No restauro ou na conservação, o que nos move é um sentimento encriptado de perda. Uma perda que não é valorizada por todos da mesma forma. Na verdade, quando restauramos, perdemos algo, e quando conservamos, impedimos que algo se restaure. Mas talvez se ganhe mais do que se perde com o restauro, e o que se conserva seja mais interessante do que aquilo que surgiria sem esta ação.

O facto de o raciocínio anterior nos parecer paradoxal prova que a nossa conceção de restauro ou conservação está ancorada numa perspetiva de intervenção humana e numa ideia de património, e num tipo de património em concreto: o património construído. Talvez a aplicação destes conceitos mude quando o contexto temático seja o do património natural, e o raciocínio anterior se torne mais claro.

Como ponto de partida, assume-se que ambos os conceitos são interpretados como estando associados a ações que visam evitar a perda, um entendimento que é comum a outros domínios. As abordagens inerentes a cada conceito surgem como estratégias que pretendem promover o equilíbrio ambiental, reduzindo ou tentando minimizar os impactos das atividades humanas na exploração dos recursos naturais. Mas pouco mais partilham do que este objetivo. A partir desta base desenvolvem-se em oposição, associados a diferentes planos de ação, posicionados em polos opostos de uma linha de pensamento que pretende recriar algo que se perdeu, ou manter algo que não se quer perder. É claro que podem surgir ligados numa sequência temporal, pois ao restauro pode seguir-se uma ação de conservação. Mas, ao investimento no restauro de algo que perdeu qualidade ou está degradado, incentivando a ação, a intervenção, a rutura com a perda de valor, opõe-se a ideia de conservação, que pretende manter o que se assume como tendo elevado interesse ou qualidade, promovendo uma atitude de proteção, procurando a manutenção de um padrão, de funções, estruturas ou composições. E que pode ser levada ao extremo no caso da preservação. Enquanto a conservação pode incorporar ações e aceitar a intervenção humana com base num código de conduta que impõe algumas limitações, estando associada a uma visão mais utilitária, a preservação pretende reduzir ao mínimo essa intervenção.

Assim, o restauro assume maior oposição à ideia de preservação. Se o restauro pressupõe voltar a um estádio anterior, recuperar da perda imposta por um processo ou fator, a preservação pretende manter o estado atual, e está ancorada numa perspetiva preventiva e estática dos espaços naturais, afastando a ideia de usufruto. Na verdade, a preservação adiciona um conjunto de limitações rígidas, as quais visam bloquear qualquer ação, fator ou processo externos ao sistema e que podem promover alterações. As reservas integrais, uma figura presente nos sistemas de conservação da natureza de diversos países, são delimitadas tendo por referência a presença de um conjunto de valores naturais de elevada qualidade e exclusividade, e correspondem à categoria que mais limitações impõe, comparativamente a categorias como parque natural, reserva natural, ou paisagem protegida.

É de salientar, no entanto, que esta ideia linear e bidirecional difere em termos de interpretação, dependendo do âmbito ou contexto. Utilizando por referência o conceito de património, a interpretação destes conceitos muda consoante se trate de património construído ou património natural, encerrando dinâmicas e tempos de ação muito diferentes, algo que explica o enviesamento de perspetiva de que padece este texto, centrado na perspetiva do património natural. Segundo a Society for Ecological Restoration (SER, 2004), o restauro de espaços naturais ou seminaturais traduz-se num processo que pressupõe o acompanhamento de uma dinâmica ao longo do tempo, promotora da recuperação de áreas ou ecossistemas degradados. Esta ideia prevê que haja uma redução da intervenção ao longo do tempo, após uma intervenção inicial mais ou menos profunda, sendo o tempo um fator que vai apagando as marcas da intervenção inicial. Esta perspetiva de intervenção, pautada por um objetivo orientador, assume uma estrutura flexível, dada a necessidade de incorporar o resultado de dinâmicas não lineares, associadas à complexidade dos sistemas naturais (Anke, 2007). É uma flexibilidade que se pretende limitar no património construído, uma vez que se assume como objetivo prolongar a geometria da intervenção inicial por um período o mais longo possível com base em regras de intervenção bem definidas. Enquanto no restauro da fachada de um edifício a passagem do tempo encerra um processo de degradação, no caso do restauro de património natural o tempo atua como factor de melhoramento, que adiciona valor, permitindo restabelecer processos e funções naturais, promovendo a complexidade do sistema natural, que se encontrava fragilizado. É o caso de áreas que foram alvo de processos de arborização e onde se pretende restaurar um sistema florestal, cuja complexidade vai muito além da estrutura arbórea. É verdade que em ambas as situações partimos de um contexto de menor valor, desfavorável. Mas, enquanto o resultado do restauro da fachada de um edifício marca, normalmente, o retorno ao ponto de máximo valor ou interesse, no caso do restauro de património natural esta intervenção marca o início de um processo evolutivo que se carateriza por um aumento da qualidade com a passagem do tempo. A plantação de um conjunto de árvores não cria a floresta, mas marca o ponto inicial de um processo que se desenvolve ao longo do tempo. Enquanto no restauro da fachada de um edifício se pretende que o resultado da intervenção se mantenha o mais possível, no caso do restauro de áreas naturais pretende-se que a geometria da intervenção inicial se dilua por ação de processos naturais que promovem o restabelecimento de uma organização que se interpreta como tendo um valor ou qualidade crescente.

Por outro lado, enquanto a conservação delimita bem o raio de ação e limita a possibilidade de desvirtuar a entidade à qual se reconhece valor, ainda que possa estar baseada em pressupostos disfuncionais, já o processo de restauro poderá estar envolto em ações de recriação que adicionam informação ou elementos que não faziam parte da entidade num estádio anterior, decisões resultantes de desconhecimento. Por vezes, chega-nos apenas uma fração da informação, ou o que vemos e não interpretamos corretamente é já resultado de uma transformação associada ao processo de degradação. No caso do restauro do património natural esta questão é especialmente sensível, principalmente em territórios sujeitos aos impactos das atividades humanas ao longo de milhares de anos. O risco de promover ações desajustadas quando se pretende a manutenção de uma entidade pode ocorrer mesmo ao nível da conservação do património natural, situação também associada ao facto de não conhecermos bem o objeto ou entidade alvo. Assim, as estratégias implementadas para conservar bloqueiam a ação de determinados fatores, importantes para a manutenção de determinados atributos, promovendo alterações em função do estabelecimento de um novo equilíbrio.

Além de os dois conceitos estarem marcadamente associados a posturas diferentes, cada um deles pode ser alvo de entendimentos diferentes em relação à ação que lhe está associada. Assim, o código de informação que estrutura os nossos interesses pode conduzir a uma interpretação diferente. O que para uns é restauro, recuperação, para outros assume-se como uma perda. Como exemplo cito os nossos avôs, que carregam desânimo no olhar quando enfrentam uma paisagem marcada pelo abandono agrícola, à qual não reconhecem estrutura nem funções, resultado de uma dinâmica natural que parece semear o caos e mascara a organização imposta por um uso estruturado na necessidade de sobrevivência. «Está tudo perdido». Já nada «anda limpo como antes». Na verdade, é apenas o resultado do processo de recuperação espontânea dos sistemas naturais sujeitos a perturbação, associada às diferentes atividades humanas praticadas ao longo de séculos. Mas, a este desalento opõe-se o entusiasmo dos que não exploram diretamente o solo e veem esta dinâmica que se instala em parcelas agrícolas abandonadas como a necessária renaturalização da paisagem, configurando um processo de restauro espontâneo, sem necessidade de intervenção humana. Para uns trata-se de restauro, para outros é uma perda que se traduz no aparecimento de uma nova entidade que não tem referência ao nível da vivência ou conhecimento adquirido. A verdade é que a conservação se direciona para o que conhecemos, para o que nos é mais familiar ou agrada mais, fazendo parte dos nossos interesses como indivíduos ou como sociedade. Apresenta-se, assim, como seletiva.

Pensando numa ótica de grupos com interesses opostos, o restauro pode ser assumido como uma perda, e a conservação impedir o restauro. Conservar os atributos que garantiram a classificação da paisagem da Região Demarcada do Douro pressupõe uma ação/intervenção constante com vista a conservar uma paisagem construída, ação estruturada no bloqueio de um conjunto de processos que promovem o restauro de uma paisagem natural. Já a conservação da paisagem da Laurissilva da Ilha da Madeira pressupõe que se reduza a intervenção ao mínimo, permitindo preservar património natural de elevado valor para a conservação.

 O restauro ecológico baseia-se numa perspetiva mais ativa, e comporta práticas de recuperação, mais ou menos interventivas, no sentido de restabelecer um equilíbrio funcional que pode estar muito distante das condições originais, dependendo do tipo e da profundidade das alterações sofridas nas funções e estrutura. Desde suaves medidas corretivas, permitindo que a recuperação se processe de forma autogénica, até à implementação de medidas profundas, há uma grande diversidade de situações ao nível do restauro de áreas naturais (Hobbs, 2007). A eficácia do processo de restauro está dependente não só do nível de degradação a que chegou o sistema, podendo comprometer o regresso a um estádio anterior, como do nível de conhecimento desse mesmo estádio. No primeiro caso, podemos citar as profundas alterações associadas à exploração mineira ou pedreiras a céu aberto, cujo sucesso dos projetos de restauro, um dos exemplos pioneiros neste âmbito, está limitado pela alteração profunda das condições biofísicas, garantindo essencialmente a valorização estética da nova paisagem, dada a dificuldade em restabelecer as funções e a estrutura anteriores à instalação destas unidades de exploração (Choi, 2007; Figueiredo & Almeida, 2015).

Considerando a complexidade associada aos processos naturais, e a frequente falta de informação sobre o estádio anterior à degradação, é comum perspetivar o restauro ecológico no sentido do restabelecimento das condições base necessárias à retoma dos processos estruturantes, considerados fundamentais para o arranque de uma dinâmica de recuperação (Hobbs, 2007). Esta decisão é norteada pela identificação de um sistema de referência associado à utilização de áreas similares com grau de degradação inferior, e condições mais próximas do que se pensa terem sido as condições originais do local a recuperar (Hobbs, 2007). Além das dificuldades em criar uma situação de referência para as condições passadas ou futuras, alguns autores advogam que o restauro ecológico deve ser direcionado para a recuperação de habitats sustentáveis perante novas condições (Choi, 2007), trazendo para a discussão a necessidade de considerar os efeitos de mudanças ambientais registadas e previstas na definição da estrutura e composição dos sistemas a recuperar (Harris et al. 2006). Esta discussão ganhou especial destaque ao nível mundial com a implementação crescente de projetos de rewilding. Estes pretendem promover o restauro de condições passadas, algumas delas associadas a condições climáticas anteriores, como é o caso da introdução de herbívoros de grande porte em determinados locais da Europa para recriar as condições próximas das existentes no último período frio (aprox. 20 000 – 18 000 anos BP). Contam-se já diversos exemplos no âmbito Europeu, mas existe alguma controvérsia associada às ações enquadradas nesta tendência, por se tratarem de projetos implementados fora da circunscrição clássica do restauro do património natural, assumindo um caráter de recriação. Na verdade, vários fatores afastam estes projetos do contexto original, que em grande parte desconhecemos, nomeadamente pela inclusão de elementos que, muito provavelmente, estariam ausentes desse mesmo contexto original.

Também a conservação não está isenta de problemas na sua aplicação. A prová-lo está a existência de conflito na implementação de figuras de proteção, como parques naturais. No fundo, interesses opostos. Assim, além de diferenças na interpretação destes conceitos, devemos ainda considerar que ações neles ancoradas são valorizadas em função de interesses diversos, promovendo posicionamentos nem sempre convergentes. Isto porque a conservação não implica sempre um ganho para todos, e o restauro pode ter perdas associadas. Ao assumirmos uma posição estamos a materializar o reflexo de um contexto, interesse, código, grupo, deformação intelectual, ou simplesmente experiência de vida. Independentemente disso, ambos os conceitos têm associada uma conotação positiva, em que se ganha mais do que se perde. Na esfera do património natural, trata-se apenas de uma opção de uso do solo, como a agricultura ou a exploração de inertes, a qual está enraizada numa perspetiva ou visão.

 

Bibliografia:

 

Anke, J. (2007). The Challenge to Restore Processes in Face of Nonlinear Dynamics—On the Crucial Role of Disturbance Regimes. Restoration Ecology, 15(2), 334-339. doi: doi:10.1111/j.1526-100X.2007.00220.x.

Choi, Y.D. (2007). Restoration Ecology to the Future: A Call for New Paradigm. Restoration Ecology 15 (2): 351-353.

Figueiredo, A., & Almeida, A. C. (2015). Restauración ecológica. In L. L. Trigal (Ed.), Dicionario de Geografia Aplicada y Profesional. Terminologia de análisis, planificación y gestión del territorio (pp. 535 - 536). León: Universidad de Léon.

Harris, J. A., R. J. Hobbs, E. Higgs, and J. Aronson. 2006. Ecological res- toration and global climate change. Restoration Ecology 14:170–176).

Hobbs, R.J. (2007). Setting Effective and Realistic Restoration Goals: Key Directions for Research. Restoration Ecology 15 (2): 354-357.

SER (2002). SER International Primer on Ecological Restoration. Available from http://www.ser.org, Accessed 10 March 20014).

Suding, K. N., K. L. Gross, and G. R. Houseman. 2004. Alternative states and positive feedbacks in restoration ecology. Trends in Ecology and Evolution 19:46–53).

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