«Os dedos do pé a brincarem com a chinela. O chão lá não muito limpo. Que relaxada e preguiçosa que me saíste. Amanhã não, porque não estaria lá muito bem das pernas. Mas depois de amanhã aquela sua casa havia de ver: dar-lhe-ia um esfregaço com água e sabão que se lhe arrancariam as sujidades todas! a casa havia de ver! ameaçou ela colérica.»
Clarice Lispector, «Devaneio e embriaguez duma rapariga», Laços de Família
Diana entrou irada, frenética, potente. Entrou contrariada, batendo com a porta. No seu corpo, uma impaciência de rapariga resultava em gestos divertidos de observar: o casaco atirado para o chão, as paredes olhadas com expectativa indignada, ao confirmar-se, para a frente e para trás, o vazio da casa. Um suspiro despeitado, novo olhar contra as paredes e, por fim, sem esforço, lá vinham as lágrimas. Perfeito… Diana conseguia as lágrimas e deleitava-se com elas, enquanto criava um diálogo delicado com o rapaz que acabara de partir.
O que não fora dito antes era agora falado com eloquência. E a vida era com certeza um aeroporto, uma estação de comboios, uma gare marítima, onde uns se deixam e outros se recebem. A protagonista estava zangada; o rapaz era um desencanto, teve de ir, com pressa. Uma casa vazia é o seu palco, o quarto velho com a porta fechada, onde fazia histórias de amor. Diana pensava que o amor dá sempre uma tristeza, e que as lágrimas são divertimento, volúpia. O enredo seguia precioso, mental. Se escolhia dar voz ao rapaz, as palavras que significavam o arrependimento eram de rapariga impostora ou de boneca maltratada. Diana lembrou-se a tempo, com a inteligência, do mundo em que vivia: coisas para dizer, as exigências das pessoas, muito, muito para fazer.
O sol transitava numa casa de mudança, o dia lembrava uma dádiva de vento (que os aviões voem leves, em céus azuis, felizes!). Guardaria os jogos para as noites agitadas. Escolheu um sítio da casa que estava sujo e foi tratar dele. Criança desmedida a rir com grosseria do adultismo, entrou no quarto e evitou olhar para a cama; outro plano lhe exigia atenção. Dando conta da desordem que o viajante deixara no chão, perdeu o alento. Coisas esquecidas ferem, incomodam, só podem destinar-se ao lixo mais infecto. Diana ocupou-se de súbito a desimpedir o chão do perigo dos objectos. Por sorte, as janelas estavam abertas; tivera o cuidado de as abrir antes de sair de casa, para apressar a saída dos cheiros conhecidos. O quarto recebia, pelas janelas, a passagem de brisas que traziam clareza e cor à tarefa lutuosa. Esclarecendo, o ar mudava, revolvia.
As coisas esquecidas eram depositadas em sacos destinados a restos de coisas. Mais um para lembrar e depositar no lugar onde são conservadas as memórias de tudo o que surge e desaparece. Havia quem se prendesse aos restos e os amasse como recordações, pela razão artística de que se devem amar as recordações. Diana não suportava os restos. Queria destruir o que restava de quem mandara embora, queria tudo no lixo, fora do quarto, para que este voltasse a ser de novo seu. O que a surpreendia era a concentração de todos os restos no chão. As coisas jaziam, chamando a atenção para a ausência. Pegar nas coisas, colocá-las nos sacos e quase suster a respiração. A repulsa pelos restos era a repulsa por um corpo morto, ou por alguém que urgia matar.
Enlevada nos arrumos e nos ditos, uma presença apercebida levou-a a dirigir os olhos para a cama. O que viu, jazendo sobre a almofada, Diana não o conseguia dizer. Uma lembrança cardíaca juntava-se ao assombro daquela nova reacção arrítmica: a marca de um outro foco infecto. No quarto das memórias, um sonho antigo tentava o seu recomeço de susto e hesitação. A marca trazia-lhe à memória as noites passadas no escuro, a imaginar formas de fazer desaparecer o terror familiar. Ela conhecia-o das noites mudas, do tempo em que os terrores tinham o poder de criar superstições. Diana não estava preparada para o confronto. A mente nunca sofrera a mudança; o medo nunca desaparecia.
A criança despertara suada, com pavor do insecto que dormia ao seu lado na almofada. Era um terror nocturno de trinta centímetros, replicando as dimensões da régua e os adornos da sacola onde essa se guardava. Uma autoridade de pernas, órgãos e visco, prostrada na almofada. Um gafanhoto, repousando ao lado da sua cabeça. Um sapo, visto com desigual atenção! Verde, preto, quieto, ameaçador. Ela deixava-se estar, também quieta; o medo impedia que se mexesse. Orgulhosa, decidia não gritar, para que em casa ninguém acordasse. Deixava-se ficar, com as mãos presas debaixo das pernas e o olhar concentrado na almofada onde repousava o sapo, esperando, imóvel, o seu desaparecimento. Ele também a fixava no seu pouso. Não adiantava fechar os olhos: quando os abria, o gafanhoto estava no mesmo sítio. Só lhe restava esperar, temendo que, se as mãos lhe saíssem do sítio, com um movimento brusco o insecto atrevesse o salto.
Revisitava-a naquela tarde, com os seus dez centímetros de terror: o gafanhoto. Feito o reconhecimento, Diana saiu do quarto e ficou a observar a cama da porta. O padrão listado dos lençóis escondia a marca no centro da almofada; só com atenção se descobria o bicho. Ela não conseguia olhar para ele sem imaginar, consequência de um salto inverosímil, o contacto das pernas do insecto com as suas. Entre o terror da imagem e da sensação, um consolo: as janelas estavam abertas, explicavam a intrusão. Ele entrara com o ar. A inevitabilidade de tudo se explicar com o ar tranquilizava-a. A culpa não era dela, não era da casa: um gafanhoto não é uma barata.
A necessidade de se livrar do gafanhoto surgiu no instante em que o reconheceu. Considerou que, de alguma forma, teria de o matar. Concebeu pragas e castigos distantes por não ter quem a ajudasse na batalha. Até então, contara com uma legião eficaz de matadores, zelosos a serenar sobressaltos, inigualáveis a solucionar imprevistos. Agora, estava só com o gafanhoto e tinha de o matar. Mas como se mata um bicho que salta? Fitando a almofada, imaginava a previsível espontaneidade do insecto, caso se aproximasse dele. Espiava-o, atenta à menor ameaça de movimento. A única forma de fazê-lo morrer, pensou, seria enxotá-lo para o chão e dar-lhe várias pancadas com uma vassoura, esperando que uma fosse a derradeira, e a morte, rápida. Vinha-lhe à cabeça, contudo, a contrariedade de sempre, impedindo a concretização do plano: e se ele saltasse e houvesse barulho de insecto no salto? Se, por um desígnio do corpo em movimento, ele aterrasse aos seus pés e lá depositasse o imundo?
Sentou-se no chão, meditando nas forças que lhe faltavam e no problema que exigia o ímpeto de uma solução. Incapaz de agir e de matar, Diana pensou que seria uma hora boa para chorar, mas o medo não tinha a volúpia bela da tristeza. De olhos semicerrados, compreendeu que o gafanhoto não tinha de morrer, que podia sair sozinho pela janela, tão facilmente como tinha entrado. Quando a imagem se lhe tornou clara, levantou-se de um salto e olhou para a cama: o gafanhoto sofrera uma oscilação ligeira para a ala esquerda da almofada. Movia-se, leve, numa dança a solo, ao sabor do vento. Diana equilibrou a almofada como uma bandeja, levou-a até à janela e atirou o gafanhoto lá amortalhado para a rua. Estava contrariada. Tinha de mudar os lençóis, quando o que queria, já, era mudar de cama, de casa, de país.