Parece que «escrever sobre» é uma necessidade hoje em dia tão grande, que até se fazem jornais quase só para isso. E então se há comemoração do aniversário...
Alexandre O’Neill, Uma Coisa em Forma de Assim
Num bairro pós-moderno de Lisboa, de um relógio de caixa em forma de assim, saía um gato cor de palha-d’aço em direcção ao quintalório de um vizinho bípede. Depois de lhe entrar casa adentro e de lhe arrancar um mapa Michelin da parede, Xana, o gato, escapulia-se pela fresta de uma janela que não abria por dentro (por estar fechada por fora). Bichano de guizo e juízo, mas sem um só pêlo reaccionário, Xana virgulava e desenhava no ar pontos de interrogação com o rabo, sonhando sardinhas assadas e bolos de arroz fumados na algibeira. Sôrònil, o vizinho (não confundir com Sôr Aníbal), vivia numa casa decorada por um antiquário-coleccionador, onde havia uma máquina de escrever em que se podia bater letras com os pés. Enquanto Xana caçava pardais em baldios aonde iam morrer tanques de lavar a roupa, Sôrònil amalgamava mentiras verdadeiras, fugia dos convencidos da vida e punha a sua pessoa a falar em crónicas.
À semelhança do sorrateiro visitante, que costumava secretariar nas férias observando-o em intermináveis sonolências, Sôrònil era um caçador de imagens com curiosidade encarniçada e ouvido para o povo, em especial a vizinhança dada a petas e a contarelos. Tinha simpatia pelo vulgo e o vício de farejar a vida e os bastidores do próximo (também por encomenda). Com veia e verve, desunhava-se a escrever em prosa a crónica periódica. Cronista de procurar pistas e explorar o acaso objectivo, topava com embaixadores a fazer ginástica com os dedos dos pés, homens bem paginados com títulos de caixa alta, cabelos com brilho de biqueira de citadino em domingo de missa, e vários parvos nus. Punha-se quase sempre do lado dos fracos.
Nos tempos que cocoricorriam, em que qualquer escritor dava de mão beijada o número de colarinho e o número de sapato ao primeiro jornalista-perguntão que o quisesse entrevistar, claudicorria a lenda de que Sôrònil queria ser deixado em paz a construir ilhas de palavras com as imagens que caçava. Como Miró (e não só!), sabia que o homem é filho do menino e que um literato é um cardeal de luto. Embora a literatura não estivesse normalmente no âmbito das suas crónicas, oferecia-a às vezes aos leitores, reescrevendo na língua-pátria do fernandocas impecáveis versos de escritores que (re)descobria. Na simples qualidade de prático, de quem acha que não é explicador e se limita a ter palpites (mas esse era mais um dos seus exercícios de auto-apoucamento), praticava quase uma arte de inventário, que é como quem diz: que coisas são as coisas consideradas sem ênfase! Ou: a obra é a obra e nada a pode substituir. Ou ainda: um gato é um gato, um quintalório é um quintalório, Lisboa é Lisboa.
Com faro não menos infalível do que o dos concretistas brasileiros, mostrava por vezes, como Antonio Machado, o magoado cepticismo de quem aspira à comunicação mas a sabe difícil. Adiando o suspender do folhetim da vida, também tecia desconversas apenas para dizer que, se a gentileza tivesse pátria, ela seria Portugal, ou aconselhar escritores a serem fora de série se queriam ficar fora de prémios. Advertia ainda cautela com o olho mobilado pelo lugar-comum, não esquecendo que a arte é desregra permanente.
Teve um dia a fantasia de reabilitar a tia literária portuguesa, quase sempre angélica e gulosa de paparóquia; rogou, pois, que a povoassem de genuínos fantasmas. Não raro desenhava retratos dos quais se podia roer de inveja qualquer plumitivo-empresário da comarca. Quando assomava à janela e observava a bem-pensância nacional à procura de tralha para mobilar e decorar a cabeçorra, chegava a ansiar pela revolução cultural que viesse libertar os escritores portugueses da ideia de que escrever é uma actividade chique e mobiladora. A ele, Sôrònil, definiam-no como sarcástico, desesperado e terno, o poeta de «Um Adeus Português». Mas ele, não dispensando a pitada do cómico, não se «sentia» poeta satírico.
Pai do inventor do submarino, no fundo, pouco saiu do mesmo sítio. Punha realismo em relatos imaginosos e passou a vida a inventá-la, pois as vidas que vivemos só servem para contarmos uns aos outros anedotas que supomos vividas. Quando estava mais aflito, para não cair no lirismo de lapela à espreita numa esquina esconsa, chamava Xaninha, seu conselheiro literário. Entre a tentação diabólica de ser original e o horror de ser comum, aprendeu que se devia sempre buscar o inesperado e, por meio do desejo, encontrá-lo.
Nota: As melhores palavras deste texto provêm das crónicas de Alexandre O’Neill.