibem, não excluo, porém, a hipótese de pertencer a eles a razão. Tomo então os gordos como exemplo e, com eles, contraio, descontraio, ergo, flicto, não desisto, insisto.

 Em comparação com o estúdio das aulas de grupo, em que a massa de gente do ginásio forma uma espécie de agregado social, a sala de musculação é um espaço esquizóide. Agarrado ao ferro das máquinas, cada um cumpre o plano de treino ao som de música que só ele ouve. Com o tempo, vou sabendo o nome dos aparelhos e dos acessórios, uns tão alusivos como «caneleira», outros tão singelos como «bola», alguns tão reminiscentes como «corda de saltar». Saboreio com gosto as sonoridades gregas e latinas dos músculos que exercitamos: trapézio, deltóides, glúteos, quadricípites, oblíquos, adutores, abdutores. Pressinto que, numa outra vida, em vez de princesa, guerreira ou santa, fui atleta. Aprendo depois, com grande comoção, outro nome de conto de fadas: ácido láctico.

As passadeiras e as bicicletas elípticas, encimadas por televisores, estão encostadas a janelas baixas que dão para um terreno arborizado. Enquanto finjo que corro na passadeira, humores viajam à deriva pelas minhas entranhas, produzindo a fantasia da saída de rompante pela janela, em direcção aos trilhos e ao arvoredo, onde correr custa mais e se faz à séria. Atendo-me às instruções do percurso programado, vou tranquila e embalada a pensar no quarto da minha amiga de infância, onde líamos as revistas da mãe dela e imaginávamos os nossos funerais, ignorando que tivéramos Tom e Huck como precursores. Corro e vou recordando a nossa parelha, os terrores da escola, duas raparigas. Magoei-a muitas vezes; ela a mim, menos, porque tinha mais jeito para o desporto. Jogávamos futebol e, quando calhava, basebol, com bolas de ténis, ou, com bolas mais macias, o jogo do mata. Uma vez rachei-lhe um lábio com uma braçada no ar mal calculada. Revejo-me naqueles tempos como um ouriço-cacheiro a rolar pelo recreio, embatendo neste e naquele; batia em todos, e não havia quem não o merecesse. Certa Rosa Ângela, que todas as manhãs cumprimentava com um beijo a professora Olinda, voz de mimo e de galinha atarantada, o que não sofreu nas minhas mãos espinhosas! Escola primária, educação física… No dia em que a professora Olinda esmagou um escaravelho com o salto do sapato, a carapaça do bicho estalara como uma folha de couve crua a ser partida ao meio. Não podia ser mais fácil desenhá-la: todos sabíamos que o seu corpo era um volumoso paralelepípedo sobre duas estacas, por meio das quais ela se locomovia. O seu pecado era a ira, e a cabeça, cheia de anéis dourado-translúcidos, um alvo. No Carnaval, caíam balões de água dos prédios que rodeavam o pátio do recreio. Minutos depois de ter assassinado o escaravelho, a professora Olinda foi atingida na cabeça, e os três Joões (João C., João S., Joãozinho P.) abriram a braguilha e cercaram o banco de betão que fazia de baliza, debaixo do qual eu e a minha amiga procuráramos abrigo. À vista dos três pequenos pénis que os três Joões tiraram à vez dos calções, rimos com garotice e corremos dali para fora como as irmãs do genérico de Uma casa na pradaria.

A vida adulta é, paciente leitor, tão frustrante e insalubre, que o melhor remédio é ir a uma aula de Hiit Boxing fazer as pazes com os instintos violentos. Quando o professor nos mostra exemplos do que não devemos fazer, reconheço nas suas imitações os meus próprios movimentos desengonçados. Treinamos no saco, e é tão certo como o dia e a noite que ele lá vem por trás e prontamente me corrige. Soco, soco, pontapé: a ele os dedico, e respiro melhor. Em casa, dorida, amaldiçoo o dia em que me inscrevi. Muitas lições de vida se aprendem no ginásio, lugar que encerra, mais do que o culto da imagem, o culto da figura. O objectivo, perfeitamente racional, é o de manter o corpo dentro dos seus limites, despojá-lo do supérfluo do que não constitui osso envolto em músculo coberto de pele, preparando-o talvez para outros desportos. O corpo bem-comportado, virtuoso, ajudando a mente a perseguir a utopia do bem-estar.

Eu cá tenho aprendido que uma parte importante de frequentar um ginásio é não ir ao ginásio. À pergunta esperançosa «foste ao ginásio?», folgo por vezes em responder «chovia», «ventava» ou «não». Quando falto, porém, sinto que falho, e penitencio-me realizando com energia uma tarefa doméstica, ou sacrificando parte do serão a cozer hortaliças para a sopa do jantar.

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