Há uma rota da Ryanair que liga Lisboa a Pisa, com viagens às terças, quintas e sábados. De Setembro de 2019 a Março de 2020, voei catorze vezes entre as duas cidades. Nesses meses, viajar de avião não me tornou uma passageira indiferente; na verdade, voar deixava-me cada vez mais inquieta, mais atenta aos procedimentos, às mensagens dos comandantes, aos aviões. Lia na internet sobre os Boeing e os Airbus. Enquanto esperava pelos voos, entretinha-me a observar, estacionados, os Boeing com os seus narizes empinados, comparando-os com os dos Airbus, mais direitos. Diferenças visíveis também no formato das janelas do cockpit e nos motores. Li, nesse período de rota contínua, os dois primeiros romances da trilogia académica de David Lodge, e com satisfação acrescida as cenas de aeroporto e descrições de viagens intercontinentais em jumbo jets, os inconfundíveis Boeing 747 — que, leio, deixarão em breve de ser fabricados. Julgo ter viajado sempre num Boeing 737-800. A dada altura, entre os meus estudantes, os hábitos pendulares da professora eram conhecidos, correndo voz que ia passar todos os fins de semana a Lisboa. Aconteceu que, de Março em diante, foi na minha casa, em Lisboa, que lhes dei as aulas.

Comecei a leccionar Português Língua Estrangeira na Universidade de Pisa no início de Outubro de 2019. Nunca tinha dado aulas, uma experiência que desejava e pela qual me sentia grata. Na primeira semana, em Setembro, estive alojada na residência da Universidade, Le Benedettine, situada num antigo convento na margem sul do rio Arno. Em dois dias de buscas, vi casas para arrendar na Via Tavoleria, na Via delle Case Dipinte, na Via San Orsola, no Largo Duca d’Aosta e no Lungarno Sidney Sonnino. Os meus apontamentos são frequentemente listas, nomes, poucos verbos. Escolhi uma casa na zona de Porta a Lucca (no meu quarto, uma grande secretária), a quinze minutos a pé da universidade, dez em passo estugado. Pisa é uma boa cidade para andar a pé, muitos deslocam-se de bicicleta. Enquanto lá vivi, caminhei extensamente e vi o que pude: a Piazza dei Miracoli, a Torre, a Catedral e o Batistério, o Camposanto, o Museo dell’Opera del Duomo, a Scuola Normale, o Palazzo Blu, o mural de Keith Haring, igrejas, igrejas, os lungarni, o Arno e o tom barrento das suas águas. Fui a Lucca e a Florença; falhei Siena, os alabastros de Volterra, tantas outra terras. Andar a pé em Pisa lembrou-me aspectos da minha adolescência numa cidade alentejana, em que a casa ficava perto da escola, da música, da natação, tendo embora Pisa o quíntuplo dos habitantes, um rio e uma grande universidade.

As cadeiras que leccionei eram anuais. Cabiam-me três turmas, correspondentes a três níveis de língua, e a cada uma dava três aulas de uma hora e meia por semana, concentradas de quarta a sexta-feira e dispersas pelos palazzi Ricci, Boilleau e Curini, ao longo da Via Santa Maria. Os gabinetes e escritórios do departamento ficavam no Palazzo Matteucci, perto da Piazza Dante, com cafés repletos de estudantes, alguns restaurantes e diversas reprografias. No segundo semestre, dei duas aulas numa sala no meio do Jardim Botânico.

A primeira semana de aulas foi inesperada; não encontro nada de comparável à actividade lectiva, à exigência física e mental do trabalho, à responsabilidade de estar sozinha perante uma turma. Para mim, novata, dar uma aula era dar o litro, recear que se me acabassem os materiais – e, nas salas com estrado, temer a queda. Aprendi depressa que era boa ideia preparar aulas em bloco, para não correr o risco de ficar desapoiada. Sonhos frequentes à época: zepelins em fogo, ir dar uma aula e não ter nada para dizer. Noites mal dormidas na véspera de aulas que começavam cedo, com pavor de perder o toque do despertador. Uma rotina frenética. Havia, nas aulas, uma componente de motricidade, talvez de teatralidade, não irrelevante, que me agradava. Gostava de estar de pé e de escrever no quadro branco (não nos de ardósia, por causa do pó do giz), a minha concentração era absoluta, e é verdade que os professores vêem muito bem o que se passa em redor. Quando me habituei aos tempos e às matérias e o dia corria ligeiro, pensei que ser professor era uma profissão bonita. Com a prática e o conhecimento de certos truques necessários, creio que podia ter ficado boa no ofício. Não creio, contudo, ter descoberto uma vocação escondida.

Gostei de ter conhecido os meus alunos. As aulas de língua tendem a ser indiscretas; nos níveis iniciais, espera-se que os estudantes consigam dizer como são e o que fazem todos os dias, descrever a casa, a família, os tempos livres, os interesses, o que vêem da janela, o que gostavam de fazer depois de terminarem o curso. Numa aula de língua há também um elemento lúdico que pode remeter para a infância e a escola primária. Divertiam-me certos erros linguísticos dos iniciantes («o *minho irmão»). Os erros dos aprendentes dizem muito sobre a sua e as mais línguas que conhecem (o espanhol e o francês, os grandes invasores), sabê-lo pode ser útil para um ensinante. Mostrei aos estudantes de nível avançado erros comuns de falantes portugueses; alguns surpreenderam-nos («à» por «há» e vice-versa), outros, como a confusão entre o infinitivo pessoal e o futuro do conjuntivo de alguns verbos, eram-lhes familiares. Fizeram-me boas perguntas. M.E., perante a asserção de uma gramática de que as formas pronominais contraídas «vo-lo», «no-lo», eram pouco usadas em português, quis justamente saber o que usávamos. E quando é que se diz «de tarde» e «à tarde», «em frente» e «à frente», «às vezes» e «por vezes»; e qual a diferença entre «por mim» e «para mim», em «por mim encontramo-nos às oito» e «para mim este é o melhor sítio»?

Passei de mansinho por Pisa. Entre as viagens e o trabalho, um Outono chuvoso, o primeiro semestre chegou ao fim. Ao único amigo italiano que fiz nos meses pisanos, e que sabia um pouco de português, ensinei a expressão «bicho do mato». Em meados de Dezembro, fui para casa recuperar alento. De regresso a Pisa para os exames de Janeiro, depois da interrupção de Inverno, houve sol e caminhei pelas ruas com vontade de Primavera. Recordo um domingo de deambulação pelo mercado de velharias na Piazza Martiri della Libertà, em que me propus passar mais tempo na região. Comprei uma história ilustrada de Pisa. Queria retirar proveito da minha experiência – mas para que serve uma experiência, e tem de servir para alguma coisa? Na perspectiva de voltar para uma segunda oportunidade, encarei com simpatia os ladrilhos pretos e brancos do Palazzo Matteucci, e o meu gabinete, com um mapa de Portugal envelhecido e uma secretária antiga de madeira com tampo de vidro.

No início de Fevereiro, no aeroporto de Pisa, tirava-se a temperatura aos passageiros que entravam na cidade. Dei duas semanas e um dia de aulas presenciais no segundo semestre; após 4 de Março, quarta-feira, as universidades italianas suspenderam as aulas presenciais e fecharam portas. Não voltei a estar com os meus alunos. A 9 de Março, segunda-feira, começavam as aulas remotas na Universidade de Pisa, a qual respondeu pronta e assertivamente ao desafio imposto pela emergência sanitária (só daí a dias se declarava oficialmente a pandemia). As aulas eram síncronas, no horário habitual, dadas através da plataforma Microsoft Teams. Sei que se multiplicaram discussões pedagógicas sobre questões de metodologia para o ensino à distância, como a da sincronia das aulas; eu não tive escolha. Para o melhor funcionamento das aulas, aconselhou-se que os estudantes mantivessem a câmara e o microfone desligados. Durante mais de dois meses, falei para um ecrã sem ver as caras dos meus interlocutores.

À hora da aula, os nomes deles apareciam na sala virtual, o que nunca deixou de me surpreender. Achava-os valentes, sobretudo às 8h30. Seria eu tão disciplinada se estivesse no lugar deles? Claro que o número de frequentadores desceu em média, embora alguns estudantes mais velhos, talvez por terem perdido o emprego, tivessem começado a aparecer mais (outros só apareceram para os exames, mas aí nada de novo). Soube que houve quem tivesse seguido sempre as aulas pelo telemóvel; uma percentagem não irrelevante mal sabia usar o computador.

As queixas dos docentes que deram as aulas remotamente são as que qualquer um pode imaginar: a vista cansada, as costas desfeitas, o dobro do trabalho na preparação dos materiais, mais reuniões. Quando se falava sobre o que estava a acontecer, os estudantes lamentavam por sua vez a falta do contacto com os colegas, embora alguns acolhessem com agrado o tempo adicional para dormir e estudar, já que não tinham de passar horas em transportes. Outros, encerradas as bibliotecas e as salas de estudo, queixavam-se de terem em casa poucas condições de estudo. A vida empobreceu para todos. Eu sentia falta de estar com eles e de os observar. S. e G. gostavam tanto um do outro, que muitas vezes falavam entre si baixinho nas aulas. Quando G., siciliana, errava alguma resposta, S., milanês, punha uma expressão de desilusão afectada e G. ria. Ficavam sempre juntos, eram bons alunos. Quando os repreendia, tinha mais efeito fazê-lo em italiano, por alguma razão (relacionada com a maior atenção deles à pronúncia de um falante não nativo?). Cenas para os arquivos do ensino online: pergunto alguma coisa a R. Silêncio. Será que R. me ouve? Será que R. está ali? Passados uns segundos, R. responde, a voz abafada, entre risos: «Desculpe, prof., estava a acabar de comer». Imagino-a a comer em frente do computador. Se estivéssemos na universidade, ela teria talvez chegado atrasada para acabar de almoçar. Nas três turmas que tive, era assinalável a solidariedade entre os estudantes, a prontidão com que passavam os materiais a quem faltava, a justificação pronta para quem faltava. Ninguém ficava para trás por falta de ajuda dos colegas. Isso não mudou depois de Março.

Perguntei a mim mesma muitas vezes se aquelas aulas remotas lhes serviam para alguma coisa. Observei que, apesar de tudo, o facto de as aulas decorrerem no horário habitual conferia uma espécie de normalidade a um período anómalo. Os estudantes que as frequentaram parecem ter beneficiado delas, registando melhor aproveitamento do que os restantes. A avaliação, um exame escrito e um oral, foi também remota e síncrona. Para os exames escritos, usou-se a plataforma Moodle e, para a vigilância das provas, uma reunião no Google Meet. Aí, os estudantes tinham de ligar a câmara e o microfone, para serem vistos e ouvidos pelos professores. Os exames orais foram realizados no Teams. Voltei a vê-los nessas circunstâncias, sozinhos no quarto, sala ou cozinha da casa onde estavam a viver. Alguns, deslocados, tinham as malas de viagem em cima do guarda-fatos. Na época avaliativa de Julho, muitos tinham já conseguido ir para junto dos pais ou dos namorados.

Os estudantes italianos da Universidade de Pisa são oriundos principalmente das regiões da Toscana e da Ligúria, mas também da Itália meridional, da Sicília e da Sardenha. Soube a proveniência dos meus alunos, retirando satisfação das discussões em que se evidenciava a sua diversidade linguística. Aprendi também os nomes deles, alguns dos quais me agradava pronunciar. Tal como hoje ainda sei de cor nomes completos dos meus companheiros da escola primária, gostaria de me lembrar, daqui a anos (quantos?), dos nomes dos meus primeiros estudantes. Escrevo isto também para me lembrar. «Salve, prof.», saúdam-me por e-mail aqueles que ainda não sabem compor uma mensagem formal. Os mais bem-educados escrevem «gentile professoressa». Para alguns dos que se me dirigem em português, é possível que não tenha ficado clara a diferença entre «querida» e «cara», mas não serei eu a corrigi-los.

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