Uma parte importante da historiografia medieval islandesa são as «Sagas de Islandeses», compostas na Idade Média tardia. A origem deste género literário é incerta, mas as sagas mais antigas podem ser datadas, com segurança, do segundo quartel do século XIII. Este género de sagas floresceu a partir de então, nos séculos XIII e XIV, com várias sagas apenas sobreviventes em manuscritos mais recentes, não sendo improvável que alguns textos tenham também sido compostos no século XV. Muito do interesse histórico islandês da Idade Média tardia focou-se na chamada «Era das Sagas», de c. 950 a c. a 1030, manifestamente vista como um período fundacional da História. As razões para tal, contudo, são menos certas. É também notável que o interesse histórico seja focado em contendas e disputas, que levam a violência e matanças. Nisto, o interesse histórico islandês não é totalmente dissemelhante do interesse americano do século XX no Oeste selvagem e no «tempo dos cowboys» da história americana. No entanto, um interesse em violência não implica necessariamente uma glorificação da violência, e o estudo de caso aqui apresentado é disso um bom exemplo.

O Þorsteins þáttr stangarhǫggs[1] foi datado do século XIII e, em obras de referência, é apresentado como uma saga de islandeses curta e independente. Na sua edição (na série Íslenzk fornrit, publicada pela Hið íslenzka bókmenntafélag), o próprio Jón Jóhannesson, na verdade, chamou-lhe «conto» (Jón Jóhannesson 1950). Embora seja claro que o Þorsteins þáttr é curto, a sua datação e independência textual são outra questão.

O Þorsteins þáttr stangarhǫggs existe apenas num único velino, AM 162 C fol., datado do século XV. Somente uma página do episódio está aí preservada, embora conserve mais de metade do texto total. Os principais manuscritos do episódio são dois manuscritos de papel do século XVII, AM 156 fol. e AM 496 4to. Nestes três manuscritos, o Þorsteins þáttr é incluído entre outras sagas sobre os Fiordes Orientais da Islândia. O manuscrito 162 inclui a Vápnfirðinga saga e a Droplaugarsona saga, e o 156 e 496 incluem a Hrafnkels saga Freysgoða e a Þorsteins saga hvíta,[2] entre outros pequenos episódios sobre pessoas dos Fiordes Orientais. Ambos os manuscritos 157 e 162 são fragmentos de um manuscrito maior, e é difícil determinar de que tipo de obra fariam parte como um todo. No 496 (que terá estado na posse do bispo Þorlákur Skúlason), o Þorsteins þáttr é classificado como um episódio da Vápnfirðinga saga.

A partir disto, podemos ver que o Þorsteins þáttr stangarhǫggs não é assim tão independente quanto se poderia presumir a partir das descrições em sinopses de referência sucintas. Nos manuscritos mais antigos, é definido como parte de uma história maior sobre a Gente dos Fiordes Orientais (Austfirðinga sǫgur), e no próprio texto do episódio podemos encontrar sinais disto. «Bjarni frá Hofi» é mencionado cedo na narrativa sem qualquer apresentação da personagem ao leitor, algo bastante incomum numa saga de islandeses. No entanto, Bjarni Brodd-Helgason é um líder notável e uma das personagens principais da Vápnfirðinga saga. Também aparece na Njáls saga, na Fljótsdœla saga e no Gunnars þáttr Þiðrandabana.[3] É difícil precisar porque é que não é apresentado mais detalhadamente no Þorsteins þáttr. Várias personagens da Era Viking eram célebres durante os séculos XIII e XIV e apareciam em muitas sagas de islandeses, mas são, apesar de tudo, apresentadas em detalhe na maioria das sagas em que marcam presença. Por outro lado, Guðmundr inn ríki não é apresentado adequadamente na Ljósvetninga saga,[4] que lida com ele e os seus descendentes, pelo que esta atitude não é sem precedentes. Curiosamente, a Ljósvetninga saga também está preservada no AM 162 C fol.

Parece mais provável que o Þorsteins þáttr sobrevivente tenha surgido em manuscritos lado a lado com outras sagas sobre as gentes dos Fiordes Orientais, e que, nessas sagas, Bjarni fosse apresentado de forma mais completa (e.g. Vápnfirðinga saga). Por outras palavras, apesar de o Þorsteins þáttr ser talvez originalmente independente, a versão sobrevivente não o é. Dado que o manuscrito mais antigo do Þorsteins þáttr é do século XV, a sua datação do século XIII deve permanecer incerta. No entanto, no final do episódio, o leitor recebe genealogias de alguns dos magnatas da primeira parte do século XIII (1212-35), tais como Þorvaldr Gissurarson Hruni (m. 1235), Magnús Guðmundsson allsherjargoði (m. 1240), Digr-Helgi Þorsteinsson (m.  1235), os irmãos Þórðr (m. 1237), Sighvatr (m. 1238) e Snorri Sturluson (m. 1241), e Ormr Jónsson Svínfellingr (d. 1241). Isto parece indicar que as raízes do Þorsteins þáttr estão na Era dos Sturlungs.[5]

Sob esta luz, é interessante que o Þorsteins þáttr trate de discórdia e conflito, e que estes sejam resolvidos de uma maneira pacífica. As personagens do episódio podem ser divididas entre as que promovem a paz e as que promovem a violência e a discórdia. É possível que esta história tenha nascido da atmosfera violenta que caracterizou a Era dos Sturlungs, e que tenha sido direccionada contra o ideal e modelo de comportamento prevalente.

A sociedade descrita no Þorsteins þáttr é uma sociedade fechada, pequena e simples, uma espécie de microcosmo que é uma representação relativamente boa do mundo maior (macrocosmo), ou da sociedade islandesa no geral. Há duas quintas em foco na história, Hof, a principal propriedade de Bjarni Brodd-Helgason, e Sunnudalr, uma pequena quinta, propriedade de Þorsteinn stangarhǫgg. Por vezes, faz-se referência ao «herað» (distrito) inteiro, e à opinião dominante dos seus habitantes.

Bjarni vive em Hof com a sua mulher Rannveig e os seus servos Þórðr, Þórhallr e Þorvaldr. Além disso, também aparecem brevemente na história um homem e uma mulher anónimos, que vivem em Hof e que poderão ser interpretados como a voz da opinião pública. Em Sunnudalr, Þorsteinn toma conta do seu pai Þórarinn, envelhecido e meio cego, que havia sido um viking e perdera já a sua capacidade guerreira, embora mantenha certamente o temperamento belicoso.

As personagens deste episódio podem ser divididas entre duas categorias: por um lado temos os jovens e viris proprietários, Bjarni e Þorsteinn, e pelo outro as mulheres, os trabalhadores e os idosos, i.e. todos os restantes. Podemos também referir-nos aos dois grupos como «aqueles que lutam» e «aqueles que incitam os outros à batalha». Esta oposição é o catalisador da história, descrevendo mais ou menos as variadas visões que estes dois grupos têm sobre lutar e como um grupo (que aparenta por vezes ser mais fraco) mantém o outro refém através de uma eficiente gestão de rumores e da sua retórica no que diz respeito à honra pessoal.

A história começa durante um evento relativamente comum, uma luta de cavalos no distrito. Nas sagas de islandeses, há um número considerável de exemplos em que uma luta de cavalos leva a conflito posterior e a um combate (e.g. a Njáls saga). Tem sido notado pelos estudiosos, como uma característica marcada das sagas, que conflitos e contendas começam, na maior parte das vezes, com ocorrências quotidianas, que depois se intensificam (o esquartejar da gordura das baleias ou o trabalho de quinta, como a ceifa do feno ou o cuidar de rebanhos). Desta vez, o antagonista é o moço do estábulo de Bjarni, Þórðr, que é apresentado na história como um «ójafnaðarmaðr mikill» (homem muito injusto e conflituoso). Durante a luta de cavalos, Þórðr perde a compostura quando as coisas não lhe correm de feição, e golpeia Þorsteinn por cima do olho. Este decide aceitar o golpe em silêncio e não procura vingança.

No entanto, o golpe que Þorsteinn recebeu dará origem, mais cedo que tarde, a um conflito adicional, dado que Þorvaldr e Þórhallr escolhem troçar de Þorsteinn e chamar-lhe «stangarhǫgg», ou «fustigado». Esta, claro, não é a única vez em que uma alcunha surge devido a provocações. Este tipo de troça oferece-nos um vislumbre de uma sociedade caracterizada pela moral dos senhores. Hoje em dia, é provável que a maioria das pessoas não tomasse ser golpeado desta forma como algo que diminui o respeito por um homem, mas na Idade Média islandesa era esta a norma. Um bom exemplo pode ser encontrado na Njáls saga, quando Gunnarr de Hlíðarendi é acidentalmente atingido por um cavalo, mas, após ser ridicularizado por chorar, dá início a uma vingança extremamente violenta contra o que originalmente foi um golpe não-intencional.

O texto enfatiza que o golpe que Þorsteinn recebe faz dele um homem menor, e podemos interrogarmo-nos sobre qual o objectivo desta posição. Parece provável que a acção tenha tido um significado geral, e que a história possa bem ser tomada como uma parábola, onde Þorsteinn stangarhǫgg não é bem-nascido, e aparenta ter um valor simbólico, ao invés de específico, como personagem. De seguida, podemos perguntar-nos se será possível encontrar aprovação ou crítica relativamente a esta dura avaliação social, contidas na história.

Aqui, Þorvaldr e Þórhallr são os representantes da sociedade, na medida em que estão sedentos de batalha, mas não têm, eles próprios, intenção de lutar. Guardam a honra daqueles que lutam e encorajam-nos à discórdia, através do uso de gozo e provocações irreflectidas. Estas personagens foram denominadas por Preben Meulengracht Sørensen como «guardiões da honra» (ærens vogere), que também notou como as pessoas nestes papéis eram aqueles que não possuíam, eles mesmos, muita honra dentro da sociedade, e.g. mulheres, idosos e servos, pessoas que não tomam parte directa nas matanças e contendas. Para além do Þorsteins þáttr, a Njáls saga (especialmente o episódio da matança entre servos) é a melhor fonte destas personagens, e podemos também mencionar as mulheres itinerantes, que praticam sempre feitos maléficos no contexto da saga. Opondo-se a estas personagens encontramos os próprios líderes e assassinos, que não são facilmente provocados, mas que são finalmente desafiados a defender a sua honra por serem acusados de cobardia, de serem dados ao choro, ou por exibirem regularmente falta de masculinidade.

É quando Þórarinn, pai de Þorsteinn, mostra a sua malícia, ao contar ao último os comentários que os dois servos andam a fazer sobre ele, que Þorsteinn é primeiramente incitado a agir. Þórarinn diz-lhe que ele foi «lostinn í svíma sem hundr» (golpeado como um cão) e chama-lhe «ragr» (medroso ou efeminado). Þórarinn é demasiado velho para lutar ele mesmo, e é, portanto, um excelente exemplo de um tagarela belicoso, que incita outrem a lutar e provocar conflitos. Devido à instigação de Þórarinn, Þorsteinn vai procurar compensação financeira junto de Þórðr, que lhe responde de forma desavergonhada e rude, acabando a discussão com a morte do último às mãos de Þorsteinn.

Uma mulher sem nome, que se encontra por perto, é encarregada por Þorsteinn de transmitir a Bjarni a notícia de que um boi matou Þórðr. Esta diz a Þorsteinn que volte para casa e que dirá aquilo que achar adequado. E realmente ela assim o fará, apesar de deixar passar bastante tempo antes de informar Bjarni da presença de Þorsteinn na propriedade, acrescentando que «þar er lítit til vits að taka, sem vér erum konur» (nós, as mulheres, não temos muito juízo). De seguida, alega não ter querido acordar Bjarni na altura, e que, entretanto, se tinha esquecido do caso. Esta mulher parece fazer as coisas à sua maneira, dado que nem acorda Bjarni imediatamente, nem esconde o facto de que Þorsteinn é o assassino. Há poucas razões para interpretar à letra as suas palavras sobre a falta de juízo das mulheres. Pode, porventura, ser vista como uma personagem secundária cómica, representando o plebeu ignorante que providencia comic relief entre momentos de tensão, numa história recheada de conflito. No entanto, pode também ser o caso de que esta mulher seja uma estratega brilhante, e que tenha esperado para contar a Bjarni sobre a matança para atrasar derramamento de mais sangue. Este tipo de personagens secundárias encantadoras, intrigantes, mas ambíguas, pode ser encontrado pelo corpus de sagas sobre islandeses, e a maioria delas estão adornadas com descrições de personalidade mais ricas do que as que se encontram noutros tipos de literatura medieval.

Outro exemplo de uma personagem anónima bem-intencionada é o homem que censura Þorvaldr e Þórhallr pelos seus gracejos acerca de Bjarni ser uma desgraça por não ter procurado retribuição contra Þorsteinn pela matança de Þórðr. Este homem diz que, claramente, Bjarni o faz por bondade, por não querer privar o velho Þórarinn do seu provedor de sustento. Bjarni acaba por arranjar o seu próprio método para procurar vingança, enviando Þorvaldr e Þórhallr para matar Þorsteinn, os mesmos que alegavam preocupar-se com a honra de Bjarni. As suas vidas terminam numa batalha que Þorsteinn vence facilmente.

Apesar de estas mortes significarem que os maiores instigadores do distrito estão agora removidos do enredo, a história não acaba aqui. Resta ainda uma pessoa para incitar Bjarni. Desta feita é Rannveig, a sua mulher, que lhe diz que todo o distrito está em burburinho sobre ele ter deixado Þorsteinn escapar incólume com a morte dos seus homens. Agora, diz ela, não apenas irá perder a sua honra, mas perderá também apoiantes na assembleia.[6] Bjarni reage indo combater com Þorsteinn por si mesmo, apesar das súplicas de Rannveig para que leve um grupo de homens e não se arrisque a ser apanhado «einn undir vopn heljarmannsins» (sozinho sob a arma do brutamontes). Nesse momento, Bjarni faz um discurso sobre as incitações das mulheres, que tão depressa instigam alguém, como choram. Rannveig pode ser vista como um elemento importante para entender o tema do episódio, dado que ela se correlaciona directamente com a crítica àqueles que encorajam a violência usando apenas a arma das palavras. Nisto, Rannveig e o envelhecido Þórarinn, pai de Þorsteinn stangarhǫgg, posicionam-se numa situação semelhante, apesar de Þórarinn provar ser um belicista intransigente.

Þorsteinn e Bjarni levam a cabo o seu duelo, pausando para Bjarni beber e atar o seu atacador. No final, Bjarni oferece-se para contratar Þorsteinn como seu trabalhador no lugar dos três servos que ele matou, e é assim que se atinge uma paz duradoura. Bjarni também concorda em providenciar ajuda ao pai de Þorsteinn, em lugar deste. Þorsteinn aceita esta oferta manifestamente nobre. O velho Þórarinn, que demonstrou grande felicidade quando o seu filho queria lutar contra Bjarni, e tinha previamente dito que preferia perder Þorsteinn a ter um filho cobarde, tenta agora atrair Bjarni junto à cama onde jaz, para o golpear ele próprio com a sua arma, apesar da sua invalidez. Bjarni discerne o seu verdadeiro objectivo, chamando a Þórarinn «allra fretkarla armastan» (um velhadas miserável), e dizendo-lhe que seria mais apropriado que fosse servido por escravos do que pelo próprio filho.

De todas as pessoas na história, Þórarinn é quem melhor representa a implacabilidade incondicional e sedenta de sangue dos antigos ideais, munido, para além disso, da mentalidade de um assassino de carreira. A dona-de-casa em Hof, Rannveig, e os trabalhadores Þorvaldr e Þórhallr, representam o mesmo papel. Com as suas palavras e incitações, tentam provocar batalhas e conflitos nos quais não têm particular interesse em tomar parte por si mesmos. Assim, os representantes das sensibilidades guerreiras e os mensageiros da discórdia são precisamente as pessoas que não têm um papel directo em batalha, tais como mulheres e idosos, aqueles que não empunham armas físicas. Trata-se de uma análise sociológica astuta da parte de quem urdiu esta trama narrativa, revelando que o conflito e a discórdia não envolvem apenas o guerreiro, mas também as pessoas nas linhas laterais, que actuam como os instigadores da guerra.

De todas as personagens que incitam o guerreiro, Þórhallr e Þorvaldr são as mais simples, pois são do tipo fanfarrão, barulhento e desagradável. Rannveig, por outro lado, é muito mais complexa. Está claramente preocupada com a honra do seu marido e leva a sério os mexericos do distrito. No entanto, não quer que ele arrisque a própria vida por honra, considerando ao invés que deve vingar-se de Þorsteinn de uma forma injusta, levando mais guerreiros para o confronto. De todos, Þórarinn, o viking, é o mais firme no seu papel, tendo sido o instigador original de todo o conflito quando chamou ao seu filho cão cobarde, após este ter decidido não responder ao golpe de Þórðr. Tal como fica claro posteriormente, Þórarinn prefere ter um filho morto a um filho cobarde. As suas acções nunca demonstram um grande amor pelo filho, nem mostram gratidão pelo seu trabalho e apoio. Þórarinn é um exemplo do motivo de Cronos, que encontramos frequentemente em histórias sobre conflitos geracionais, onde um pai idoso tem inveja dos seus filhos, luta com eles e deseja as suas mortes.

É interessante considerar as implicações sociais do episódio, na medida em que foi composto num período semelhante ao dos homens cuja genealogia é relatada no final do episódio, provavelmente pouco depois de 1230, em plena Era dos Sturlungs. Este foi um tempo de guerra e contenda na Islândia, e, certamente, estas ocorrências estarão representadas no Þorsteins þáttr. Pode-se dizer que a sociedade como um todo se dá ao trabalho de provocar Þorsteinn e Bjarni até ao ponto de entrarem em combate. Porém, ambos são lentos a reagir à provocação, sem prejuízo de serem bravos e corajosos guerreiros. Quando finalmente chegam a vias de facto, estão preparados para se reconciliar. É assim que o episódio termina, quando Bjarni Brodd-Helgason providencia a Þorsteinn um conjunto adequado de termos de reconciliação, na atitude de um bom líder que claramente possui o poder superior.

Será válido interpretar uma narrativa artística como o Þorsteins þáttr como uma história que carrega uma mensagem de paz? Poderia ser sugerido que um movimento pela paz semelhante teve lugar na Islândia durante o século XIII e que a Igreja representou nele um papel central. Entre os objectivos da Igreja encontrava-se limitar a discórdia, aumentando o número de santuários e de dias sagrados de obrigação nos quais a batalha não era permitida. É aparente também, a partir de fontes contemporâneas, que a maioria dos proprietários e dos islandeses comuns estavam contra os conflitos empreendidos pelos líderes na sua ambição pelo poder, embora isto tivesse um efeito limitado. Em várias fontes dos séculos XIII e XIV, a conflituosidade da Era dos Sturlungs é abertamente criticada. Sob esta luz, não pode ser desconsiderado que um escriba deste período tenha aproveitado a oportunidade de usar uma narrativa histórica para fazer uma crítica indirecta.

Para mais, deve-se manter em mente que a natureza desta saga é a de uma parábola. A narrativa é curta e claramente definida como o relato de uma única disputa, onde poucas das personagens são de facto históricas. Se concordarmos que uma narrativa assim possa provavelmente assumir um valor simbólico, e que a maioria do conteúdo revolve em torno de batalhas e conflitos, então deverá ser fácil de verificar se a história favorece a paz ou a guerra. A conclusão, então, é de que não é absurdo argumentar que o Þorsteins þáttr promove a paz.

Theodore M. Andersson usou o Þorsteins þáttr como um exemplo para a estrutura das sagas de islandeses (Andersson 1967). Distinguiu seis secções narrativas: introdução, conflito, clímax, vingança, reconciliação e epílogo. No entanto, pode ser argumentado que o clímax do Þorsteins þáttr não é de todo exemplar: em vez de uma intensificação contínua de conflitos, a batalha final de Þorsteinn e Bjarni é concluída com pausas contínuas e diálogo cortês, até Bjarni pôr um fim à farsa e oferecer a Þorsteinn honra e respeito. O episódio é também exactamente isso, um episódio, uma única unidade que pertence a uma saga completa, ao invés de uma saga por si só. Bjarni nunca é apresentado e, no final, parece importante revelar o efeito que aqueles eventos tiveram na sua vida. Estes aparentam ter sido praticamente uma longa introdução à peregrinação que o líder fará a Roma.

Apesar de o episódio começar com a apresentação de Þorsteinn, acaba com uma longa narrativa sobre o destino de Bjarni, que na sua velhice se aventurou para Sul e foi enterrado perto de Roma. Só se pode assumir que um destino destes teria seria considerado extremamente bom, e que Bjarni terá morrido como um homem penitente, com valores cristãos. Com o seu corpo enterrado em solo sagrado, este efeito só teria aumentado. Neste ponto da história, os seus descendentes são enumerados, incluindo uma variedade de pessoas importantes do século XIII. O próprio Þorsteinn cai na obscuridade e não há qualquer enumeração genealógica para ele, sendo suficiente que tivesse sido considerado como «nær einskis manns maki vera at drengskap ok hreysti» (sem paralelo em valor e virilidade). Tudo isto levanta a questão sobre se o episódio terá sido planeado como uma coda à Vápnfirðinga saga, ou se será mais apropriado vê-lo como uma narrativa distintamente independente.

 

* Tradução de Miguel Andrade de inédito em inglês.

[1] N.T.: Em português, o «Episódio de Þorsteinn, o fustigado». Os þættir (sg. þáttr) são pequenas narrativas ou episódios, de estilo semelhante às sagas islandesas. Surgem, por vezes, inseridos em grandes compilações de sagas, e o seu grau de independência narrativa é variável.

[2] Respectivamente, a «Saga da Gente de Vápnafjǫrðr», a «Saga dos Filhos de Droplaugr», a «Saga de Hrafnkell, o goði-de-Freyr» e a "Saga de Þorsteinn, o branco».

[3] Respectivamente, a «Saga de Njáll», também conhecida como a «Saga de Njáll, o queimado» (Brennu-Njáls saga), a «Saga da Gente de Fljótsdalr» e o «Episódio de Gunnarr, o assassino de Þiðrandi».

[4] A «Saga da Gente de Ljósavatn».

[5] N.T. A Era dos Sturlungs é o nome convencionalmente dado ao período que começa nas primeiras décadas do século XIII e acaba em 1262-64, marcado por grande conflituosidade entre chefes, cada vez mais poderosos, e por algumas das maiores e mais sangrentas batalhas da história da Islândia. Na visão tradicional da história islandesa, sinaliza o início do fim do Estado Livre Islandês e a subjugação da Islândia ao rei da Noruega, com quem alguns chefes islandeses se aliam no jogo de poder uns contra os outros. Nos anos de 1262-64, oficializa-se a passagem da Islândia para o domínio dos reis noruegueses. O nome do período deriva do protagonismo ímpar alcançado nesta época pela família dos Sturlungs: Hvamm-Sturla e os seus descendentes (um dos seus filhos foi o consagrado Snorri Sturluson, autor da Edda em Prosa e de outros trabalhos).

[6] N.T. Na Islândia foram instituídas, no século X (após a colonização completa em 930), várias divisões judiciais regionais. A ilha foi repartida em Quartéis (Norte, Sul, Este e Oeste) por sua vez divididos em þings ou assembleias distritais (seguindo-se o costume legal dos povos escandinavos, como na Noruega). Estas eram convocadas todas as primaveras (várþing) e nelas eram apresentados os casos legais e resolvidas as disputas entre os residentes. Havia, ainda, trinta e nove goðorð, ou «chefias», que eram consideradas, até certo ponto, propriedade transmissível. Os goðar, ou «chefes» (donos de pelo menos uma goðorð) convocavam as assembleias do distrito, havendo três goðar por cada distrito. Para além disso, existia uma assembleia nacional, o Alþing, que se reunia uma vez por ano, no Verão, em que se reviam as leis da ilha e se resolviam em tribunais disputas legais de maior dimensão. Qualquer proprietário com posses acima de um valor fixo estava vinculado a um goði e tinha o dever de o acompanhar às assembleias (ou pagar uma taxa correspondente), embora esta relação de apoio marcial e legal mútuo fosse fluída — um proprietário podia mudar a sua aliança de um goði para o outro. Assim, o que está em causa neste excerto é que Bjarni, um goði, perca o respeito dos seus þingmenn (literalmente homens-de-assembleia) e perca seguidores se não se vingar de Þorsteinn.

 

Bibliografia

 

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