Quando falamos em desporto, não é imediatamente perceptível se nos referimos a praticar ou a assistir ao mesmo. Todos conhecemos acérrimos espectadores de sofá que não sabem manusear ou pontapear uma bola, nem tão pouco andar de bicicleta ou nadar. Aproveitam-se do esforço dos outros, dirão alguns. Aproveitam-se, digo eu, da mesma forma que um leitor se aproveita do autor do livro que lê. Protegem-se atrás da televisão como outros numa sala de cinema e organizam romarias a estádios como muitos a galerias de arte. Aquele que pratica desporto é, por outro lado, à semelhança de um escritor, alguém que tenta ocupar o tempo, recriar uma vida que não pode viver, levar a cabo uma terapia, alcançar uma glória intemporal, ou simplesmente pagar as contas ao fim do mês; ao invés, o seu espectador é, à semelhança de um leitor, alguém que pretende encontrar uma distracção, averiguar significados ocultos, apreciar detalhes técnicos, fazer parte de um grupo, partilhar a glória alheia. O desporto, continuo por isso a manter, pode e deve ser visto como uma arte.
Dito isto, é certo que nem todas as pessoas e nem todos os desportos se prestam às mesmas generalizações. Eu, por exemplo, nunca tive grande vocação para os desportos a que gosto de assistir nem nunca despendi muito tempo a acompanhar aqueles que praticava. Neste sentido, quando escrevi sobre ciclismo, fi-lo enquanto espectadora e, se agora me proponho a falar sobre escalada, faço-o enquanto praticante. Quando me foi sugerido escrever sobre este desporto, ocorreu-me imediatamente que resumir a sua história seria, apesar de pouco interessante, indispensável. A razão prende-se, no mínimo, com o facto de estarmos em Portugal, um país carente de montanhas. Com muitas serranias, suficientes falésias, uns quantos calhaus, mas sem montanhas. A escalada, fora alguns esforços individuais, manteve-se durante muitos anos a léguas da praia lusitana.[1] Porque é que se está tornar moda agora? Por influência internacional? Por uma crescente vontade de cingir a natureza e a arte no dia-a-dia citadino? Haverá realmente alguma diferença de espécie entre a escalada e os outros desportos?
O interesse pela ascensão nas montanhas, e por todas as consequências da altitude, com origem nos Alpes, à qual deve o nome alpinismo, data do século XVIII. Escalada era a técnica utilizada pelos alpinistas para ultrapassar uma parede rochosa com maior dificuldade técnica; esta evoluiu, no final do século XIX, para um desporto independente, com características e exigências técnicas e físicas próprias. A vontade de chegar ao cume manter-se-á comum a todas as práticas de escalada, variando, contudo, o valor dos meios para atingir o fim.
O primeiro tipo de escalada, dito artificial, por o escalador utilizar material não só para se proteger na eventualidade de queda, mas também para ultrapassar alguma dificuldade técnica, vai dando gradualmente lugar a outro, dito livre, em que o atleta dispõe apenas dos seus próprios meios físicos para progredir. A este género de progressão, que utiliza pontos de ancoragem amovíveis — friends — que o próprio escalador (ligado através de uma corda a um parceiro que lhe dá segurança) coloca nas fissuras e fracturas da parede, com recurso a material de protecção específico para o efeito, chamamos hoje em dia escalada clássica.[2] Além de uma simples prova física, este tipo de actividade requer uma boa capacidade de planeamento e de solução de problemas, assim como uma ciência referente ao uso do material, visto ser imprescindível antecipar o equipamento necessário para cada ascensão. Entre entaladores, pitons, fitas, cordas e cordeletes, o escalador acaba por subir a parede rochosa com muito peso extra, o que obviamente o obriga a manter uma boa condição física e o impede de escalar no limite da sua força. Os graus — ou seja, a avaliação da dificuldade — deste género de via têm em conta a exigência física e também a exposição a que ela obriga. A primeira ascensão (do primeiro escalador) é feita com segurança por baixo: se ocorrer uma queda entre dois friends, esta poderá ser longa (e perigosa, se alguma das protecções não tiver sido correctamente inserida na parede). Em geral, mas não necessariamente, o segundo escalador seguirá o primeiro, com a segurança feita a partir de cima, de modo a que os dois possam terminar a via no seu cume, retirando todo o equipamento da parede. Os locais passíveis de serem escalados deste modo são geralmente altos e isolados, obrigam a uma caminhada de aproximação e são menos frequentados do que os outros: subir vias desprotegidas — sem ancoragens fixas — possibilita, por isso mesmo, uma liberdade, um isolamento, e uma consequente sensação de aventura e de descoberta de que os escaladores nos últimos anos se têm progressivamente desabituado. Esta modalidade está para a escalada dita desportiva como a travessia do canal da Mancha, entre outras, está para uma prova de 200 metros mariposa em piscina.
Com o intuito de alargar o espectro de praticantes deste desporto, e de desobrigá-los o mais possível de tudo o que não esteja directamente ligado à sequência de movimentos que é feita na rocha, várias paredes rochosas, com os mais variados graus de dificuldade, têm vindo a ser equipadas ao longo dos anos. A este género de ascensão, onde as protecções estão fixas na parede, podendo ser utilizadas por vários atletas, costuma chamar-se escalada desportiva, de modo a enfatizar precisamente a capacidade técnica e física do seu praticante, o qual, ao contrário do escalador de clássica, pode arriscar-se em projectos que estejam no limite do seu potencial. Quando este sobe, leva consigo a corda que o liga ao seu segurador, assim como as fitas express, que irá colocar nas protecções previamente fixadas na parede, e nas quais irá chapar a corda. Neste caso, quando a segurança é dada desde baixo, expondo-se o escalador a uma queda de vários metros entre cada ponto de segurança, diz-se que se abre uma via — por oposição ao escalá-la em top, ou seja, escalar com a corda já montada, por outro escalador, no topo da via, o que reduz o risco da actividade a um virtual zero —, sendo que apenas uma ascensão feita sem quedas nem descansos na corda se diz encadeada. É comum os escaladores cumprirem diversas tentativas (pegues) antes de conseguirem encadear um projecto; quando uma tentativa é suficiente, diz-se que a via foi feita em flash; se ela for realizada sem recurso às indicações de outro escalador, é feita à vista. Encadear uma via implica, para além de força, capacidade de visão, técnica, e resistência física. É essencial saber encontrar os melhores pontos da ascensão para descansar ou para chapar a corda — visto que pegar na corda para prendê-la na protecção implica que uma das mãos seja retirada da rocha. Este conhecimento é mais intuitivo do que aquele que é necessário para fazer uma via em clássica: assemelha-se mais à táctica de gestão de esforço de uma prova de fundo no atletismo ou na natação. A maioria dos praticantes desta actividade aproveita as falésias e as encostas que encontra por perto, o que implica muitas vezes um excesso de atletas em determinados locais. Tratam-se, na maioria, de vias relativamente curtas, com um máximo de 40 metros de altura.[3] Vias mais longas são escaladas por troços (largos), reunindo-se o par de escaladores no final de cada um destes troços (reunião), onde irão apoiar a segurança para o troço seguinte.[4]
Outra alternativa, bem mais radical, ao uso do aparato de protecção é a escalada livre a solo, na qual o atleta faz a sua conquista sem recurso a corda e sem necessitar de parceiros. Neste ambiente psicologicamente extravagante, qualquer queda será muito provavelmente fatal; os solistas apenas se arriscam, por isso, a escalar abaixo do limite das suas capacidades.[5] Outra variante pouco vista em Portugal é a chamada escalada urbana, buildering, que, como o nome indica, se realiza em edifícios altos de cidades.[6]
A escalada de bloco, bouldering, nasce com a necessidade de se treinarem os passos duros de uma via de escalada desportiva, sem o inconveniente de material e de tempo que esta implica, e transforma-se, no final do século passado, numa prática independente, mais livre e pura, por ser realizada a poucos metros do solo. Em vez de cordas e expresses, os escaladores de bloco utilizam colchões (crash pads) para amortecer quedas que, excepcionalmente, poderão atingir os 6 metros de altura. O desafio desta modalidade não passa tanto pela resistência física ou pela gestão de força, mas pelo desvendar de um problema muito duro e pouco óbvio. De forma muito simples, é encadeado o problema quando todos os passos são realizados em sequência, sem queda ou desistência, até ao fim do mesmo (que poderá ser no cume do calhau ou, em blocos muito altos, em drop off antes do final). O papel dos companheiros (e não de um único parceiro) é muito importante nesta modalidade, visto serem eles quem ajuda na protecção da queda, impedindo que os escaladores caiam fora dos colchões. A juntar a esse dever, o facto de estes problemas serem resolvidos em muito menos tempo que uma via de desportiva (alguns segundos) permite que várias tentativas se sucedam, o que possibilita um maior convívio, convívio esse que é essencial para a superação da frustração inerente à repetição desmedida, às vezes durante inúmeras horas, do mesmo movimento na parede. Além disso, utilizando como exemplo o grupo de escalada em que me insiro, particularmente dedicado ao boulder, muito do interesse baseia-se na descoberta e na limpeza de novas áreas. Ao contrário das falésias dos arrabaldes de Lisboa, as zonas de bloco estão ainda pouco exploradas e apresentam muito menos afluência de escaladores, o que possibilita uma convivência rotineira e familiar de um pequeno grupo de amigos, que é uma das grandes vantagens evocadas por todos os escaladores que preferem esta actividade em específico.[7]
À medida que mais e mais pessoas escolhem passar o seu tempo a explorar novas montanhas e novos problemas escaláveis, esta actividade física ganha espaço e adeptos enquanto modalidade desportiva. Ora, isso faz aumentar a ambição e a competição dos praticantes: criam-se paredes artificiais, os rocódromos, onde passa a ser possível praticar em ambiente citadino, independentemente do tempo disponível ou das condições climatéricas — à semelhança de um realizador que filma em vídeo por estar impedido de filmar em película. Apesar de serem, na sua essência, o oposto do local ideal para um escalador estar, o ambiente tende a ser mais descontraído do que em outros tipos de ginásio. Esta nova vertente, mais artificial mas também mais cómoda, tem atraído novos participantes, mais interessados em manter uma boa condição física do que em utilizá-la para atingir um topo natural (ainda assim, estou convencida de que alguém que escolha escalar «para manter a forma» se interessa, além do exercício físico, por conhecer novas pessoas, por resolver puzzles individualmente ou em grupo, e por desafiar os seus próprios limites, distinguindo-se, assim, dos frequentadores de ginásios normais). O conhecimento de uma via ou de um bloco é, visivelmente, uma vantagem para o seu encadeamento (maior do que a do conhecimento ao detalhe da estrada por onde passa uma competição de ciclismo o é), o que impede a realização de competições justas e imparciais em paredes naturais. É a criação de recintos específicos, com problemas sempre novos e inexplorados, que dá azo ao nascimento da verdadeira modalidade desportiva. Estes problemas, construídos em material sintético, que começaram por querer imitar a rocha, vão-se gradualmente transformando em outra coisa; as competições daí oriundas passaram a assemelhar-se mais a uma actividade circense do que à escalada, disse-me alguém há uns dias.
Os rocódromos reinventam, desta forma, para além da forma de encarar o treino, o próprio conceito de escalada, ao colocarem temporalmente lado a lado adversários que pretendem alcançar o topo de uma via ou de um problema no menor número de tentativas ou no menor tempo possível. Aquilo que distingue a escalada indoor da outdoor é, por princípio topológico, inevitavelmente maior do que qualquer diferença relatada até ao momento. Quando se fala de uma prova de escalada,[8] está-se, por isso mesmo, a falar de uma sub-modalidade que se distingue da sua criadora da mesma forma que, a meu ver, uma prova de maratona se distingue da de salto em altura, visto que se corre em ambas, mas com objectivos muito distintos. Não que um escalador necessite de praticar decatlos para escalar, de forma semelhante, em rocha e em parede artificial — ele será tanto mais completo quanto mais estilos praticar. No entanto, a especialização em ambas as modalidades é improvável, obrigando-o eventualmente a uma escolha. Ainda assim, é muito natural escaladores de rocha assistirem a, e participarem em — em Portugal, pelo menos, visto haver ainda tão poucos concorrentes —, competições. Enquanto exibição, pessoalmente, não posso dizer que seja sequer remotamente tão cativante quanto uma prova de ciclismo: na qualidade de espectadora, a táctica atrai-me mais do que a técnica, e esta mais do que a força — da mesma forma que um escritor pode preferir ler poemas mas escrever prosa. São, não obstante, uma forma válida de conhecer novos estilos e de obter inspiração para a resolução dos problemas que cada um encontra na rocha.
Há, em todos os estilos de escalada, confronto com os medos pessoais, com a confiança no outro, com a confiança no material ou na rocha ou até nas condições climatéricas, há a necessidade de planear escaladas mais longas ou deslocações para as mesmas, há o desvendar de um puzzle, há a aventura e a descoberta de novas vias, de novos problemas, de novos movimentos, de novos músculos… Há, acima de tudo, a natureza, as pessoas que partilham a mesma paixão e há, em geral, escassez das outras. Apesar de todas as diferenças, escalar prende-se sempre com o alcançar um cume. Os cumes foram-se metamorfoseando mas não deixaram de o ser. Para um, a experiência e a aventura são mais gratificantes do que a dureza da via, outro interessa-se pela capacidade de encadear uma sequência de passos no seu limite físico e mental, e outro pela essência de cada movimento. Para uns, o sistema de graduação da dificuldade das vias[9] é indispensável: para outros, a pureza da actividade em si deveria ser suficiente, sendo supérflua e nefasta a sua cotação. Há aqueles que vivem da adrenalina de não poder cometer erros, e outros que vêem a escalada apenas como uma escapada do mundo real e uma desculpa para viajar. Ainda assim, sozinho, com um parceiro ou com um grupo de amigos, numa montanha, numa falésia banhada pelo mar ou em calhaus espalhados numa planície, ambicionando os fins ou contentando-se com os meios, escalar é sempre escalar um cume que é, acima de tudo, interior.
Tendo em conta que, com a passagem do tempo e com o aumento do fluxo de candidatos a uma via ou a um bloco, estes se vão transfigurando — presas que caem ou que ficam mais polidas — poucos atletas participam realmente na mesma prova. O cume de uma parede natural é, também por isto, o símbolo de uma conquista pessoal, ao contrário de outros desportos em que a competição é sempre feita contra um outro. Excluindo a escalada indoor, que pode ser, ou não, um complemento à escalada de rocha, este é um desporto totalmente dependente das formações naturais, sendo por isso difícil compará-lo a desportos que se praticam em campos ou em piscinas que não podem interferir nos resultados. A adaptação a um novo local e a um novo tipo de rocha pode ser moroso; a atracção de um escalador pelo desconhecido é, por isso, uma inevitabilidade que o define. É, neste sentido, um desporto que se liga muito ao estilo de vida do seu praticante. O escalador de rocha tem um género de vida duplo, que vai para além da prática desportiva; assíduo, mas não profissional, ele não troca simplesmente de roupa e sai para a rua para correr, mas planeia a sua ida à rocha como uma pausa da rotina, na qual a sua forma de pensar se transfigura completamente. A disponibilidade mental para escalar não é realmente semelhante à necessária numa competição de ciclismo ou num jogo de futebol — não tanto pela táctica envolvida (que, além da gestão de esforço em vias mais longas ou da programação de tempo e de material necessários, não existe), mas mais pela motivação e pelo confronto com os medos a que um escalador se propõe. Além disso, descobrir novas paredes rochosas, equipá-las, ou descobrir zonas de bloco, e limpá-las de forma a serem escaláveis não é de todo comparável a descobrir novos campos de futebol onde a experiência de jogo possa ser diferente. Esta ênfase na descoberta não existe na maioria das modalidades que reconhecemos como desportos mas, convenhamos, é comum a outras actividades que começam também agora a desenvolver-se: o desejo de sair para o exterior e de explorar a natureza é, apesar de recente em Portugal, uma tendência antiga de outros países europeus.
É por isso natural que a escalada, seja encarada como um desporto competitivo, como um convívio semanal, ou ainda como um complemento a férias sustentáveis, ganhe cada vez mais adeptos. Não nos esqueçamos, contudo, que a própria lotação dos espaços naturais irá inevitavelmente, na eventualidade de um crescimento exponencial dos seus aficionados, voltar a afastar desta actividade aqueles que nela procuram sobretudo silêncio e comunhão com a natureza. A escalada em paredes artificiais será, muito provavelmente, o futuro mais razoável para este desporto, aproximando-o, irremediavelmente, a todos os outros. Será praticado quer com o objectivo de manter a forma, de passar o tempo, de fazer novos amigos, quer com o objectivo de se superar a si próprio e aos outros, propósitos legítimos e totalmente indiferentes à natureza física dos muros escalados. As características que se irão perder serão, seguramente, aquelas que menos contribuem para chamar à prática desta actividade desporto e talvez este processo seja apenas um caso flagrante para actividades humanas que, ao se generalizarem, se transformam, se banalizam e passam, por isso, a receber um nome comum como desporto ou arte.