CARTA DE SÃO BERNARDO, ABADE DE CLARAVAL, QUE INTRODUZ O ESPELHO DA CARIDADE DE SANTO AELREDO, ABADE DE RIEVAULX

 

A maior virtude dos santos é a humildade, se verdadeira, se discreta. A humildade nem deve assentar numa parte de mentira, nem conservar-se com o sacrilégio da desobediência. Roguei a tua fraternidade, ou melhor, ordenei, supliquei invocando o nome de Deus, que me escrevesses umas coisas, poucas, entre as quais prevenisses os queixumes de alguns que avançam com esforço do mais fácil para o mais exigente. Não condeno, não censuro a escusa, mas acuso frontalmente a obstinação. Escusar-se teria sido próprio da humildade; mas acaso é próprio da humildade não obedecer? não aquiescer? Por certo, resistir é como que um pecado de alucinação; e como um crime de idolatria o não aquiescer. Mas clamas que é obrigar a meter ombros feminis a uma carga pesada, e que é mais cauteloso não arrostar com o trabalho proposto, do que sucumbir sob o feixe quando te puseres debaixo dele.

É, pois, pesado o que mando, é árduo, é impossível: admito. Mas nem assim tens desculpa. Persisto na minha opinião. Redobro a ordem. Que farás? Porventura aquele em cujas palavras professaste não diz: «Saiba o jovem que é isto o que lhe convém: e confiante na ajuda de Deus obedeça?» (São Bento, Regra, cap. 68). Fizeste sim quanto devias, se não fizeste mais do que devias: avançaste até onde foi lícito. Manifestaste as causas da tua impossibilidade, dizendo-te menos gramático, e até quase iletrado: que vieste das cozinhas, não das escolas, para o ermo onde, vivendo dia a dia, agreste e rústico, entre penhascos e montes, suas pelo pão quotidiano com a machada e o martelo, onde mais se aprende o silêncio do que a falar; onde, sob a veste de pobres pescadores, não há lugar para o coturno dos oradores. Aceito com todo o gosto a tua escusa, com que sinto mais crescer do que apagar-se a centelha do meu desejo; porque me deve saber mais docemente se proferires aquilo que aprendeste, não na escola de qualquer gramático, mas na do Espírito Santo, tendo tu, provavelmente por isso, um tesouro num vaso de barro, para que o sublime seja do poder de Deus e não vindo de ti.

Que felicidade, também, o teres sido trasladado, com um certo prenúncio do futuro, da cozinha para o ermo, tu a quem por acaso à hora no palácio real te foi confiada a dispensação dos alimentos carnais, para que um dia no palácio do nosso rei provesses de coisas espirituais pessoas espirituais, e com o alimento da palavra de Deus revigorasses os famintos! Mas não temo nem o íngreme dos montes, nem a aspereza dos penhascos, nem o recôncavo dos vales, já que nesses dias os montes hão-de destilar doçura e das colinas fluir leite e mel; nesses dias os vales abundam em cereais; nesses dias o mel brota da pedra, e o azeite de uma rocha duríssima, e nos penhascos e nos montes são as pastagens das ovelhas de Cristo.

Julgo, pois, que com esse teu martelo arrancaste para ti daqueles penhascos alguma coisa que não tirarias, com a sagacidade do engenho, das bibliotecas dos mestres; e que, sob a canícula do meio-dia, sentiste às vezes coisas tais que nunca terias aprendido nas escolas. Portanto, dá a glória, não a ti, não a ti, mas ao nome daquele que não só retirou o desesperado do lago da miséria e do lodo da imundície, do prostíbulo da morte e do lamaçal da torpeza, mas também, fazendo memória das suas maravilhas, Senhor misericordioso e compassivo, para erguer a esperança dos pecadores à maior plenitude, iluminou o cego, instruiu o ignorante, ensinou o insipiente.

Por conseguinte, já que todos os que te conhecem sabem que não é teu aquilo que levares a cabo, porque te envergonhas? porque tremes? porque dissimulas? porque é que, à ordem da voz daquele que o deu, te recusas a distribuir aquilo que ele te deu? Temes acaso o labéu de presunção ou a inveja de alguns? Como se alguém jamais tenha escrito algo de útil sem ser invejado; ou possas ser acusado de presunção, tu que, monge, terias obedecido ao abade.

Ordeno, portanto, que em nome de Jesus Cristo, e no Espírito do nosso Deus, não adies registar com a tua pena aquilo que em longa meditação te foi dado conhecer sobre a excelência da caridade, sobre o seu fruto, sobre a sua ordenação, assim como sobre o que é a caridade e quanta doçura há em possuí-la, quanta opressão se sente na concupiscência que lhe é contrária; sobre como a atribulação do homem exterior não diminui a própria doçura da caridade, mas antes a aumenta; finalmente, reconheçamos na tua própria obra, como num espelho, qual a discrição que deve haver na sua apresentação. Contudo, para que a tua modéstia seja poupada, que esta mesma carta seja fixada no frontispício da obra, a fim de que tudo aquilo que no Espelho da Caridade (pois é este o nome que pomos ao livro) desagradar ao leitor, não seja imputado a ti, que obedeceste, mas a mim que te forcei contra a tua vontade. Saúdo-te em Cristo, amado irmão.

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