Insiste-se sempre que, em filosofia, importam mais as questões que levantamos do que as respostas que encontramos. Enfatiza-se o caráter temporário de algumas destas respostas, por oposição ao que há de essencial nas perguntas. Para dizê-lo de outra forma: se fizermos as perguntas adequadas, de modo pertinente e relevante, como diria a filósofa Célia Amorós, mais tarde ou mais cedo encontraremos boas respostas. Estas serão respostas valiosas para que a aventura da humanidade avance.

Este livro, Ética para Célia, surgiu de várias perguntas que criaram em mim uma sensação de consternação. Como é possível que até hoje, tanto quanto sei, não se tenha escrito um livro como este ou, pelo menos, com um título semelhante? Um livro que nasça da ideia simples, clara e distinta de que uma filósofa mãe, ou uma mãe filósofa, terá alguma coisa a dizer aos seus descendentes sobre o sentido da vida e sobre a vida boa. Não escreveu o filósofo, o grande Aristóteles, uma ética para o seu filho, o jovem Nicómaco? Milhares de anos volvidos desde a Ética a Nicómaco, será possível dizer — retomo a mesma pergunta — que as filósofas não encontraram um momento de reflexão e descanso para ensinar às suas filhas parte do que aprenderam da vida? Para lhes sussurrar ao ouvido parte da sua experiência e sabedoria após várias décadas de existência no planeta terra?

Se levarmos esta pergunta a sério, que resposta nos poderá satisfazer? Uma primeira hipótese poderia supor que as filósofas são pessoas modestas e, portanto, muito embora as mulheres tenham sido responsabilizadas pela tarefa de cuidar, orientar e educar as suas filhas e filhos nos seus primeiros passos, não se sentem suficientemente qualificadas para escrever tal livro. Como se não tivessem nada de importante a dizer, de forma direta e afetuosa, aos jovens e à comunidade humana. Uma segunda hipótese é sugerida pelo facto de as mães conhecerem as suas filhas e filhos em primeira mão e, por isso, saberem melhor do que ninguém que não lhes darão ouvidos. Diriam, então, para si próprias: «De que serve escrever seja o que for? Se não recebo a sua atenção em casa, muito menos atenção receberei através de um livro». Por algum motivo, não fico inteiramente satisfeita com estas respostas. Atualmente, há muitas filósofas e muitas delas são também mães — porque não seguiram a senda do estagirita, do filósofo, do grande Aristóteles? Daquele que não se deixou intimidar pela tarefa de classificar e organizar tudo o que existe e a quem, inclusive, sobrou tempo para escrever ao seu filho sobre o sentido da vida. Recebo periodicamente os catálogos das grandes editoras de filosofia e fico verdadeiramente admirada com a infinita variedade de temas abordados pelas filósofas. De Antígona ao algoritmo, há bibliografia de sobra. E, no entanto, não há nada de ética para as nossas filhas?

A melhor resposta que encontrei foi aquela que eu mesma descobri ao começar a escrever uma Ética para Célia. O nosso mundo assenta sobre pés de barro: trata-se de um mundo construído sobre uma dupla verdade que tudo atravessa, corrói e arruína, e no qual o extraordinário progresso científico, tecnológico e artístico a que assistimos não se fez acompanhar de um progresso moral. Esta dupla verdade que tudo atravessou e atravessa é a própria desigualdade radical e ontológica entre mulheres e homens, que originou um duplo sentido da vida: um para eles e um outro para nós, as mulheres. O sentido da vida do homem, de que fala o nosso querido Aristóteles ao seu filho Nicómaco, implicava uma condição necessária subjacente: que o sentido da vida das mulheres fosse «tornar a vida dos homens fácil e agradável», para usar as palavras certeiras de Jean-Jacques Rousseau. Ou, usando antes a palavras do antropólogo Lévi-Strauss: «a mulher é a dádiva mais valiosa». Ou, com o não menos genial, Friedrich Nietzsche: «a mulher é o brinquedo mais perigoso». Recorro às palavras destes génios porque têm a capacidade de exprimir muito de maneira sucinta. Será possível conceber as palavras destes filósofos, cujo pensamento é para nós constitutivo, de maneira recíproca? «O homem, querida Célia, é o brinquedo mais perigoso, cuidado quando voltares sozinha à noite…». Não, não e não!

A filosofia, a arte e a ciência chegaram onde chegaram porque os homens que dedicaram a vida ao seu desenvolvimento o fizeram aos ombros das mulheres. Elas, por sua vez, foram impedidas de se dedicarem a algo que não aquele que é possivelmente o mais exigente e cíclico de todos os trabalhos: a manutenção, cuidado e reprodução da vida humana. Há, de facto, dois sentidos da vida que compõem uma dupla verdade e uma dupla moral na nossa querida tradição ocidental. E estes sentidos não são nem recíprocos nem complementares.

E eu, ingénua, tentava escrever em abstrato, como se houvesse uma única verdade, válida universalmente, que tivesse o mesmo sentido para a minha filha e para o meu filho. Fui obrigada a reconhecer que tal tarefa era simplesmente impossível. Já não podia simplesmente dizer-lhes: «Leiam a Odisseia, e verão quão bela é a viagem de Ulisses…» Teria agora de lhes dizer: «Ulisses não existiria sem uma Penélope que passasse os seus dias sem fazer nada». É inaceitável apresentar o caso de Penélope como um exemplo notável de uma vida com sentido: uma mulher cujo próprio filho manda calar e confina ao gineceu. Já não posso, tampouco, pedir aos meus filhos que se relacionem com a tradição de que somos herdeiras como se esta não tivesse tido consequências desastrosas para o nosso mundo — um mundo onde as mulheres foram confinadas ao silêncio, reduzidas a nada ou a quase nada. A marca desta tradição encontra-se ainda bem viva no mundo atual. Um dia apercebi-me de que nunca falara aos meus filhos — à minha filha e ao meu filho — sobre o sentido da vida e sobre o que me levou a decidir, apesar de tudo e contra tudo, que valia a pena trazer novos seres a este mundo. Porque, contra Schopenhauer e todas as suas agudezas patriarcais, a mulher filósofa não opta pelo suicídio da humanidade, ou seja, por pôr fim àquilo que este celebrado filósofo alemão considerava ser a perpetuação da cadeia irracional de dor que é a vida humana.

Após mais de duzentos anos de luta constante para conquistar espaço dentro da comunidade humana («a humanidade, esse clube tão exclusivo», como dizia Jean-Paul Sartre), as mulheres estão mais perto do que nunca de alcançar um novo marco: a transformação da autoconsciência da humanidade. Seria porventura concebível pensar que as mulheres iriam poder viajar pelo mundo, qual Ulisses do século XXI, sem alterar radicalmente a nossa organização social, o próprio conceito do que é um ser humano e os sonhos sobre o futuro da humanidade?

Desde a nossa recém-conquistada posição de seres humanos, é-nos possível perspetivar até que ponto teremos de reconstruir a nossa casa comum. O primeiro passo para tal reconstrução é a própria tomada de consciência da dupla verdade que nos constitui e que implica a morte da filosofia moral, do imperativo categórico, da nossa capacidade de nos colocar no lugar das outras pessoas. Os homens devem ser capazes de se colocar na posição das mulheres — afinal, há sempre uma primeira vez para tudo. Mas quem quereria adotar o lugar de uma Penélope, destinada a não fazer nada para além de ver o tempo passar? E as mulheres devem deixar de se colocar no lugar de tudo o que as rodeia e perguntar-se quem são, o que querem, e que rumo procuram para as suas vidas e para a humanidade. As mulheres devem focar-se e não se deixar subordinar, recusar ser heterodesignadas e não permitir que voltem a dizer com palavras modernas o que é uma mulher e o que deve fazer. É o momento de tomar a palavra e o momento de a humanidade escutar. Há muito em jogo, querida Célia.

O que se segue é uma seleção de textos procedentes de Ética para Célia: Contra a Dupla Verdade («Ética para Celia: contra la doble verdade», Barcelona: Ediciones B, 2021). Os primeiros textos fazem parte da introdução do livro, da qual derivam — não direi more geométrico, mas vão sendo derivadas — as restantes reflexões sobre a vida boa que se encontram nos seguintes capítulos. Na introdução, parto necessariamente de axiomas tais como «O ser humano nasce cuidável» que provêm de um raciocínio fundamental: uma pessoa que não seja cuidada — e muito — provavelmente não chegará à idade da razão. Não se trata de algo opcional. Sem cuidados, não há humanidade. Daí se segue a pergunta radical sobre como iremos partilhar esta responsabilidade entre todas e todos, e sobre como esta divisão marcará uma nova etapa para a humanidade. Os homens terão de descer dos ombros das mulheres, de onde se têm elevado para chegar mais alto e mais longe. Ao fazê-lo, irão recuperar um tamanho mais real — o tamanho de seres erguidos sobre a terra e conscientes da exigência envolvida na tarefa de suprir as necessidades humanas de cuidados. As mulheres, finalmente libertas do insustentável peso de ser cuidadoras em exclusividade, poderão expandir-se e recuperar as suas asas cortadas, voar e sonhar o futuro da humanidade. É fundamental que as mulheres passem também a definir, a partir da sua própria posição, o que é bom e valioso para a comunidade humana.

O segundo texto trata da vida boa e do reconhecimento. Existem critérios racionais aceitáveis que possam resolver a infinita discussão filosófica em torno destas noções? Ainda que talvez não os possamos encontrar no mundo da teoria, tudo indica que as mulheres os têm encontrado na ação. Perante análises sobre a sociedade líquida, a aceleração do tempo e a perda generalizada de uma direção, as mulheres parecem ter algumas ideias sólidas, claras e distintas sobre o rumo que a nossa comunidade humana deveria tomar para legar um planeta, um mundo e uma vida com sentido àqueles que virão depois. Isto é, nem mais nem menos, o horizonte que tem alimentado o percurso iniciado pelas mulheres há já mais de duzentos anos — a sua viagem até à conquista de uma posição enquanto ser humano de pleno direito. Os seres humanos não precisam de colecionar todo o tipo de objetos e pessoas para construir o seu projeto de vida. Precisam de reconhecimento e de viver sem medo.

Por fim, selecionei um texto que se debruça sobre alguns dos tópicos mais atuais relativos à sexualidade e onde identifico as limitações da tradição filosófica moral, marcadamente androcêntrica. A pergunta de partida é simples: porque é que os filósofos morais decretaram que a ética não deve refletir sobre o sexo? Porquê deixar as violações, o assédio sexual, o incesto e a pedofilia fora do âmbito da reflexão moral? O que está em jogo no tipo de relações retratadas nos vídeos incluídos nos top ten de visualizações dos websites de pornografia?

Nós, as mulheres, estamos impacientes por encontrar respostas a estas novas perguntas. As novas gerações haverão de lhes responder, refazendo assim a aventura da humanidade e celebrando um novo contrato social entre mulheres e homens — tratar-se-á, aliás, do primeiro verdadeiro contrato deste tipo uma vez que, nos anteriores, fictícios ou reais, as mulheres estiveram sempre ausentes. Este novo contrato será, além do mais, a última oportunidade que teremos para salvar o nosso planeta.

 

I.               Introdução

Ética para Célia, uma ética para raparigas?

Este é um livro de ética pouco convencional, que recolhe as reflexões que uma filósofa, na plenitude da sua vida e com a sabedoria que resulta do estudo sossegado e da experiência vivida, quer partilhar com a sua díscola filha.

Riiiiing, riiiiing, riiiiing!!!

«Espera aí Célia, um instante, o telemóvel… Silêncio! Estão a falar comigo… O que é que está a dizer? Acha o livro muito interessante e pertinente? Escrever agora um livro de Ética para raparigas, agora que o feminismo está na moda, um livro de ética feminista? Espere um instante, não consigo ouvir nada, deixe-me arrumar a mesa e respondo-lhe por escrito.»

Carta da autora:

Permita-me que lhe faça uma pergunta: o senhor alguma vez se perguntou se a Ética a Nicómaco, o livro que Aristóteles, o grande filósofo, dedicou ao seu filho, era um livro destinado apenas aos rapazes? Terá pensado no quão oportuno e pertinente seria publicar um livro de Ética para rapazes? Idóneo para estes dois mil anos e tal de patriarcado…

Quero dizer-lhe que, se nunca pensou na Ética a Nicómaco como uma ética para rapazes, não sei porque não interpreta da mesma forma um livro intitulado Ética para Célia. Uma ética para seres humanos.

Ética para Célia é um livro para raparigas se e só se a Ética a Nicómaco for um livro para rapazes. Porque sou filósofa e é um livro que dedico à minha filha.

Este é, de facto, um livro para todas as pessoas, mas poder-se-ia dizer que é um livro especialmente destinado a homens como o senhor, para que possam finalmente aceder a uma posição moral diferente, que vem sendo ocupada pelas mulheres. Aceitar este desafio é particularmente difícil quando tem sido a própria filosofia a fornecer os pretextos para que não se adote a posição do outro. Tem-no feito ao abrigo do androcentrismo, recurso através do qual os homens se identificaram como o ser humano neutro e identificaram as mulheres com uma parte periférica da humanidade. Eis o motivo pelo qual não existem livros de História dos Homens e existem livros de História das Mulheres: a História dos homens e a História têm sido uma e a mesma coisa — termos absolutamente permutáveis.

Esta identificação é quase uma categoria a priori do entendimento na medida em que conhecemos e compreendemos tudo a partir dessa ótica. Este livro investiga as consequências de vivermos sob esta dupla verdade: uma para as mulheres e outra para os homens.

Deixa-me dizer-te uma coisa Célia: já chega! Sabemos perfeitamente que os nossos amigos, os filósofos, não escreviam para nós, as mulheres. Escreviam para legitimar que apenas pudéssemos ler e escrever o suficiente para tornar as suas vidas «fáceis e agradáveis». Nas palavras de Rousseau: «A educação das mulheres deve ser relativa aos homens. Tornar a sua vida doce e agradável: estas são as obrigações das mulheres em todo o tempo e lugar e para as quais as mulheres devem ser educadas desde a sua infância». Não lhes vamos guardar rancor pois nada podemos fazer para mudar o passado. Termos ganho consciência, no entanto, mudou a nossa vida e a vida das mulheres no geral. Agora é necessário mudarmos a consciência das nossas sociedades para termos, mulheres e homens, a oportunidade de construir uma vida nova e com sentido. É disto que trata a ética.

 

A dupla verdade, uma para as mulheres e uma outra para os homens

A ética trata do problema fundamental da tua vida — não, não é do sexo, onde leste tal disparate? — que é dar-lhe sentido, perceber no que consiste a vida boa e garantir que, no fim da tua vida, possas dizer: «Fui feliz. À minha maneira, mas fui feliz». A ética trata também de que, nesse dia longínquo, alguém tenha interesse em escutar essa tua frase tão bonita — isto quererá dizer que terás uma pessoa ao teu lado, seja ela quem for.

O facto de não viveres sozinha traz consigo o lado B da ética, epítome de outra questão fundamental: quais os limites que te irás impor na tarefa de dares sentido à tua vida e de procurares a felicidade. Escuta-me. Traçar limites não é uma escolha. «Porque é que é meu dever pensar nas pessoas à minha volta? Porque devo impor limites aos meus sonhos?» Este tipo de perguntas não pode ter lugar. Lamento, mas se não fores capaz de aceitá-lo podes ir viver para uma ilha deserta, completamente isolada, ou encerrares-te em casa eternamente. Ninguém te impede de o fazeres, mas a ética estuda os limites que traças na tarefa de dares sentido à tua vida em relação àqueles que te rodeiam. Ninguém deveria aceitar que algumas pessoas ponham a sua vida ao serviço do projeto vital de outros, da mesma forma que ninguém deveria dar sentido à sua vida à custa dos demais.

Deixa-me que te diga algo que deves levar muito a sério: a filosofia e a ética construíram uma dupla verdade sobre o sentido da vida e sobre os limites que nos devemos impor. A filosofia e a ética instauraram e legitimaram um sentido da vida distinto, frequentemente oposto, para homens e mulheres. Definiram valores e normas acerca do que é bom para as mulheres e outras para os homens.

Este livro, adorada Célia, procura revelar esta dupla verdade e explicar como corrompe, desde os seus alicerces, um comportamento que pudesse ser verdadeiramente apelidado de moral, animado pela universalidade. Deves agir de forma a que a máxima que governa as tuas ações se possa tornar universal: o que é bom para as mulheres deve ser bom para os homens e o que é bom para os homens deve ser bom para as mulheres.

A ética consagrou uma dupla verdade e tal consagração minou e continua a minar as possibilidades reais de progresso moral da nossa comunidade humana. A dupla verdade é uma verdadeira escola de desigualdade e prepotência, desenhada para que esqueçamos que o ser humano não nasce sociável por natureza, mas antes cuidável.

Para desafiar esta dupla verdade, não basta sugerir que simplesmente nos consideremos incluídas numa verdade: «Bem-vindas à esfera pública», e acabou. Não basta porque o problema afeta os próprios fundamentos da definição do que é bom e valioso, e nós, as mulheres, temos as nossas próprias ideias sobre o assunto. «Penso que fui um bom pai», diz um senhor de referência que abandonou as suas filhas porque sentiu o chamamento do amor e da farra. Se a mãe tivesse sido como o pai, «uma boa mãe», as filhas poder-se-iam considerar órfãs.

Munir-nos-emos de um método que sirva de guia porque as regras do método são as melhores amigas das raparigas. A hermenêutica da suspeita será a primeira e principal regra: suspeitaremos de cada verdade dirigida apenas às mulheres ou aos homens. Vamos ser exigentes. Refiro-me à «verdade» que incide sobre as crenças, normas e valores que nos orientam acerca do sentido da vida.

 

As mulheres nunca foram sujeitos morais: o juízo moral não é para elas!

Os filósofos têm dedicado muito do seu tempo a explicar porque é que as mulheres não são capazes de emitir juízos morais. Talvez esta afirmação te pareça estranha, uma vez que entra em contradição com um discurso muito popular que defende que as mulheres são «melhores» do que os homens — que são menos egoístas, mais virtuosas, com um maior sentido de sacrifício e de entrega.

E, no entanto, se pensares bem, irás certamente lembrar-te de ter também ouvido o discurso oposto, aquele que diz que as mulheres são «piores» do que eles. Trata-se de um discurso que afirma que as mulheres são mais perversas e traiçoeiras, que são as culpadas de tudo o que homens fazem de mal. Eles, por outro lado, mesmo que brutos, continuam a ser vistos como nobres e corajosos, crianças eternas.

Como podes observar, afirma-se da mulher qualquer coisa e o seu contrário. Talvez penses que tais pressupostos não passam de ditados, de cultura popular, e que não têm grande importância. Não é assim, infelizmente. Tudo isto foi sentenciado e explicado pelos maiores filósofos, mais concretamente por aqueles que é necessário estudar para completar o ensino secundário, isto é, para acreditar que conhecemos a nossa cultura. Ouve-me com atenção, Célia. Talvez neste ponto me tomes por louca. Talvez penses que, de tanto ler livros sobre feminismo, acabou por me acontecer o mesmo que aconteceu àquele senhor de La Mancha. Não é isso que se passa. Deixa-me dar-te dois exemplos.

A ética investiga a formulação dos juízos morais e as caraterísticas que os distinguem de outros tipos de juízos. Os juízos da razão prática ou moral não se formulam de forma descritiva, mas normativa. As ciências elaboram frases do tipo «A vaca é um mamífero» e E = mc2. Um juízo moral exprimir-se-ia desta forma: «A vaca deveria ser um mamífero». Talvez penses que não faz sentido, mas perceberás que a seguinte frase faz mais sentido: «Não deverias fazer sofrer uma vaca». A filosofia moral escreve sobre o que devemos, ou não, fazer e porquê. Os códigos morais são compostos por juízos como «Não matarás», «Não roubarás» e «Honrarás a tua mãe e o teu pai».

Os juízos morais são aqueles que requerem imparcialidade, neutralidade, e nos exigem que coloquemos os afetos entre parêntesis. Para a filosofia, as mulheres não têm sido sujeitos morais porque são vistas como seres incapazes de emitir juízos imparciais e neutros: os nossos sentimentos, afetos e paixões impedem-nos de o fazer. Muitos filósofos argumentaram que as mulheres não são capazes de assumir posturas neutras de modo a legitimar a nossa exclusão da vida pública durante milhares de anos e, até há pouco tempo, estávamos de facto impedidas de ser juízas ou de fazer parte de um júri sob o pretexto de que daríamos prioridade às nossas emoções em detrimento dos mais razoáveis argumentos da acusação e da defesa.

A filosofia moral trata das escolhas que fazemos. Para outros filósofos, as mulheres não são sujeitos morais pelo simples facto de não terem problemas de escolha: não sofrem qualquer tipo agonia, luta interna ou angústia que as faça debater-se entre o bem e o mal. De acordo com Hegel: «Na mulher, o ser e o dever ser coincidem». Quer isto dizer que as mulheres desejam sempre o que devem desejar? Não sei se isso faz das mulheres sortudas ou não, mas não te preocupes — continua a ler este livro e acabaremos por descobrir.

Caso tudo isto se esteja a tornar demasiado abstrato, vou explicá-lo de outra forma: poder-se-ia dizer que as raparigas não sentem desejo de terem relações sexuais com rapazes inconscientes ou em coma alcoólico, mas que, por outro lado, sentem a necessidade de ajudá-los. Se isto for assim, podemos afirmar que o seu desejo coincide com o seu dever pois a moral prescreve que não devemos abusar das pessoas, nomeadamente quando estas se encontram em condições de vulnerabilidade, e muito menos em grupo. A consequência é que o seu comportamento não pode ser rigorosamente qualificado como «moral». Do mesmo modo, as mulheres devem cuidar dos filhos e também desejam fazê-lo. Não há nada, aliás, que as mulheres desejem mais do que contar 4123 elefantes antes de caírem nos braços de Morfeu. Seres nos quais coincidem desejo e dever, dever e desejo. Para que é que as mulheres precisam da moral? A moral, uma vez mais, é coisa de homens.

 

O ser humano é um dador de sentido. O sentido da vida das mulheres vem dado por definição!

Dar um sentido à nossa vida implica sempre uma escolha: escolhemos entre uma ação ou outra, escolhemos estudar ciências ou humanidades no secundário, escolhemos ir embora ou ficar. E escolher, querida Célia, não é sempre emocionalmente gratificante — é fonte de dúvidas e de angústias. Qualquer escolha nos confronta com o medo de errar. Relativamente a este drama da escolha e da busca do sentido da vida, deixa-me dizer-te, muito sucintamente, que os homens tiveram a cortesia de nos privarem da nossa liberdade para que não vivêssemos a angústia de ter de escolher entre um caminho ou outro. É difícil escolher, já dizia Spinoza: «toda a determinação é uma negação».

É claro que um filósofo sempre nos poderá dizer: «Oiçam lá, mulheres, vocês sempre tiveram a opção de escolher. O ser humano é radicalmente livre, não é como um salmão que vem determinado por natureza.» Se, por escolha, entendemos escolher entre suicidarmo-nos ou sermos assassinadas, então sim, as mulheres sempre foram livres de escolher o seu destino. Aquiles, o herói de Tróia, podia escolher entre ir à guerra ou não, entre atingir a imortalidade ou não, enquanto uma mulher grega do seu tempo não podia sequer escolher assistir aos Jogos Olímpicos. Escolher fazê-lo implicaria disfarçar-se de homem, arriscando a sua vida caso fosse apanhada. Claro que podia escolher, não é? Bendita seja a nossa liberdade radical. Vou dizer-te em que é que consistia a liberdade de uma mulher grega: podia falar mal do pai, mas apenas se o fizesse no gineceu e em voz baixa, sujeita ainda assim ao perigo de lhe lerem os lábios. Bendita liberdade ontológica a nossa — não somos, de facto, como salmões que já vêm com manual de instruções.

Talvez penses que tudo isto são coisas de outros tempos, que a tua mãe ficou presa ao passado e que agora já não é assim — agora as mulheres também se confrontam com uma escolha relativamente ao projeto de vida que querem seguir. Concordo e, por isso mesmo, escrevo este livro. Para que as mulheres do presente, como tu, considerem as marcas profundas da dupla verdade, que ainda hoje persiste nas nossas sociedades. Vocês encontram-se numa situação verdadeiramente contraditória. Hoje em dia, têm a oportunidade de ir em busca do vosso destino, mas continuam a ser as principais responsáveis pelo cuidado e sustento dos projetos das pessoas que vos rodeiam. E estas duas verdades contraditórias supõem um grande peso sobre os vossos ombros. Uma mulher objetificada é uma coisa terrível, mas ser sujeito e ter de escolher livremente ser objeto não deixa de ser uma carga pesada. Não há quem aguente a quantidade de mensagens contraditórias:

«Realiza-te, pensa apenas no teu próprio bem, gosta de ti, sê a mulher da tua vida! Ui, cuidado! Não há quem te ature, continua assim e vais ficar sozinha! Estás a ficar velha! Tens de aproveitar mais da vida!»

É claro que hoje vocês podem «escolher», ou não vivêssemos nós sob um sistema patriarcal assente no consentimento. Se as mulheres não pudessem escolher, este livro chamar-se-ia Uma Vindicação dos Direitos da Mulher ou Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã. Mas estes livros já foram escritos por Mary Wollstonecraft e Olympe de Gouges, duas mulheres do século XVIII que foram grandes mestres do pensamento e da ação.

Mas aquilo de que te quero falar é dessa marca. Não te parece natural que milhares de anos de submissão e de exploração tenham deixado uma marca profunda nas nossas atitudes e nas nossas crenças mais fundamentais?

 

Nesta ética reflete-se sobre sexo, e muito

Os filósofos continuam a ter a hegemonia, e de que maneira. São eles que têm o poder de criar e legitimar as categorias intelectuais: «isto é filosofia, este tópico fica de fora, este outro aspeto não é do âmbito da ética». Em particular, têm o poder de determinar o que conta como progressista, como conservador e o que é «transgressor». Não me perguntes porquê, mas adoram esta palavra: «transgressor». Pronunciam-na e é quase como se levitassem.

Embora os filósofos sejam um grupo muito diverso, ainda existem grandes consensos. Se há algo que os une é a ideia de que o sexo não deve ser objeto da filosofia moral, consenso que é amplamente reforçado noutros contextos, nomeadamente nos meios artísticos e criativos. Quase ninguém contraria esta posição publicamente para não arriscar ser atacado. O lema parece ser: abaixo a moralização do sexo.

Este livro, pelo contrário, defende a necessidade de pensarmos criticamente sobre o sexo. No sexo, como no resto das relações humanas, podem existir dinâmicas de poder, abusos e humiliações e, de facto, existem: desde o profundo desinteresse pelo clitóris e pelo prazer feminino, ao assédio e à violação. Diz-me tu, divina Célia, em nome de que consenso foram tais abusos deixados fora do âmbito da ética e da filosofia moral? Sobretudo quando a violação implica a aniquilação da posição moral: põe-te no lugar da outra!

 

Era impossível pensar de outra forma naquela época?

Os filósofos dizem-nos que era impossível pensar de forma diferente naquela época — pensar, por exemplo, que as mulheres eram sujeitos que desejavam ter uma vida própria. Quando falam daquela época, tanto se podem estar a referir ao século V a.C. como ao século XIX. Talvez tenhamos sido ingénuas ao pensar que os filósofos eram precisamente as pessoas que tinham a capacidade de pensar contra a corrente do seu tempo.

Na nossa ingenuidade, acreditámos que o propósito da filosofia era interrogar a realidade e que o filósofo tinha a capacidade de fazer perguntas que os restantes mortais não fazem. Acreditámos numa ideia romantizada de que a filosofia mexe com tudo.

Contava-se uma história acerca de uma caverna, e o filósofo era a personagem que reparava que nada lá fora era realmente como parecia ser lá dentro. O filósofo saía da caverna e, chegado à luz, descobria que as mulheres não eram seres inferiores, obrigadas a servir e a agradar aos homens, mas seres humanos. Depois regressava com as boas-novas: «Rapaziada! Elas são como nós. Também têm cabeça, desejos e querem viver plenamente.» Após este relato, matavam-no.

Repara, Célia, no quão corajosas foram as pessoas que defenderam ideias fora do seu tempo: cristãos e cristãs morreram por causa das suas crenças. Acreditavam em coisas estranhas para a época: que Deus se havia feito homem, que morrera e ressuscitara. Outros arriscaram a vida a defender o inconcebível: que a terra se movia. O filósofo era, pois, aquele que se demarcava das crenças oficiais e que estava absolutamente comprometido com a verdade. Ao longo da história, vários pensadores e cientistas foram verdadeiramente audazes — Darwin afirmou que o ser humano não era fruto da criação, mas da evolução, e assim desafiou o sistema de crenças vigente.

E, no entanto, não ocorreu a ninguém pensar que as mulheres pudessem ou quisessem participar na vida pública e sair do gineceu. Talvez, quem sabe, assistir aos Jogos Olímpicos. Atenção, Célia: não conheço um único cientista que tenha desafiado os preconceitos do seu tempo no que à inferioridade das mulheres diz respeito. Parece mentira, não é? Esta tendência teve consequências gravíssimas para o progresso moral da humanidade. Talvez não tenha afetado do mesmo modo o progresso científico e tecnológico, mas mesmo nessas áreas é necessário avaliar as consequências da exclusão das mulheres.

Ainda bem que as mulheres têm sentido de humor, não é, risonha Célia? É mesmo para rir: «Naquela época era impossível pensar de outra forma.»

 

Está bem, tens razão, mas não toques em Nietzsche!

É claro que vivemos em tempos de mudança. Há mais de duzentos anos que as mulheres lutam pelo seu reconhecimento como pessoas e a filosofia está, por fim, a apanhar o comboio. Mas este é um processo moroso. É por isso que a coruja de Minerva só levanta voo depois do anoitecer. Traduzo: esta expressão significa que a filosofia apenas reflete sobre os acontecimentos depois de estes já terem passado — ou seja, após duzentos anos de luta feminista, há agora quem concorde e diga: «Está bem, temos de incluir alguma mulher nos manuais de filosofia.»  

Hoje em dia, até os filósofos admitem que a filosofia tem sido patriarcal e há, inclusive, quem tenha isso em consideração no seu pensamento e trabalho.

Mas todas temos um limite e eu descobri que, frequentemente, o limite das estudantes se chama Friedrich Nietzsche. As estudantes tendem a dizer-se feministas, mas não percebem como é que isso se relaciona com o questionamento da grandeza intelectual de Nietzsche. Expressam-no muito bem com esta frase de batalha: «Não toquem no Nietzsche!»

Pedem respeito ao grande transgressor, àquele que pensava nos cumes gelados do pensamento, que dizia que escrevia a título póstumo pois as suas leitoras ainda não tinham nascido. Aquele que descreveu a mulher como «o brinquedo mais perigoso». Nietzsche, o transformador de todos os valores.

É claro que vamos ter de tocar em Nietzsche, e em profundidade. É que o seu caso não se limita ao facto de, celebremente, ter recomendado aos homens que levassem consigo um chicote quando se relacionassem com as mulheres. Trata-se, pura e simplesmente, de um autor tão patriarcal como a maioria.

É precisamente porque me considero sua discípula que me apraz criticar Nietzsche. Sou sua discípula, é claro, à minha maneira e com uma certa liberdade, tal como aprendi com o mestre. Fui particularmente inspirada por um subtítulo de uma das suas obras: Crepúsculo dos Ídolos, ou Como Filosofar com o Martelo. Célia, vamos nós também filosofar com o martelo.

Nietzsche era um filósofo insurreto, com um gosto pelo insulto muito apurado, e gosto de pensar que estes são também traços que herdei dele. Por mais que me custe, inspiro-me no seu exemplo quando insultava Sócrates, o cristianismo e o socialismo e digo em voz alta: «Nietzsche é um bocado totó!». Gosto de pensar que o mestre estaria orgulhoso de mim, e não de quem, sem compreender o verdadeiro espírito da sua filosofia, clama: «Não toquem em Nietzsche!».

 

Onde te leve o coração? Nem pensar, usa a cabeça

Existe um debate no âmbito da ética contemporânea acerca do papel que emoção e razão desempenham na ação humana. Nesse contexto, é possível identificar um pequeno consenso que defende que a idealização da razão cria monstros pelo que a sua aplicação deve ser limitada. No entanto, também temos de questionar o que está em causa nas nossas emoções e impulsos: será possível dizer que estes nos levam sempre a boas decisões?

No âmbito da ética e da filosofia moral, é frequentemente salientada a necessidade de cultivarmos uma sensibilidade moral, isto é, uma capacidade de identificar na posição dos outros a caraterística definidora da posição moral fundamental. Nestas páginas, comprovarás que nós, as mulheres, não temos feito outra coisa senão pormo-nos na posição dos outros, de forma simbólica e material, tanto nos livros como na vida quotidiana. O que é necessário agora é colher os frutos dessa experiência e pormo-nos no nosso lugar, ganhar consciência da nossa posição e combater os efeitos nefastos da dupla verdade na sociedade.

É por isso que te peço para pensares antes de agir e para não te deixares levar pelo coração.

Há uma frase de que toda a gente gosta muito: Primum vivere deinde philosophare. Significa que, em primeiro lugar, o mais importante é viver e, em segundo lugar, refletir sobre o vivido. Repara que quem escreve tal frase está já a explicar-te como deves viver a tua vida e que o faz através de um pensamento. Faz o mesmo: pensa como queres viver a tua vida antes de agires. E fá-lo mesmo que, ao pensar, chegues à conclusão de que tens de agir mais e pensar menos.

Pensa na pandemia que estamos a viver, por exemplo. Não te parece que temos de pensar antes de agir? De pouco vale deixarmo-nos levar pelo coração se este nos levar ao lugar errado. Razão e emoção caminham de mãos dadas. A razão minimiza os nossos preconceitos, confusão e dispersão, onde se reproduz a desigualdade. A igualdade, por outro lado, é amiga das ideias claras, distintas e cartesianas. «Dois mais dois é igual a quatro.» «Este trabalho não vale nada: o ordenado e as condições são péssimas, uma exploração.» Estas são ideias claras e distintas.

Agir com a cabeça não significa não ter coração. Pelo contrário, um bom uso da cabeça permite expandir o coração. Usa o coração para te colocares na situação dos outros. Usa o coração para não julgar os outros sem conhecer a situação em que se encontram. Mas, sobretudo, usa a cabeça para saber que podes aprender com a nossa história e com a aventura da humanidade. Lê e verás que, nessa história apaixonante, a atribuição dos papéis a interpretar raramente tem a ver com mérito próprio. A mulher aparece no argumento como filha, mãe, amante, amiga e prostituta. Permite-me uma pergunta algo provocadora: não seria precisamente a esse lugar secundário que levava o coração das mulheres? Não terão as suas emoções contribuído para que elas se tenham sempre definido em relação aos homens? Hoje sabemos que não era simplesmente o coração que as levava a acreditar que era esse o seu lugar na sociedade — era o patriarcado.

O mais provável é que o coração te leve direta e rapidamente ao coração do patriarcado. Usa a cabeça para poderes regressar ao coração. Pelo caminho, terás contribuído para uma mudança no mundo que procura garantir que outras mulheres tenham uma vida melhor. Por essa altura, serás já pó e cinza, mas terás dado sentido à tua vida.

 

II. Sobre a esfera privada, a esfera pública e as condições da vida boa. O que é que querem as mulheres?

Chegadas a este ponto, estamos imersas na dupla verdade que a filosofia nos ofereceu em relação aos valores e ao sentido da vida. As esferas do público e do privado sempre foram dois espaços com valores e fins distintos. Com sentidos da vida e promessas de felicidade muito diferentes.

A esfera doméstica, que é o espaço do privado, constitui-se como a esfera da necessidade, associada aos ciclos repetitivos da natureza, como a monotonia da chuva a bater contra as vidraças. Nascer, crescer e morrer domesticamente. Cozinhar, comer e arrumar a cozinha, e repeti-lo quatro vezes por dia durante os 365 dias do ano. Sustentada pela esfera doméstica, a esfera pública foi sempre o lugar onde os sonhos da humanidade — isto é, os sonhos dos homens — tomaram forma e se cumpriram. Assim nasceu a esfera da cultura, da técnica e da liberdade. Do mesmo modo nasceram todas as invenções, conspirações, livros e cafés, guerras e revoluções. Não gostaria de idealizar o trabalho nas minas ou mesmo o trabalho de escritório. Muito menos quero romantizar o que implica ter sido um jovem soldado nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial. Não me parece uma vida boa ou invejável. No entanto, é o espaço pelo qual tanto lutaram as mulheres na busca de uma vida com sentido.

Pensa bem: teria sido melhor ser a mãe do soldado das trincheiras? Em que sentido concreto? Se aquelas mães tivessem tido algum poder, teriam enviado os seus filhos para a guerra?

A filosofia tende a defender que não há critério para determinar o que constitui uma vida boa, pelo que poderíamos pensar que não há forma de concluir o que conduz a uma vida melhor: a dedicação total ao cuidado ou a participação em qualquer outra atividade ligada à esfera pública. Trata-se de uma questão a que a teoria tem dificuldade em responder porque, precisamente, a filosofia não pode sentenciar que uma vida vale mais do que outra. Todas as vidas têm o mesmo valor. E, no entanto, quem lutou e luta nas ruas tem uma ideia clara daquilo que são as condições objetivas de uma vida boa.

Muito foi debatido, em filosofia, sobre o que perfaz uma vida boa e a conclusão parece ser que o melhor mesmo é não nos pronunciarmos sobre a matéria. O motivo é que é preciso lidar com duas crenças aparentemente incompatíveis: que todas as vidas são igualmente valiosas e que algumas formas de vida têm mais valor do que outras. Todas as vidas são igualmente valiosas porque todas têm o mesmo valor humano e ontológico. Não é difícil perceber, porém, que nem tudo na vida tem o mesmo valor. A ideia de que há coisas melhores e coisas piores está sempre subjacente, inclusivamente nas posições mais antissistema. A líder da banda The Slits, Viv Albertine, escreveu: «O punk era moralista, decretava o que era bom e o que não era.» Sempre existirá um normativismo ou, pelo menos, um cripto-normativismo. Os valores podem depender de cada comunidade e de cada momento histórico, mas as revoluções e as revoltas produzem-se por causa de uma aspiração concreta a uma vida melhor, do desejo de usufruir de condições de vida em igualdade com os demais e de decidir o que é afinal a vida boa.

Relativamente aos conteúdos concretos de uma vida feliz, não é fácil chegar a um acordo. John Stuart Mill, por exemplo, defendia que a autoconsciência é em si mesma uma forma da vida boa. Nesse sentido, disse: «Prefiro ser um Sócrates infeliz a ser um porco satisfeito.» Hoje em dia, talvez o acusassem de porcofobia ou de elitismo, como aliás já se fez. Mas as suas palavras fazem algum sentido.

Imagina que o teu filho afirmava, com determinação, que só é feliz a jogar videojogos — que aquela é a sua única fonte de felicidade. Como poderias convencê-lo de que há outras coisas na vida e que as devia tentar conhecer? Imagina que te respondia: «Mãe, não sou tolo, percebo bem o que estás a dizer, mas não tenho interesse nenhum. Se me respeitas, deixa-me ser livre e ser eu próprio. Vai embora, por favor, e deixa-me continuar a jogar. Tu passas o dia a trabalhar ao computador, a ler, a ver documentários e a queixares-te de tudo e mais alguma coisa. Eu, pelo menos, não me queixo. Devias seguir o meu exemplo. Vem cá, joga comigo. Dou-te um comando.» (Nota: Virgem de Guadalupe! Não tinha reparado nesta palavra até a ter visto escrita agora mesmo: «comando».) «Sim, querido filho» — responder-lhe-ias, provavelmente — «gostaria que me desses o comando, mas estás a esquecer-te de um pequeno detalhe. É que, além de provedora do lar, também trabalho como empregada doméstica. Quem é que prepara o jantar para o jogador a tempo inteiro?»

A vida boa não é apenas uma questão de preferência individual — é uma questão de justiça social. Não é possível separar estas duas dimensões da vida moral pois, ao fazê-lo, esquecemos que a realização individual pode ser alcançada à custa de outras vidas.

A história da luta das mulheres pela mudança do rumo das suas vidas pode ajudar a iluminar este assunto espinhoso, irresolúvel por meios teóricos. Mais do que apresentar argumentos, vou recorrer à história. Há cerca de duzentos anos, as mulheres ergueram-se para dizer claramente à comunidade humana que não queriam continuar a viver encerradas na esfera privada. Exigiram à sociedade que acabasse com os discursos sobre a excelência das mulheres, com as homenagens vazias a uma suposta essência da feminilidade e que lhes devolvesse a sua agência. As mulheres lutaram pelo voto, pelo trabalho assalariado, para serem militares, membros da polícia ou até mesmo mineiras. Repara que os homens nunca lutaram para terem aquilo que tinham as mulheres. Não há registo de tais demostrações: «Queremos fazer o que fazem as mulheres. Queremos viver como elas, em sacrifício e entrega aos projetos dos outros. Que lutem e trabalhem elas, enquanto nós cuidamos da casa e das suas filhas.»

Os homens nunca quiseram abandonar a sua forma de vida. De facto, continuam a recusar-se heroicamente a abandoná-la, independentemente de todas as mudanças drásticas que ocorreram nas vidas das mulheres. Parecem não querer renunciar ao usufruto daquilo que é, em princípio, incompatível: o apolíneo e o dionisíaco no cuidado dos outros. Mas, pensando bem, como renunciar a essa situação espantosa em que alguém decide livremente (cof cof) colocar a sua vida ao serviço da tua — o seu projeto vital ao serviço do teu? «Meu amor, podes ser cientista, futebolista, maestro ou camionista, que eu cuido da casa. Nós seguimos-te para onde tu fores, vamos para Andorra contigo. Ou esperamos aqui por ti, pela estabilidade das crianças.» E lembra-te que alguém deverá ainda tratar dos mais velhos — dos que sobreviveram à pandemia. A isto chamamos a oferenda ontológica de metade da humanidade.

É por isto, cara Célia, que tantos milhões de mulheres pelo mundo fora têm saído à rua a dizer «Já chega» e «Não aguentamos mais». Há duzentos anos que o fazemos.

 

III. Como é possível que existam violações? A aniquilação do sexo como reconhecimento

A filosofia moral aborda o tema da violência, mas raramente aborda a violência sexual. Porquê? Não é um facto profundamente revelador da condição humana o recurso à violência com pessoas que se encontram tão próximas de ti, a uma respiração de distância? Esta é uma pergunta que incide num comportamento única e exclusivamente masculino: como é possível que existam as violações? Como é tolerável este comportamento entre os homens? Como é possível — perguntamos-vos — que um jovem, ou vários ao mesmo tempo, obtenham prazer a abusar sexualmente de uma jovem paralisada, em estado de choque, de uma jovem que grita ou suplica?

Os filósofos, especialistas do pensamento, devem-nos uma explicação relativamente ao facto de mal terem pensado nestes assuntos. Estamos à espera de uma resposta.

Uma hipótese muito popular na sociedade é a teoria do psicopata. Segundo esta teoria, o violador não é uma pessoa normal, mas alguém doente. Os homens normais não violam e, por isso, queixam-se que façamos generalizações e que os coloquemos todos no mesmo saco. Acusam as feministas de considerarem que todos os homens são violadores em potência. Mas isto não é verdade, e quem o afirma devia sentar-se a ler uns quantos livros sobre cultura da violação. Aquilo a que chamamos cultura da violação tem a ver com o facto de a nossa cultura sempre ter desvalorizado, ou até idealizado, a violação, enquanto culpabiliza as mulheres por se porem em risco: por andarem sozinhas à noite, por se vestirem de forma provocadora, por aceitarem um convite para jantar, dançar ou ir a casa de alguém, por terem determinado corpo ou determinado cabelo e, definitivamente, por existirem.

Os Estados Unidos, esse país tão avançado e democrático, reconheceram a existência de um problema doméstico relacionado com as violações nos campus universitários. O próprio Barack Obama, pai de duas filhas e primeiro presidente negro dos Estados Unidos, fez um sentido apelo à sociedade: «Temos de ser capazes de travar isto». Nos campus universitários não há psicopatas no sentido criminoso do termo — há rituais de passagem e tradições bárbaras próprias de universitários. Uma destas tradições, entre os rapazes, consiste em aguardar que as raparigas bebam até perderem a consciência para depois as violarem. Trata-se de uma situação que se descobriu, há muitos anos, porque algumas estudantes engravidavam sem saberem porquê. O discurso de Obama data do ano 2014. O julgamento de um destes violadores em contexto universitário ficou famoso um pouco mais tarde.

Era uma vez um jovem que caminhava pelo campus quando encontrou uma colega inconsciente no chão. Aproximou-se dela, baixou as calças e violou-a. Uns estudantes suecos que por lá passavam testemunharam a situação e, em lugar de esperar a sua vez, denunciaram-no. Enquanto aguardavam julgamento, o pai do presumido violador escreveu uma carta ao júri. Nesta carta, o pai dizia que o seu filho não era violento e que poderia vir a pagar um preço muito elevado por uma ação de vinte minutos. Convidava o júri a colocar-se na sua situação enquanto pai; e o juiz do caso expressava preocupação pelo que poderia acontecer ao jovem na prisão. E com ela — alguém se importava? Não havia ninguém para se colocar na sua situação? Como de costume, parece que não. Ela era invisível. E foi invisível até que decidiu tomar a palavra e escrever uma carta aberta: «Tu não sabes quem sou, mas estiveste dentro de mim». O estudante da elitista Universidade de Stanford passou apenas três meses na prisão. Saiu antes do tempo por bom comportamento.

Quem nunca foi jovem e estúpido?

Nesta altura, ainda não tinha chegado o #MeToo, o movimento que protagonizou a revolta das mulheres contra a impunidade dos abusos sexuais que haviam sofrido às mãos de homens que se justificavam com a desculpa do consentimento.

A cultura da violação continua a estender os seus tentáculos. O mundo das artes e da cultura tem contribuído, demasiado frequentemente, para uma idealização da prostituição e da violação, agora normalizada na pornografia. É um mundo que não tolera críticas nem limites. Refugia-se numa série de lemas: «É apenas ficção»; «Estamos perante um novo puritanismo»; «Querem censurar-nos». Através da pornografia e da prostituição, imunizam e socializam os rapazes para que não se ponham no vosso lugar. Há um videojogo chamado Rape Day, que significa O Dia da Violação, e existem filmes que apresentam violações de forma cómica ou como expressão do amor profundo por mulheres em coma e por esposas dopadas com soníferos. Outro tipo de imunização é aprendida através da prostituição. O raciocínio parece ser: «Se sexo é algo que pode ser comprado por apenas quinze euros, não deve ser tão grave tomá-lo gratuitamente».

A reflexão sobre estes temas não tem como objetivo pôr-te a pensar como deves encaixar a violação na tua vida — se te deves deixar dominar pela raiva ou levantar-te, sacudir a saia e dizer: «pronto, é o preço a pagar pela minha liberdade». Francamente, não me parece que devas pagar preço nenhum pela tua liberdade. Se o sexo é só sexo, como é possível que uma das partes da relação enfrente tão frequentemente a violência, o abuso e a humiliação?

Se bem te lembras, querida Célia, quando começámos a falar de sexo fizemo-lo sob a epígrafe: O sexo, outra forma de reconhecimento. E agora estamos a chegar à conclusão de que a violação é a aniquilação do reconhecimento. O que mais nos interessa é saber como raio podem uns bons rapazes fazê-lo. Qual o processo pelo qual deixam de ver um ser humano para ver uma rapariga que está ao seu dispor. Outra pergunta: será que o sexo está a ser utilizado para desindividualizar as mulheres? «A melhor mulher é aquela que está por baixo»: esta e expressões semelhantes revelam a ausência de qualquer vestígio humanidade. Será que o sexo, como o concebemos, é uma invenção para pôr as mulheres no seu lugar? «O que tu precisas é de uma boa foda, de levar com uma pila na cara», acabo de ouvir numa comédia romântica espanhola.  Quanta paciência!

Nós, as mulheres, não podemos chegar a compreender a violação porque não nos podemos pôr na posição do violador, nem bem nem mal. Não somos capazes de perceber em que consiste o desejo de violar alguém, de ver um rapaz aterrorizado sob a nossa força como objeto de desejo. Aqui há uma rotura total na medida em que, quando uma rapariga imagina uma violação, só é capaz de se colocar no lugar da pessoa que é violada.

Célia, este discurso não é contra os rapazes nem contra o sexo, mas contra uma cultura que está a roubar a sexualidade às jovens, destruindo as relações alicerçadas na reciprocidade e no prazer. Enquanto os jovens forem ensinados pela nossa sociedade a chamar sexualidade somente àquilo que lhes pertence, e enquanto os centros de educação forem negócios privados, algo acabará sempre por falhar.

Mas, se escrevo isto, é porque sou otimista e sei que ultrapassámos situações parecidas ou piores. Se algo nos ensinou a história é que a mudança é sempre uma possibilidade. Olha para os tempos da escravatura, em que até os grandes filósofos morais aceitavam as violações com normalidade. Da mesma forma que aceitavam tratar as mulheres como parte da sua propriedade.

A mudança é possível e o futuro aguarda-vos. Simplesmente não é possível erradicar o fedor das origens sem conhecê-lo. Pudenda origo. (Nota: que bom, Nietzsche de novo!). Afinal, erradicar as origens é uma tarefa impossível. O melhor é mesmo abrir a caixa de «Pandoro» e esperar que daí saia, de uma vez por todas, tudo o que há de patriarcal na nossa relação com o sexo.

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