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It might have been an Autumn day. It was certainly in the afternoon. I was in the house I lived in with three other students, where I occupied one of the inner rooms. At some point that day I had the house to myself, and Lisbon shone through onto the larger room facing the street. From there I could see the sidewalk over two small balconies, and a melancholic sunshine: shining strong during the day, hardly half gone, but foreseeing the premature giving away to the dusky evening. I held a recently bought book (I cannot remember the precise reason that made me pick it) and decided to read. I pulled a large chair to the center of the room, and cuddled in the sunlight which lit the pages and made me waive the sweater.
It may still be the book that most makes me think—in the time and space concentration in which the absorption of words and movement coexist, the movement of a few cells to make the eyes pass almost imperceptibly from pages 47 to 226 and the neck move only after the point at which the text silences the “screams of hate” and allow the head to slightly rise. To enter a thought—that is what I understand reading to be. But the idea of entering appears to me only because I recognize the path towards an exit: the wonder over the face, the raised glance, a city street which, all in all, continues to exist beyond the window, and the sudden and brief chill in the body for, in that exit, it realizes how the sun has moved and the chair no longer occupies the center of its light.
“This means nothing.” That is the seventh sentence of a novel, a claim about words in a telegram someone has gotten—someone I swiftly turn into, even before the seat of the chair flattens under my weight in that Autumn afternoon. It is also a warning on the book I am about to read, and it works in two opposite directions: I must not look for what the book might mean to say, for it claims to mean nothing; but asserting such claim of nothingness, displaying it so bluntly in a sentence, turns it into something material, weighing in on the body the chair welcomes—therefore, all I do is search the “nothing” the text claims to mean. Not so much to foresee the reasons of someone who, having lost his mother the day before, agrees to go see a Fernandel comedy; nor to find meaning in the fact that the most remarkable feat following the movie, a night with company and a morning of abandonment, is the cutting of “of a Kruschen salts add” to paste it “on an old notebook” where one keeps funny things that come up in newspapers. Rather because all the words of this recent orphan paste themselves onto whoever reads them and make the sunlit floorboard where I had set up the chair into a “room with a view onto the main street” of a neighborhood in Argel or into an overcrowded prison cell.
In the sentence “a man who had lived only one day could easily live for a hundred years in prison,” “had lived only one day” is synonymous with “had read a single book”—“a hundred years” corresponds to the world as I finish reading the book.
PT
Talvez fosse um dia de Outono. Era de tarde, na casa onde morava com mais três estudantes e dormia num dos quartos interiores. Naquela ocasião, tinha a casa só para mim e Lisboa fazia entrar no quarto grande, que dava para a rua principal através de duas varandinhas, a luz de um sol melancólico: forte no dia, que pouco passava de meio, mas a antecipar a precoce cedência ao escuro da noite. Tinha nas mãos um livro que comprara havia pouco (e não recordo por que razão). Decidi começar a ler: arrastei para o meio da divisão uma cadeira grande e aninhei-me ao sol, que iluminava as páginas e me fazia dispensar a camisola.
Talvez continue a ser o livro que mais me faz pensar em pensar — na concentração horária e espacial em que coexistem a absorção das palavras e o movimento, que algumas células hão de fazer, que leva a que os olhos pouco ou nada se movam, da página 47 à 226, e o pescoço só depois do ponto com que o texto cala os “gritos de ódio” dê altura ao crânio. Entrar num pensamento — é o que entendo por ler. Mas só compreendo que se entre porque reconheço os passos da saída: o espanto do rosto, o olhar subido, uma rua que, afinal, existe para lá da janela e o arrepio que o corpo manifesta porque, nessa saída, se apercebe de que o sol se moveu e a cadeira deixou de estar no seu enquadramento.
«Isto não quer dizer nada». É a sétima frase de um romance, uma asserção referente às palavras de um telegrama que alguém recebeu, alguém em quem me torno naquela tarde de Outono, ainda nem o assento da cadeira se achatou. É, ao mesmo tempo, um aviso sobre o livro que começo a ler, que funciona em duas direções opostas: não devo procurar o que o livro queira dizer, porque ele não quer dizer nada; mas, se se afirma esse não querer, se ele se mostra numa frase, torna-se coisa material, faz pesar-me o corpo que a cadeira acolhe — então, não faço senão procurar o «nada» que o texto não quer dizer. Não tanto para entrever razões de alguém que, tendo perdido a mãe no dia anterior, acede a ir ver uma comédia de Fernandel. Não mesmo para encontrar sentido no facto de o mais assinalável, depois do cinema, de uma noite acompanhado e de uma madrugada de abandono, ser que se recortou «um anúncio de sais de Kruschen» para o colar «num velho caderno» onde se guardam coisas divertidas que aparecem nos jornais. Antes porque todas as palavras deste novo órfão se colam sobre quem as lê para transformar o soalho ensolarado onde instalei a cadeira num «quarto que dá para a rua principal» de um bairro de Argel ou na cela sobrepovoada de uma prisão.
Na frase «um homem que houvesse vivido um único dia, poderia sem custo passar cem anos numa prisão», «ter vivido um único dia» é sinónimo de «ter lido um único livro». «Cem anos» equivale ao mundo quando o livro termina.