Já fartos de passar tantos anos uns dias de Agosto à beira-mar, rodeados de toneladas de corpos seminus e sem medo ao melanoma, que parecem ter como único fito na vida escurecer a pele que Deus lhes deu clara, e por vezes tendo de caminhar sobre a areia com cautelas infinitas para não pisar o pé deste ou o rabo daquele ou a toalha de aqueloutro, e tendo ainda por cima a cada esquina uma esplanada, discoteca ou outro lugar cheio de inamistosos decibéis — já fartos de tudo isso, dizia, decidimos em conselho de família que as férias deste ano seriam passadas na aldeia.
A aldeia, para que conste, chama-se Grijó e pertence ao concelho de Macedo de Cavaleiros. Para os menos versados nestas coisas da etimologia, os senhores filólogos explicam que o topónimo procede, depois de percorridas algumas etapas intermédias, do latim ecclesiola, igrejinha. Deve ser pois alusão a alguma ermida ou capela que por ali houvesse em tempos recuados.
Fica esta povoação uma légua a sul da sede do concelho, no ponto em que a Serra de Bornes começa preguiçosamente a altear-se, consentindo ainda terras de semeadura, vinhas, hortas e olivais, mas impondo já aqui e ali o mato e os castanheiros, choupos e carvalhos robles que lá pelos cimos dominam ainda, não obstante as plantações intrusas de pinho e pseudotsuga.
Grijó é, em 1984, uma aldeia de dimensão razoável para os padrões da região. O núcleo antigo, em redor da igreja, é modesto, se bem que típico nas suas casas feitas de xisto trigueiro, com escaleiras exteriores e varandas com coberturas amparadas a banzos de madeira. Casas brasonadas, que existem em muitas destas aldeias — basta ver, aqui à volta, Cortiços, Vale Benfeito, Travanca, Castelãos —, em Grijó não há; o mais parecido com isso é um casarão de proporções nobres, com capela privada, mas sem pedra-de-armas à vista. O povo chama-lhe a Casa Miranda.
Já na igreja valerá a pena passar meia horita desenfadada. Construída em 1680 por Martinho Afonso, foi-lhe adossada a actual sacristia, porventura em substituição de uma anterior, em 1754, obra de José Sobral. Tudo isso — datas e nomes — se lê gravado em pedra, para que o mundo saiba quem foram José Sobral e Martinho Afonso e a obra que fizeram em Grijó. A capela-mor mostra a infalível talha dourada que o séc. XVIII espalhou por toda a parte. Mostra também — com ressalva de ser eu pouco menos que leigo na matéria — uns retábulos pintados que me parecem de fábrica aceitável.
De figuras ilustres nadas em Grijó não rezam monografias. Mas esta crónica vai rezar, se bem que en passant: foi aqui que nasceu o Professor Adriano Moreira, uma das mais lúcidas inteligências do Portugal político e cultural contemporâneo. Nasceu aqui e tem casa praticamente paredes meias com a nossa. Algumas vezes, infelizmente escassas, tive o gosto de trocar breves palavras com ele, encontrando-nos os dois ocasionalmente em Grijó.
Nos últimos quinze, vinte anos, a aldeia rompeu vigorosamente os limites primevos e entrou de estender-se para sul, em direcção a Vale Benfeito, e para norte, em direcção a Macedo. Dinheiro da emigração, claro. Raramente o emigrante recupera a velha casa paterna. Prefere construir de raiz, e assim se vai ampliando o termo do lugar. Mas essas casas, algumas delas exemplares acabados da maison que tanto desdém inspira aos puristas da arquitectura indígena, só são habitadas em período de férias, quando os seus proprietários confluem, vindos de franças e araganças, para a terrinha natal. O que significa que Grijó, fora de Agosto, é uma terra de casas fechadas e quase morta — condição que se vem agravando mais a cada ano que passa. Levada a gente nova na rede varredoura da emigração, qualquer dia a aldeia não terá senão gerontes, e, uma vez embarcados esses na temida barca inescapável, acabará por não ter ninguém.
Mas longe vá o agouro. A verdade é que neste mês de Agosto, os emigrantes em férias animam extraordinariamente o povoado. Movimentam-se nos seus carros com assentos forrados a pele, que metem calor à gente só de olhar para eles, alindados com grandes autocolantes que representam águias, dragões e outros bichos agressivos, e exibindo a infalível menção ‘Turbo’, como se, hoje em dia, fosse desprestigiante ou ridículo ter um automóvel de cilindros convencionais. Nas ruas, vestidas à moda de lá, as madamas afectam grande desenvoltura e modos cosmopolitas pour épater os que ficaram. Mas, se o petiz malcriado se lhes solta da mão e faz das suas, gritam-lhe encolerizadas: ‘Tiagô, viens ici, senão refodo-te os cornos!’
Pois, apesar deste bulício sazonal, o lugar convém-me não menos do que convinha a Raul Brandão o farol das Berlengas. Também eu sou um contemplativo e sei ler no silêncio telúrico destes ares — mesmo se a algraviada luso-francesa estrondeia ao rés da rua. Tenho aqui alguns bens que dinheiro algum compraria: uma paz antiga, quase bíblica, de que tudo — gente, casas, natureza — se deixa entranhar até ao mais profundo de si; uma sabedoria não menos antiga de gente que muito viveu e é agora capaz, no declinar da vida, de dar forma de provérbio a quanta situação se lhe desenrole diante dos olhos; um ar (quase) lavado de monóxido de carbono e outros gases deletérios; e, enfim, em pano de fundo, o vulto tutelar da Serra de Bornes.
Com tal rol de benesses, adivinho já a inveja com que algum leitor terá lido esta crónica até aqui. Mas convém ver a situação de todos os ângulos e reconhecer honestamente que de Grijó a Síbaris e Cápua vai a sua distância. E que tenho aqui outras coisas que, quando mais se fazem notar, quase me levam a esquecer as vantagens de passar férias na aldeia.
Tenho, por exemplo, a escassos quinze metros da minha mesinha de cabeceira, o relógio da torre da igreja, que faz questão de martelar pausadamente as horas por essa noite fora. E, para que não fiquem dúvidas a ninguém, quinze segundos depois da última badalada repete tudo tintim por tintim. Imagine-se o que será a meia-noite batida por esta avantesma, numa noite de espertina.
Tenho uma moscaria de mil demónios, que inça da bosta e estrume que coalha alguns quelhos, e que entra afoita casa dentro, mal encontra por onde. De insecticida em riste, faço nas moscas grandes mortandades diárias, mas, como a fénix, elas parecem renascer das cinzas e cada dia novo enxame, mais numeroso e vingativo, vem zungar sobre a nossa cabeça e, pior, sobre o nosso prato.
Tenho por fim umas torneiras caprichosas que às vezes não dão pinga de água. Diz-me o presidente da Junta que, se as pessoas não regassem hortas e quintais, a água não faltaria nos canos. Mas quê! As pessoas prezam mais o cebolinho do que a higiene e quem, como eu, preza mais a higiene do que o cebolinho, lava-se quando pode — e viva o velho!
Fora isso, Grijó é o paraíso.
* * *
Paraíso com as suas intermitências de inferno. Como hoje.
Tarde cálida. Os emigrantes foram à vila às compras ou a flanar simplesmente. Grijó não bole, parece ter adormecido numa sesta colectiva. Chega-se a ouvir o ressonar consolado de alguém que se sentou à sombra duma tília e acabou por deixar pender a cabeça e adormecer.
Mas, feia como escarro no céu limpo e transparente, uma coluna de fumo ergue-se, alastra, ofusca o Sol. A serra arde. Aqui, ao meu posto de escrita, quase chega o crepitar das labaredas e o cheiro a madeiras queimadas.
Rilho os dentes de indignação e revolta. Era um outeiro magnífico o que agora arde, coberto de soberbos castanheiros, árvore que dá a prosápia às armas de Macedo. ‘Trezentos anos a crescer, trezentos no seu ser, trezentos a morrer’, diz o povo a respeito do simpático colosso verde que o alimentou durante séculos e lhe continua a dar fruto, madeira, lenha e sombra a rego cheio, para não falar nos saborosos frades e abesós (Lepiota procera e Amanita caesarea, respectivamente, para os senhores botânicos), cogumelos que no seu chão se criam. Mas estes castanheiros, cujos destroços fumegantes diviso daqui mesmo, da minha varanda, vão morrer muito antes dos dias cheios, à face das contas que o povo deita.
Por toda a serra de Bornes — este ano em Grijó, o ano passado em Vilar do Monte, para o ano em Malta ou Gebelim —, o verde vai cedendo lugar ao castanho mascarrado das queimadas. A serra arde. O fogo rola, devora matas e carrascais, floresta e monte, faz razia na fauna já de si escassa e fecha uma volta mais a torneira do oxigénio.
Porquê esta monstruosa catástrofe ecológica que, como o abutre de Prometeu nos penhascos do Cáucaso, vem todos os anos roer os fígados da nossa paciência?
Caramba, nem tudo hão-de ser fogos de geração espontânea, nem tão-pouco o resultado de imprudências e desatenções. A seguir ao 25 de Abril, nas acesas querelas políticas em que os partidos se engalfinharam para afirmar a sua identidade e até, em alguns casos, para garantir a sua sobrevivência, o fogo posto, tal como a bomba, chegou a ser usado como arma, ao que se diz. Mas hoje, com as instituições consolidadas, a motivação política estará posta de lado. Deu lugar, parece, à motivação económica. Lê-se nos jornais, por exemplo, que madeireiros gananciosos arregimentam incendiários na mira de arrebanharem mais barato os salvados da floresta ardida. Mas será isso verdade? E, se o é, serão os madeireiros assim tantos que se torne difícil à GNR controlar a sua actividade? Nada, ali deve andar outro dedo, além do dos madeireiros. Aposto, dobrado contra singelo. Agora que dedo será esse...
Começa a ouvir-se por toda a parte, já não entre dentes e à boca pequena, mas alto e bom som, o protesto do povo. É que, francamente, é demais. Com assustadora regularidade, a floresta portuguesa vai ardendo metodicamente ano após ano. E os governos — todos eles — o que fazem? Dizem que para o ano é que vai ser: vai haver mais vigilância, mais prevenção, mais meios de combate, etc., etc. Mas a verdade é que acaba por nunca haver nada disso — ou, se porventura há, estamos conversados a respeito de eficácia.
De penas mais gravosas e mão mais pesada da justiça é que parece que os governos não querem ouvir falar. Nada, os ventos sopram a favor dos delinquentes. Em nome dos direitos humanos repudiam-se penas severas e definitivas. O que equivale a dizer, em termos práticos, que os criminosos devem levar penas leves para poderem, o mais depressa que possam, reincidir no crime.
É só ler os jornais e ver o babaréu de protestos levantado entre os grupos de defesa dos direitos humanos, no estado da Califórnia, pela aprovação de uma lei que vai promover a redução dos impulsos sexuais dos violadores de crianças — muitos dos quais afirmam candidamente que violar crianças é compulsivo neles, e que voltarão a violar logo que se lhes ajeite maré.
Pode pois dormir descansada toda a vasta gama de assassinos, ladrões, raptores, violadores, narcotraficantes, terroristas e tutti quanti. Os defensores dos direitos humanos velam por que eles possam dar livre expressão às suas taras e compulsões. E, em conformidade, quando chega a haver julgamento, certos juízes, compinchas, mandam-nos em paz com uma palmadinha nas costas e a insulsa recomendação: – Vá lá, daqui para a frente não brinquem com fósforos, está bem?
Meter um pirómano confesso cinco anos — é um supor — na cadeia? Aqui d’el-rei, que é muita cadeia! Já o Dr. Almeida Santos (não me lembro bem em que qualidade — ele que tantas tem tido na nossa vida política) disse certa vez que a solução para o problema dos fogos florestais tinha de ser pedagógica. Pedagógica? — torci eu o nariz na altura. Não sei de nenhuma pedagogia que não seja ronceira, e enquanto se ensina a respeitar e proteger a floresta, arde tudo quanto há para arder e mais o que entretanto se replantou. Já lá vão uns anos largos, e a pedagogia tem dado o resultado que se vê: zero.
É tempo, creio, de avançar com medidas preventivas — mas medidas eficazes, e não decretozinhos de faz de conta. E, paralelamente, avançar com as medidas repressivas adequadas. Quem tem medo da palavra ‘repressivo’? Porque não medidas repressivas? Porque os defensores (certos defensores) dos direitos humanos vão protestar? Ora adeus. A sociedade não pode ser vítima da sua própria brandura. A lei e a justiça têm que se adaptar à gravidade da situação. É urgente apagar o fogo de vez. Isto é se queremos ter no Verão do ano 2001 uma sombra de árvore para fazer um piquenique.
Voltando ao fogo de hoje.
Por toda a aldeia, já acordada da sesta, sinto crescer o clamor da revolta.
— Aquilo era atá-los [aos pirómanos] a um pinheiro e deixá-los lá a estorricar — desabafa uma velha de negro, enquanto observa, com a mão em pala sobre os olhos, as chamas que devoram castanheiros.
Arrepio-me do voto cruento. Repressão sim, mas não tão drástica. Que diabo, já não estamos no tempo dos afonsinos... Mas tem por força que ser demasiado branda a lei que permite tanta e tão descarada contravenção. Antes de actualizarem os seus vencimentos, senhores deputados, actualizem a lei do fogo posto. Por uma vez, teriam o povo em massa do seu lado.
Pouso a caneta por hoje. A amargura é demasiada para eu poder continuar a debitar ironias como as que aí ficam. Levanto-me, busco algures o esquecimento. Entretanto, a frente de fogo lá vai cavalgando como besta enraivecida, matagal fora, rumo às alturas puríssimas de Malta, atemorizando e escorraçando os rebanhos de cabras que retouçam entre penedias. A coluna de fumo expande-se, tapa o disco do Sol, enegrece de angústias este bonito dia de Agosto em Grijó.
* * *
A instâncias do galo, que, desde que o dia começou a arruçar, não tem feito outra coisa senão tocar o seu cornetim, a dar-me vozes de erguer, levanto-me cedo, tomo um pequeno-almoço breve e saio para um footing matinal pelos caminhos da serra. Um footing... Como a palavra soa espúria e desajustada no lusitaníssimo ambiente de Grijó! Mas quê! Hoje tudo são inglesias no linguajar nosso de cada dia, que até parece que Camões e Vieira e Garrett não nos deixaram em herança uma língua e pêras. Footing... Passêo, com o ‘e’ bem fechado, é como se diz e como eu devia dizer em Grijó.
Ontem choveu e, como estamos em finais de Agosto, era de supor que multidões de formigas-de-asa saíssem do formigueiro para o ar lavado de poeiras e miasmas. Assim o terá pensado também o garoto dos seus doze, treze anos, que se me depara numa volta do caminho, cavando vigorosamente com um satcho, como aqui preferem dizer, pedindo emprestada a consoante africada ao castelhano, na mesma boa paz e familiaridade com que se pedem emprestados dois ovos à vizinha para uma fritangada.
Pergunto-lhe, embora conheça de antemão a resposta, o que procura na berma do caminho.
— Aludas — responde.
Aludas são formigas-de-asa. Faço-lhe notar que ainda tem o cabaço vazio.
— Há poucas. Choveu pouco… — diz ele, entre duas cavadelas decididas, que causam grande alarme e confusão no formigueiro. E, após ter cuspido nas mãos, para mais firme segurar o sacho: — Também para os pássaros que há...
Os pássaros são neste caso meia dúzia de espécies que nos visitam imprudentemente com o Verão já adiantado e, se logram escapar aos arames das pescoceiras, o que é sempre problemático, batem a asa pelo equinócio do Outono, rumo a países mais quentes.
Deixo o sanhudo caçador a tombos com a escassez de aludas e de pássaros, e sigo avante. E, com efeito, noto que os caminhos estão cheios de silêncio. Aqui há vinte anos, se tanto, os caminhos, hortas e lameiros, numa manhã assim luminosa de Agosto, eram uma aleluia de trinados, chilreios, grasnidos, assobios, todas as vozes que o Criador distribuiu à passarada no dia em que pensou formar com ela um orfeão para o glorificar e bendizer. Aos residentes de toda a roda do ano (milharengos, pachacins, tentilhões, pintassilgos, pintarroxos, verdelhões, chinchalarraízes), juntavam-se por essa altura os tais ditos pássaros: tralhões, pardinhas, mosqueiros, tanjasnos, piscos, todos esses tolos e buliçosos dentirrostros que, burlados pela negaça da formiga-de-asa, caem aos centos nas esparrelas.
Caem? Caíam. Agora tralhões, contam-se pelos dedos. E quem diz tralhões, diz, por exemplo, os lagartos que a cada passo se topavam no caminho, erguendo a cabeça ao mesmo tempo mofadora e bisbilhoteira e esgueirando-se logo, com um frufru de saias de cocotte, para a segurança dos silvados e dos buracos de parede. Onde param os lagartos, o verde rastejante dos lagartos? Parece impossível, mas, em todos os dias que leva Agosto e em todos os passeios matinais que tenho dado pela serra, não vi, neste ano da graça ou da desgraça de 1984, um único lagarto! Tão-pouco uma lagartixa.
Os próprios insectos — tirante talvez as moscas, que inçam prodigiosamente da prodigiosa falta de higiene destes povoados — vão desaparecendo. Borboletas, por exemplo, que alegravam os prados com o seu voo incerto e colorido — que é delas?
A vida selvagem está em crise, só o não vê quem não quer. Deitem os zoólogos contas bem deitadas e digam lá quantas espécies estão para chegar com saúde e bizarria ao século XXI, nestes tempos em que a química, dona e senhora da agricultura, dita a sua lei nas garrafadas de insecticida e nas pazadas de fertilizante que a rego cheio se derramam sobre os campos e os escaldam.
Pela minha parte, que me considero medianamente atento e preocupado com estas questões, cada ano que passa, noto a falta de mais qualquer coisa. Lembro-me de que, no ano passado, escrevi numa crónica algumas reflexões amargas sobre o desaparecimento dos pirilampos, que outrora, em noites sem lua de Verão, faziam de certas paredes um firmamento constelado de estrelinhas a luzir, tão bonitas como as verdadeiras.
Para não variar, também este ano tenho de dar baixa de mais uma espécie. Os morcegos.
Os morcegos eram os mais prodigiosos acrobatas aéreos destes lugares. De voo ainda mais rápido e imprevisível do que o das andorinhas, ficava-me às vezes horas inteiras a vê-los voltear em torno do candeeiro da iluminação pública, em perseguição dos insectos que a luz atraía: borboletas nocturnas, traças, mosquitos, besouros, mesmo um ou outro louva-a-deus estouvado. Os morcegos, guiados pelo seu radar, mais fiável do que o do homem, lá iam incansavelmente enchendo o papo, neste festim estival. Ainda o ano passado os vi, e admirei, na sua faina incessante.
Pois este ano os postes da iluminação ainda lá estão, a alumiar com a sua luz frouxa a grande noite de Grijó. Morcegos é que viste-los. E de repente dou-me conta de que não há morcegos porque os próprios insectos desapareceram também. É verdade: a luz já não atrai a bicharada dos ares porque esta também já foi com os cantares da segada. E portanto não é só a falta de morcegos que me cabe carpir este ano, mas também a dos insectos. Annus horribilis.
O que mais impressiona nesta cavalgada louca para o fim da vida à superfície da Terra é a velocidade a que galopam os cavalos da extinção. Espécies que precisaram de milhões de anos para se autonomizar, definir e apurar, não levam afinal mais do que alguns anos, poucos, para se extinguir. Neste momento, segundo a contabilidade dos biólogos, são já muitas as espécies desaparecidas e outras tantas as que se arriscam a desaparecer nos próximos tempos. Admite-se que algumas possam extinguir-se por exaustão do modelo biológico que representavam, mas a esmagadora maioria desapareceu e desaparece porque o homem, por inadvertência ou ganância, criou para elas um ambiente extremamente hostil.
O futuro não parece ser risonho. Cada espécie que se extingue é um elo que se quebra da grande cadeia biológica, com consequências muito para além daquilo que continuamos alegremente a avaliar.
E esta evidência amargura-me uma noite de férias. Os pássaros, as cobras e lagartos, os pirilampos, os morcegos, as pequenas criaturas que a lâmpada atraía já são coisa do passado em Grijó. Qual será, para o ano, a baixa a registar? Porque daqui a um punhado de anos, é mais que certo: será o próprio homem.
Não vou falar — até por míngua de ciência — de ecossistemas, de cadeias alimentares, de todas essas noções com que os verdes nos sacodem baldadamente a consciência. Mas atrevo-me a fazer um pedido singelo aos professores primários, cujas mãos moldam o homem de amanhã: ensinem às criancinhas, por favor, que uma maçã bichada não é propriamente uma tragédia, nem um interdito como a marrã para Mafoma: remove-se a parte afectada pelo bicho e come-se tranquilamente a parte restante. Garanto que sabe bem — bem melhor do que essas maçãs tão reluzentes que parece que foram engraxadas, que se compram nos supermercados e não sabem rigorosamente a nada. No dia em que a humanidade abandonar os tiques de nova-rica e compreender isto e deixar de comer com os olhos e usar com mais parcimónia os pesticidas, talvez regressem as borboletas e demais insectos, e após eles os lagartos e os tralhões — a vida, enfim.
Talvez. Se não for já tarde demais.
* * *
Nos últimos dias, o tempo tinha andado abafadiço, opressivo, a ameaçar trovoada. As gentes andavam de nariz no ar, adivinhando a borrasca. Sabia-se pelo telejornal que aqui e ali, por esse país fora – Castelo Branco, Coimbra – se tinham abatido trovoadas destruidoras e que, fatal como o destino, por estes lados havia de cair uma também. E com efeito: oiço agora mesmo na televisão que ontem, lá para os lados de Rabal, Bragança, uma violenta trovoada acompanhada de saraiva – pedra, diz-se por aqui – reduziu a cisco o que havia nas hortas e nas vinhas.
Pois hoje também andou por Grijó a trovoada. Felizmente sem as desastrosas consequências de Rabal e da Ereira. Mas trovejou, sim senhor, e granizou, e durante meia hora pareceu que ia tudo raso. É um espectáculo que mete respeito. O céu a enegrecer, a enegrecer, súbitos pés-de-vento a pôr tudo em polvorosa, e às duas por três aquelas terríveis foiçadas de lume que nos fazem arrepiar até ao mais íntimo de nós, logo seguidas do troar à uma de milhentas peças de artilharia, que aos poucos vai morrer longe, repercutido em todas as quebradas da Serra de Bornes. E a pedra a tamborilar em tudo quanto seja capaz de lhe servir de tambor e a fustigar as orelhas de quem foi apanhado de surpresa em campo aberto. Tem que se lhe diga, a senhora trovoada!
No fundo das casas, velhas avós chamam-se a Santa Bárbara: “Santa Bárbara bendita, que no céu estais escrita com papel e água benta, livrai-nos da tormenta...” Mas a coisa dura, quando muito, meia hora e o apaziguamento que se segue vale bem os temores e cuidados por que passámos. É como uma prisão de ventre cósmica que se tivesse resolvido e deixado, no seu lugar, uma sensação de bem-aventurança. O vento amaina, os rasgões de luz lá vão levados para cada vez mais longe, ainda rufa por lá o trovão, mas sentimo-nos agora seguros.
O tempo refrescou e convida a um passeio pelo prado.
Cheira a terra molhada. Mas, mais discretos embora, notam-se também os perfumes de todas as ervinhas, que o borrifo de água espevitou. A bicharada miúda anda numa freima. Um formigueiro abriu as portas de par em par e deixa sair revoadas de formigas-de-asa, que dir-se-ia esperarem apenas a bênção da chuva de Verão para irem cumprir algures o seu efémero destino. ‘Tem sorte o garoto que andava há dias a escarafunchar com o sacho no formigueiro,’ penso. ‘Desta vez enche o cabaço.’
A estas formigas chama o povo trasmontano aludas, e a palavra tem um sabor arcaico que me delicia. ‘Aluda’ vem de ala, que diz o mesmo que asa. Quer dizer portanto ‘asada, provida de asas’. O sufixo é que me traz esse cheiro a Idade Média, em que foram forjadas palavras fortes como ‘teúda’ e ‘manteúda’, ainda hoje em uso forense. Usa-se também o elemento ‘–udo’ para fazer notar determinados aspectos morfológicos desmedidos: orelhudo, pestanudo, narigudo, beiçudo, barrigudo… Mas em nenhum caso tem o mesmo sainete que em aluda.
Estas aludas, formigas avantajadas, com o seu centímetro e meio de comprimento, negras e brilhantes, de asas sedentas de espaço, é que o rapazio usava já no meu tempo para cevar as pescoceiras ou costelos com que pelo fim do Verão dizimava tralhões, papa-moscas, rouxinóis, tanjasnos e outros ingénuos dentirrostros. Presas ao pingarelho da pescoceira por uma crina de burra, no seu movimento incessante e baldado para se libertarem, eram uma tentação para o passaredo. Caíam às dezenas em cada manhã de caça, até que chegava o São Mateus, e então — ‘pelo São Mateus deixa os pássaros que não são teus’ — a mortandade acabava, porque os sobreviventes, temerosos do Inverno trasmontano, abalavam para climas mais clementes… e sem pescoceiras, imagino.
Hoje praticamente já não se vai aos pássaros. À uma, porque já os não há, ou quase. Depois, porque também já não há, ou quase, rapazes nas aldeias. O que vi há dias de sacho nas unhas é já avis rara. É, como os tralhões, uma espécie em vias de extinção. Como havia de haver rapazes nas aldeias, se tão-pouco há adultos? O espaço rural, que foi em tempos um autêntico alfobre formigando de vida, vai-se esvaziando e emudecendo…
E aí está como a trovoada, julgando eu que me distraía o espírito das inquietações dos tempos que correm, me pôs pelo contrário a cismar neles. Não valeu a pena, a trovoada.
* * *
Estamos na última semana de Agosto. Não se fala de outra coisa em Grijó: a festa, que calha no primeiro domingo de Setembro.
Os mordomos, muito compenetrados, inchados da dignidade de terem sido escolhidos democraticamente para cargo de tanta responsabilidade, andaram nos últimos dias a carpinteirar a quermesse e o balcão de venda dos bilhetes, a aprumar postes embandeirados e a engalanar de festões as ruas principais.
As mulheres, cada qual em sua casa, embrenharam-se num labirinto de tarefas tão díspares e exigentes que me deixa estarrecido só de pensar em como podem acudir a tanto. Ele são os folares, ele são as carnes, ele são as limpezas domésticas, ele são até as remoções de esterco e estrume que durante todo o ano se acumularam nas ruas por onde a procissão há-de passar — eu sei lá o que mais é! —, tudo isto a par da rigorosa observação dos diversos momentos religiosos que a festa comporta. E tudo providenciam, a tudo acodem com gestos antigos e medidos e uma eficiência de que homem algum jamais seria capaz.
Admiráveis mulheres trasmontanas!
Ao ver a azáfama de uns e outros, fico-me a cismar em como esta tradição da festa consegue ainda subsistir num tempo que vai tão avesso a tradições. Sim, eu sei que a festa teve uma função social importante em tempos idos, quando a roda do ano era um chorrilho ininterrupto de trabalhos e tribulações, e as pessoas precisavam de um momento de escape anual como de pão para a boca. Era como que uma transgressão colectiva, uma das poucas que o povo reclamava e lhe eram consentidas — mesmo assim, severamente pautada pelas cerimónias religiosas. Mas os horizontes vivenciais foram-se alterando, na peugada do desenvolvimento científico e tecnológico. A vida melhorou algum tanto. E a televisão — o grande agente transformador — invadiu o quotidiano das comunidades rurais, trazendo-lhes novas propostas de diversão que logicamente deveriam ter tornado obsoletas as ingénuas alegrias da festa anual.
Deveriam. Mas a verdade é que não tornaram. Pelo menos não tornaram de todo. É que uma argamassa muito forte e resistente à corrosão do tempo continua a dar consistência e sentido à festa: a sua componente religiosa.
Na verdade, é em função desta que toda a restante matéria festiva se organiza. Basta dizer que em Grijó a festa abre, sábado à tarde, e encerra, segunda de manhã, com a procissão do Senhor do Calvário. Mais precisamente: o Senhor do Calvário, que passa o ano na sua capelinha erigida num morro sobranceiro à aldeia, é trazido em procissão para a igreja matriz, no sábado à tarde, e restituído à sua morada habitual, na segunda de manhã. São estes dois momentos que balizam o universo das manifestações profanas.
De resto, as manifestações profanas não são muitas. Digamos que a mais importante é talvez o almoço de domingo, que tem lugar por essas três horas da tarde, quando os estômagos inconformados já rugem fragorosamente reclamando a sua quota parte das iguarias da cozinha. Mas quê! Uma vez mais a primazia do religioso se impõe: a missa, que já começa tarde, é solene, com pregação geralmente prolixa, e rematada com uma procissão, e antes de estas cerimónias terminarem ninguém se atreveria a sentar-se à mesa. O que, por um lado, até é vantajoso: o apetite exacerba-se e os dentes cravam-se depois com mais prazer e raiva nas carnes várias que em todos os lares, mesmo os mais modestos, o forno assou.
Há depois, na praça pública, uma ou outra tenda: a doceira, a barraca de tiro, o vendedor de melões e, quando calha, algum bufarinheiro de calçado manhoso ou confecção barata. De toda esta chatinaria, retenho na memória de tempos idos a doceira, a quem eu comprava por quinze tostões não as cavacas nem as fatias de pão-de-ló que também vendia, mas o conteúdo dumas garrafinhas que vinha a ser uma beberagem à base de aguardente e açúcar que eu sorvia sôfrego por um tubinho de lata dobrado em ângulo obtuso, que servia sucessivamente a todos os clientes (só havia um tubo), sem melindres de higiene. Onde isso vai...
Mas voltemos à festa de Grijó. Há a quermesse, onde está exposta toda a casta de objectos escalavrados e sem préstimo, que foram angariados pelos mordomos de porta em porta, até em aldeias vizinhas. Para a quermesse deste ano, eu próprio contribuí com uma horrenda pomba de barro com olhos do feitio dos da gente, pálpebras e tudo, que veio parar a minha casa já não sei bem como nem porquê. Os objectos recolhidos são agora sorteados através de bilhetes de rifa, que se compram defronte da quermesse, enroladinhos à mão como os cigarros antigamente e depois dobrados ao meio, para que ninguém possa cocar, sem os desembrulhar primeiro, se têm prémio ou não. Esta quermesse é a tentação dos raparigos, que nela consomem as magras moedas que nas últimas semanas andaram a juntar para o dia da festa.
E há a animação sonora: música e foguetório. No tocante a música é que houve maior evolução em relação aos cânones ancestrais. Quando eu era garoto, nas festas de aldeia havia a banda e mais nada. Vinha de longe, precedida de grande fama: Revelhe, Pevidém, São Mamede de Ribatua, Mateus.... Entrava na povoação, em formatura impecável, com o mestre muito compenetrado à frente, a tocar um passe-calle, seguida do rapazio excitado. À noite, as pessoas postavam-se em redor do coreto, escutando admirativamente a execução das partituras, e não era invulgar ouvir alguém mais entusiasta soltar um comentário irreprimível: ‘Carválhitchas! Peis a música toca bem duma bêze!’ Ou seja: ‘Caramba! A banda toca mesmo bem!’
A banda acompanhava a procissão, balanceando-se a compasso, e à noite, no coreto, estreloiçava intrepidamente — arroz p’rò pote, arroz p’rò pote — as suas rapsódias e modinhas.
Hoje porém o povo não se contenta com tão pouco. Vem a banda, sim senhor, e toca lá o que tem a tocar à hora que lhe é marcada. Mas, mal se cala, irrompe a voz potente dos altifalantes, debitando música folclórica e pseudofolclórica, alguma desta simplesmente detestável e não raro obscena: Quim Barreiros e uma legião de imitadores a cantar ordinarices que o povo toma por música popular e dança entusiasticamente. E — progresso dos progressos — chegada a hora, um conjunto de nome bombástico, vindo de alguma das vilas circunvizinhas, salta para cima do atrelado dum tractor e atroa os ares com o mais desalmado rock — exigência da juventude que, envolvida na poeira da praça, dança em espasmos como vê dançar na televisão. Contaminação inevitável, pois Grijó não quer ficar de fora da aldeia global a que o mundo, segundo o sábio canadiano, está reduzido.
Talvez seja esta a fenda, cismo, por onde se hão-de insinuar os germes da destruição da festa. Talvez. Mas por ora a festa vende saúde. É certo que estouram menos foguetes do que há vinte anos, mas isso procede mais da crise económica generalizada do que de ter caído em desgraça o fogo de artifício. E enquanto o povo, incluindo a mocidade, mantiver, como mantém, acesa a sua devoção ao Senhor do Calvário, estou que não há Quim Barreiros nem conjunto rock que atirem de pantanas com a festa de Grijó.
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Tudo isso é muito bonito. Mas, por muita simpatia e respeito que tenhamos pelas manifestações da cultura popular — e a festa é uma delas —, não temos vocação de martírio em grau suficientemente elevado para nos dispormos a passar a noite da festa em Grijó. Era um sacrifício demasiado penoso. É que a nossa casa, por nosso mal, fica junto da igreja, cujo largo fronteiro é o centro nevrálgico de todas as manifestações. Passarmos ali a noite de sábado para domingo equivalia a ficarmos submergidos num mar de decibéis agressivos e não pregarmos olho durante toda a santa noite.
Mas, mais ainda do que o não poder dormir, incomoda-nos a nauseante brejeirice da música do altifalante, revezando com o mau gosto da música da banda rock, as duas coisas no máximo volume, berrando o mais que podem e fazendo com que o barulho nos encha a casa, não deixando recanto nem esconso onde se esteja a salvo. Ah, que saudades dos tempos em que, em matéria de música, bastava a banda no coreto, que, por muito desafinada que fosse, sempre debitava meia dúzia de notas de arte. E dos tempos em que, em matéria de ruído, bastava pela meia-noite o foguetório a estralejar durante um quarto de hora. Podia-se dormir, nesses tempos abençoados. Mas mesmo em Grijó os jovens impõem a sua lei e, com o seu engodo pela música aos berros — que ou me engano muito ou há-de fazer de cada um deles um surdo precoce —, transforma a noite do arraial num tormento insuportável para ouvidos e mentes sensíveis. De forma que, dois ou três dias antes da festa, metemos as malas no carro e, ala!, batemos em profiláctica retirada para Vila Real — onde de resto também temos alguns vizinhos barulhentos, mas que, comparados com os violentos extremos da festa de Grijó, nos parecem agora meninos de coro a cantar pianíssimo uma canção de embalar.
Não damos ao demo, contudo, os dias passados na aldeia. Pelo contrário, guardamo-los gratamente na memória. Porque foram dias de paz, de comunhão com a ruralidade que pulsa ainda no nosso sangue, de proximidade da natureza. Para o ano lá estaremos.