«Província» é, como qualquer lugar-comum, uma ideia altamente maleável. De lugar asfixiante ou mornamente depressivo a lugar onde se exercem, de modo quimicamente mais puro, as virtudes morais – por definição sempre perdidas, ou sempre em processo de perder-se –, a «província» e o que é «provinciano» têm uma robustez assinalável. Estas noções surgem, por vezes, sob outra forma: as pessoas que as televisões entrevistam, quando o repórter vai até ao campo para documentar catástrofes ou o pouco que delas resta, são habitualmente referidas como «populares». O repórter encontra «populares» e faz-lhes perguntas, perguntas cuja resposta não requer esforço, nenhum conhecimento ou opinião particulares, apenas a expressão de um estado de espírito sugerido ao entrevistado pela pergunta. É de notar, todavia, que há «populares» em Lisboa, nos bairros a cujas festas esses habitantes dão o nome, por exemplo, mas a designação justifica-se por muitos deles serem imigrantes da província, ou, se nativos da capital, por exporem quer nos modos, quer na fala, um veio provinciano numa fraga urbana (a Graça, em Lisboa, por exemplo).

Provincianos que, pelo mérito ou por zelo empreendedor, se salvaram do lugar de origem muitas vezes julgam necessário escondê-lo, e por isso alterar o modo como falam – só em momentos de distracção passando a trocar os bb pelos vv, por exemplo –. Alguns há, no entanto, que, num movimento inverso, mas todavia idêntico, decidem expor a sua origem abertamente, e dela fazer gala. Esta segunda possibilidade é, muitas vezes, inspirada por razões políticas; consiste em fazer valer as «terras de Portugal», a ossatura do reino, o lugar longe de Lisboa a que regularmente se volta. Esta nostalgia e o prazer de publicamente a exprimir são sobretudo evidentes em políticos que se sentem finalmente confortáveis na posição que ocupam.

A tensão entre estes lugares-comuns condensa a história de um país e muitos dos invariantes culturais internos. Este número de Forma de Vida põe em evidência algumas das formas sob que essa tensão emerge. Não tendo podido ser mais do que editor nominal do número, direi apenas que o breve texto que me propus, sem êxito, escrever sobre o tópico teria consistido em dois ou três exemplos do que foi viver na província, na década de 60, do que, no meu caso, foi viver em Viana do Castelo, na década de 60.

A escolha desses exemplos criou-me, no entanto, como seria de esperar, um embaraço. Ao abrigo da chuva sob que invariavelmente se vive durante a maior parte do ano em Viana, ou no interior de casas em que o mundo era grande à luz da claridade das lâmpadas, o que durante muito tempo nos ocupou foi um modo de atenção: ouvir repetidamente os discos que, por serem caros e de difícil acesso, uma irmandade difusa de rapazes partilhava entre si. Momentos fortes dessa atenção insistente foram, por exemplo, «The under assistant west coast promotion man», o lado B de «I can’t get no (satisfaction)», em que, com a harmónica de Brian Jones e a bateria de Charlie Watts, Jagger dramatizava a pequena arrogância da personagem que dava o título à canção: «I am sitting here thinking just how sharp I am» (gabarolice que, aliás, se ajusta, como uma luva, ao próprio Jagger); ou «Big black smoke», o lado B de «Dead end street», do grande Ray Davies, faixa em que uma província fabril era retratada de modo plangente e metálico; ou, acima de tudo, o privilégio de termos estado presentes na criação de alguma da maior arte da segunda metade do século XX, originária de uma cidade portuária do norte de Inglaterra, que os quatro autores viriam a publicar sob a etiqueta «Northern Songs».

Foram estes, entre tantos outros, grandes momentos na vida de Viana nesses anos, momentos maiores nos anais da vida de província. É de presumir que, na província lisboeta, alguém de igual modo os tenha vivido, mas essa era para nós, receio dizê-lo, uma realidade periférica, demasiado longínqua do centro onde tudo se passava, e não me é, por isso, possível afirmá-lo.

 

 

         

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