Louis C.K. e a mimesis do abjeto

Louie, «Come on, God» (S02E08), FX

Louie, «Come on, God» (S02E08), FX

Se, por um lado, parte considerável dos casos de assédio e abuso sexual expostos no decorrer do movimento #MeToo causaram choque devido ao envolvimento de celebridades a que dificilmente se associariam tais atos, o caso de Louis C.K., pelo contrário, distingue-se precisamente por não surpreender qualquer pessoa minimamente familiarizada com o seu trabalho. O estilo confessional, em que a exposição de pensamentos e desejos de natureza abjeta ou imoral desempenha um papel central, é, aliás, uma das razões do sucesso do comediante, que sempre fora aplaudido, tanto pela crítica como pelo público em geral, devido à «honestidade incondicional» que permeia as suas obras. No entanto, os aplausos cessaram a partir do momento em que se tornou conhecida a verdadeira proximidade entre a vida privada de C.K. e a sua expressão artística. O caso torna-se particularmente curioso quando vemos os próprios trabalhos a serem alvo de um processo público de anatematização juntamente com o autor, o que, aparentemente, gera uma situação singular em que a potenciação de uma propriedade que confere valor a uma obra tem como resultado a desvalorização dessa mesma obra. A resolução do paradoxo terá de passar pela análise das questões teóricas que lhe subjazem. Esta mudança drástica na avaliação do trabalho de Louis C.K. reflete alguns problemas latentes na postura do sujeito crítico perante a obra de arte, que não podem deixar de ser referidos e examinados.

Em função das recentes acusações de má conduta sexual, que Louis C.K. admitiu serem fundadas, a carreira do comediante sofreu um golpe severo e potencialmente fatal, com todos os projetos em que se encontrava envolvido a serem alvo de suspensão ou cancelamento. Para mais, os trabalhos anteriores de C. K. (quer os programas de stand-up, as séries televisivas, ou ainda a recém-lançada longa-metragem I Love You, Daddy) estão a ser alvo de ataques ferozes, devido à sua tendência em utilizar como matéria-prima os mesmos assuntos que estão no centro das acusações: a obsessão com o onanismo e a relação disfuncional com a sua sexualidade. O desvelamento desta instância grotesca de arte a imitar a vida está a provocar um movimento de desvalorização dos trabalhos de C.K. enquanto fins em si mesmos. O seu estilo cru e auto-depreciativo (que inclui repetidas referências à prática de onanismo) é agora visto como uma forma de auto-justificação dos atos reais, o humor negro e provocativo passou a ser analisado como sintoma da degenerescência moral do autor, e mesmo os momentos em que Louis C.K. demonstra empatia com o sexo oposto em piadas de possível conotação feminista são interpretados como uma cortina de fumo criada com o objetivo de desacreditar os rumores sobre a conduta reprovável do comediante para com as suas colegas de profissão — um crítico chegou mesmo a considerar I Love You, Daddy como uma forma de exibicionismo.

Numa altura em que o debate sobre a velha questão da relação entre arte e artista se encontra particularmente aceso em função do elevado número de acusações a incidir sobre personalidades ligadas ao mundo da cultura, o caso de Louis C.K., que fez de punchlines como «men just want to fill the world with their cum» (Louis C.K. 2017) a sua imagem de marca, foi tomado por colunistas, bloggers e vloggers como o derradeiro argumento contra os defensores da independência do objeto artístico face ao seu autor. Em função do caráter fortemente autobiográfico de parte substancial da obra de C.K. (que o próprio se esforça por enfatizar, a ponto de utilizar o nome próprio em vários dos seus trabalhos de ficção), qualquer apologista da «arte per se» fica vulnerável à acusação de estar a enterrar a cabeça na areia de modo a poder continuar a ver o trabalho do comediante sem peso na consciência. A ideia de que consumir o trabalho de Louis C.K. implica uma infração moral parece encontrar-se generalizada; resulta daqui que, atualmente, ao olhos dos média, tudo o que Louis C.K. produziu até à data encontra-se corrompido por uma mancha indelével, devendo ser objeto de boicote ou consumido unicamente pelo valor documental que possui enquanto insight sobre o modo como a arte pode servir para simultaneamente refletir e mascarar os abusos de poder que ocorrem no seio da indústria.

Como tipicamente acontece nos debates em praça pública acerca da relação entre autor e respetiva obra sempre que surge alguma notícia sobre as práticas moralmente questionáveis de um qualquer artista, este movimento coletivo de «desmascaramento» da obra de Louis C.K. parece radicar numa profunda incompreensão e negligência dos trabalhos em questão, denotando um menosprezo do fenómeno da produção artística que vai muito além do apelo à justiça em função das acusações levantadas contra o autor. Esta postura desequilibrada no momento de apreciação de um objeto artístico manifesta-se de modos curiosos em alguns casos específicos. Tome-se como exemplo um artigo publicado a 11 de Novembro de 2017 no site Variety.com; no artigo, a crítica de TV Sonia Saraiya expressa o seu arrependimento pela redação de uma recensão laudatória à quinta temporada de Louie, publicada em 2015:

It’s embarrassing to look at now. Not just because if I’d known what I know now, I would have written a different review of “Louie,” a show that hinged both on comedian Louis C.K.’s performed self-awareness and his uncomfortable relationship with sex. (…) But also because it’s clear, reading between the lines of my review, how much faith I had in his comedy.

Consideremos a primeira razão por detrás do embaraço. Saraiya afirma que, se soubesse o que posteriormente viria a descobrir sobre C.K., a sua recensão seria diferente, dando como exemplo de uma declaração particularmente infeliz um trecho no qual escreve: «What makes “Louie” work, time and time again, is that C.K. goes in as hard on himself as he does on the world around him—harder, perhaps. The show is suffused with a take-no-prisoners poignancy that spares no one, and that makes it sublime.» Originalmente, é identificada na série uma qualidade — a perspetiva pungente e visceral, despida de subterfúgios ou complacências, com que o autor aborda quer o mundo exterior, quer a sua própria interioridade — cuja força é suficiente para criar um sentimento de sublime; contudo, Saraiya afirma posteriormente que isto terá constituído um erro da sua parte. Mas que conclusão devemos retirar desta retificação? Que as impressões provocadas pela série numa primeira instância terão sido falsas, e a experiência do sublime uma invenção? Pelo contrário, a autora escreve que

I was not at all right about what made “Louie” sublime. It’s not that C.K. actually went in on himself, it’s that he made it look like he did — enough to get away with a pattern of sexually intimidating female colleagues for a span of at least 15 years.

 Aqui alcançamos o busílis da questão. Saraiya reafirma a qualidade que na sua opinião torna a série sublime (a honestidade e a profundidade da auto-crítica), mas relativiza-a em função de ela não abranger a vida do autor e, pelo contrário, servir para mascarar a desonestidade do Louis real. Este juízo acarreta algumas implicações problemáticas, a primeira das quais a ideia de que os méritos estéticos de uma criação artística são anulados mediante a constatação de que eles se encontram ao serviço de propósitos contingentes que transcendem essa criação (neste caso, a formação de uma cortina de fumo moral para C.K.). Isto constitui um paradoxo — a informação biográfica pode ser mais ou menos relevante para a apreciação compreensiva de uma obra (e aqui será certamente), mas nenhuma descoberta nesse domínio pode alterar retrospetivamente uma impressão estética. Ainda que as intenções de Louis C.K. ao produzir a série incluíssem motivos abjetos, como Saraiya propõe, a verdade é que as personagens e situações por ele desenhadas possuem uma riqueza artística capaz de provocar no espectador uma sensação estética intensa, em nada influenciada por aspetos contingentes tais como um eventual caráter autobiográfico ou uma intenção autoral particular. Esta sensação, que a escritora designou por sublime, é tudo o que se pode pedir à arte: qualquer pretensão adicional escapa à sua jurisdição.

O problema da abordagem de Saraiya, que dá origem a este enovelamento argumentativo, está no facto de a sua apreciação crítica incidir, desde o início, na obra e no autor em simultâneo e de modo indiscriminado (de resto, esta patologia crítica encontra-se generalizada, como se pode perceber pela leitura das recensões a I Love You, Daddy e da comparação entre os textos pré- e pós-acusações). Na sua perspetiva, o grande mérito de Louie residia não tanto nas observações que o programa faz, mas no facto de C.K. colocar-se a si próprio na mesa de observação: era a pessoa real, temporal, que falava connosco a partir do ecrã, e não uma personagem ficcional, e isso tornava o programa único e especial — uma apreciação entretanto refutada pela constatação de que «It’s not that C.K. actually went in on himself, it’s that he made it look like he did». Mas essa clivagem entre a pessoa real e o seu duplo ficcional — esse «make it look like» — é uma consequência necessária na criação de objetos artísticos. Um alter ego numa obra de ficção, por mais traços autobiográficos que ostente, não pode ser confundido com o seu paralelo real — não se pode pedir satisfações à criatura pelo comportamento do criador. Este pressuposto é uma das armadilhas que a arte designada «confessional» nos coloca. O momento de projeção subjetiva que coincide com o início do ímpeto criativo implica sempre uma divergência. Num ensaio de 1965 intitulado «Sincerity and Poetry», o poeta e crítico literário Donald Davie afirma, a propósito dos poetas confessionais:

he selects what he will reveal and suppresses much more; and in so far as the confessional poet thus presents only a trimmed and slanted image of himself, he may still be thought to be revealing to us not a personality but a persona. This is to use the term persona in an extended but thoroughly legitimate sense.[i]

Posteriormente, Davie questiona a relevância da realização desta distinção no âmbito da crítica literária. Contudo, no presente contexto da progressiva contaminação do exercício de crítica a um objeto artístico por considerações (positivas ou negativas) do domínio da vida moral do autor, o realce desta distinção entre artista e persona projetada torna-se absolutamente crucial.

No fundo, a recensão original de Saraiya não possui nada de errado: o texto exprime uma convicção acerca de um objeto artístico, gerada a partir de impressões provocadas por este, e essa convicção é exposta argumentativamente de modo perfeitamente razoável. Já a retificação da recensão com base em dados contextuais adquiridos a posteriori, por outro lado, tem implicações graves concernentes à postura com que se aborda e realiza a crítica de arte, colocando o crítico numa posição muito precária. Se permitimos ao exercício analítico a indulgência deste livre-trânsito entre realidade ficcional e realidade temporal, desta utilização de informação biográfica adventícia enquanto critério de qualidade estética, então a tarefa do crítico torna-se extremamente vulnerável e ingrata: a qualquer momento pode vir a público uma notícia que deita por terra o comentário detalhado e incisivo que o crítico, na sua ingenuidade, escrevera acerca de uma determinada obra; frustrado, ele terá de redigir um artigo a explicar que o recém-descoberto homicídio cometido pelo autor x anula a tese segundo a qual o protagonista do seu novo romance seria um tipo de herói cristão; além disso, todas as subsequentes recensões a essa obra teriam de focar os aspetos que apontassem de forma sub-reptícia para o crime — isto é, até que novos desenvolvimentos no caso provassem a inocência do autor.

Isto traz-nos de volta à questão da intencionalidade autoral. É preciso sublinhar o facto de que a intenção que se crê estar na origem de um determinado objeto artístico (e que, repita-se, em todo o caso não teria influência direta no valor intrínseco desse objeto) não passa, em última medida, disso mesmo: uma crença. A informação contextual pode fornecer-nos matéria para conjeturas, mas, sem termos acesso ao espaço mental do autor, nunca poderemos ir além da especulação. E, no entanto, encontramos em inúmeros artigos sobre C.K. escritos nos últimos meses a exposição dos «verdadeiros» motivos por detrás de uma certa piada feminista, de um episódio de Louie que retrata um caso de assédio («What once looked like creative provocations now read like justifications of a moral universe where women are as complicit in sexual violation as men are, and where sex that begins with force easily gives way to mutual desire.»), de uma cena de I Love You, Daddy com uma personagem a simular o ato de masturbação, etc. Não serão estes casos instâncias da vulnerabilidade da mente humana ao poder da sugestão? A descoberta de uma característica controversa de um autor, para mais uma característica com reverberação em algum do seu trabalho, toma de assalto a nossa atenção, e passamos a analisar esse trabalho através de lentes muito especiais, tomando como base interpretativa a eventual existência de um elo de ligação a esse traço particular da personalidade do autor. O prolongamento desta atividade, não sujeito a um exame de auto-crítica — e particularmente agravado quando aliado à influência dos valores morais do observador, esta igualmente não mediada — leva a que, a certa altura, já não se encontrem apenas reflexos dessa característica numa dada obra, mas que a própria obra seja, na íntegra, percecionada como um produto direto dessa característica, um instrumento que o autor criou unicamente com a intenção de servir um fim relacionado com essa característica — seja para a justificar ou esconjurar, para a esconder ou ostentar de modo provocativo.

Toda esta confusão teórica estrutural — o enovelamento da obra com a vida pessoal do artista, da impressão estética com a impressão moral — conduz, em última instância, a consequências de ordem prática que poderiam ser definidas, no mínimo, como caricatas. Um exemplo notório disto é o fenómeno do sentimento de culpa provocado pela obtenção de prazer através do consumo de arte publicamente considerada como moralmente corrupta.

Is it okay to watch 'Louie'? (…) we are forced to confront whether we can in good conscience continue to enjoy the “art” created by corrupt individuals. Are we endorsing their behavior by enjoying their art? If we watch Woody Allen or Polanski movies, are we being infected by their pedophilia?

Ironicamente, ninguém melhor do que Louis C.K. para desconstruir este exercício de ginástica moral e revelar a sua irracionalidade — mas teria de ser o Louis de há um ano atrás, cujas afirmações ainda possuíam valor próprio e não constituíam um mero veículo de subtexto malicioso.

Posto tudo isto, como poderemos conciliar o que agora sabemos acerca dos comportamentos antiéticos de Louis C.K. com uma apreciação justa de uma obra que evidencia reflexos desses comportamentos, de um modo que não implique as contradições acima referidas nem uma evasão do problema? Um bom ponto de partida seria considerar a afirmação de Oscar Wilde no prólogo de The Picture of Dorian Gray — «Vice and virtue are to the artist materials for an art» —, e considerar o trabalho de Louis C.K. como uma construção artística na qual o vício — experienciado pelo autor quer no mundo em seu redor, quer nos efeitos que exerce sobre a sua própria pessoa — surge sob a forma de matéria-prima principal.

De um modo geral, pode dizer-se que o humor de C.K. — quer o repertório de stand-up, quer as produções televisivas — é fundado num exercício de meditação sobre as fraquezas da condição humana. Um dos seus traços mais característicos consiste na exposição dos vícios e das ignomínias inerentes à psique do homem comum, que este, por norma, ou procura recalcar ou desconhece por completo. As coisas menos dignas que se fazem quando ninguém está a ver, os pensamentos rasteiros que todos sabemos ter mas nenhum de nós ousa confessar — Louis C.K. é um especialista a captar estes pequenos «animalismos» do animal humano (com especial atenção dada aos seus), presentes sub-repticiamente na existência quotidiana de cada um e a arrastá-los para a superfície com o intuito de nos confrontar com a nossa própria natureza mais profunda e primária. Como resultado desse confronto, o humor surge como uma forma de catarse: o riso provocado por uma piada «suja» (seja sobre masturbação, desaventuras sexuais ou pensamentos inexprimíveis acerca de um ente querido) significa implicitamente a aceitação do espectador relativamente àquilo que ele, através da identificação com a substância da piada, reconhece como o lado abjeto da sua própria existência. E este processo de identificação, na medida em que sublinha aspetos comuns a um conjunto vasto de pessoas, tem igualmente como efeito uma aproximação entre indivíduos, um fomento de empatia.

Este exercício de penetrar nas profundezas mais pantanosas do ser, para aí encontrar alicerces de humanidade capazes de catalisar a quebra de barreiras morais, encontra-se relacionado com um outro elemento basilar do humor de Louis C.K.: o exame de tópicos tabu através da adoção de posições politicamente incorretas. Indo além do mero efeito de choque, o método de C.K. força-nos a assumir perspetivas que normalmente constituiriam causa de repulsa ou desprezo, e, deste modo, leva-nos a questionar a robustez dos nossos próprios princípios morais e a veracidade da distância a que nos julgávamos encontrar dos indivíduos que constituem o objeto dos nossos juízos de valor. Isto é particularmente evidente no monólogo infame proferido no programa Saturday Night Live: contrariando a tendência social de alienar os predadores sexuais, etiquetando-os de monstros desprovidos de humanidade, C. K. desempenha o papel de advogado do diabo e, após um exercício retórico tão intrépido como engenhoso, conclui que na origem do problema estão impulsos volitivos que variam em grau, mas não em qualidade, daqueles em que os espectadores se reconhecem (neste caso, a procura de prazer). Não se trata de uma relativização da gravidade da pedofilia, mas sim de um esforço no sentido de reduzir as clivagens radicais entre «nós» e «eles» resultantes de um moralismo entrincheirado que julga e ostraciza sem se preocupar em tentar compreender o outro lado da questão.

É claro que agora conhecemos o fundo biográfico por detrás desta simpatia pelo diabo; mas isso não altera a validade das proposições a ela associadas. Do mesmo modo, em Louie as representações dos efeitos da depressão, das afasias nas relações com os outros, do poder que o vício pode exercer sobre um indivíduo — toda essa janela para uma subjetividade alheia permanece hoje tão incisiva como antes; poderíamos mesmo afirmar que episódios como «Come on, God» (S02E08) — o célebre episódio sobre onanismo — ou «Pamela, Part I» (S04E10) — que já em 2014 havia gerado controvérsia por uma alegada cena de abuso sexual — são hoje mais atuais do que nunca.

O caso em torno de «Pamela, Part I» é particularmente relevante no âmbito da presente discussão, pelo modo como revela uma tendência geral para fazer à arte exigências que esta não está em posição de satisfazer. O episódio em questão é o primeiro da trilogia que conclui a quarta temporada do programa, e trata o desenlace da relação entre Louie e Pamela, o principal interesse romântico do protagonista ao longo da série. A certa altura, Louie leva Pamela a sua casa e pede-lhe que reconsidere a hipótese de uma relação romântica (ela havia já expressado disponibilidade para tal num episódio anterior, mas várias circunstâncias levaram-na a voltar atrás); Pamela recusa, o que resulta em Louie persegui-la, bloquear-lhe a porta e forçá-la a beijá-lo. A cena acaba com Pamela a exclamar «you can't even rape well!», antes de Louie conseguir roubar-lhe um beijo e afastar-se, deixando-a sair. Sem entrar numa discussão legal concernente ao estatuto do ato praticado por Louie enquanto violação ou não, é indiscutível que a cena apresenta uma instância de má conduta por parte do protagonista — o que gerou uma discussão mediática intensa acerca do propósito de C.K. ao realizá-la:

 

it looks terrible. It feels terrible to watch–not just the grappling, but the cringing kiss Louie coerces out of Pamela, and the fist-pump he gives himself afterward. And there’s no reason to doubt Louis CK meant it to look and feel precisely that terrible. (…) The piece we’re missing is: why? To what end?

 

A resposta a estas perguntas, no entanto, não é difícil de encontrar se olharmos na direção certa. Acima de tudo, este momento representa um ponto fulcral na caracterização de Louie: esta cena retrata, com uma clareza nauseante, o comportamento de alguém que, num momento de confusão, cede às suas inclinações e procura exercer a sua vontade sobre outra pessoa sem tomar a vontade desta em consideração. O desconforto sentido pelo espetador é um efeito não só da observação da situação, em si repugnante, mas, principalmente, da sensação de dissonância cognitiva provocada pelo testemunho de um ato vil praticado por uma personagem que nos habituámos a tomar como exemplo paradigmático do good guy. Contudo, um tema recorrente na quarta temporada de Louie é a progressiva deterioração da estabilidade emocional do protagonista (sugerida, por exemplo, na cena de um episódio anterior em que Louie destrói um piano com um taco de basebol após sofrer um desgosto amoroso), o que justifica essa dissonância. A polémica que esta cena criou radica numa visão demasiado superficial da série, baseada no postulado segundo o qual o protagonista deve constituir um exemplo positivo para o espectador e demonstrar em todas as circunstâncias um comportamento digno e coerente. Isto vai diretamente contra o que o trabalho de Louis C.K. procura fazer: romper com a máscara de ordem aparente projetada na existência quotidiana e desvelar o caos inerente ao comportamento humano, a inevitabilidade da contradição, o egoísmo e o seu braço de ferro perpétuo com a moral. Em particular, esta cena ilustra, do modo mais direto e contundente, a divergência radical entre uma coisa e a forma como ela pode ser percecionada por um sujeito: a diferença entre o que fazemos e o que achamos que estamos a fazer, entre a intenção com que uma pessoa realiza um ato e a intenção que nós lhe atribuímos e tomamos como sua; isto torna-se especialmente evidente no final da cena, quando Pamela sai de casa e Louie faz um gesto com o braço em sinal de vitória. Este momento absolutamente grotesco — que provocou escândalo por alegadamente conotar o comportamento abusivo de Louie como algo aceitável e recompensador — é na verdade a ilustração mais pungente e patética do estado de profunda alienação em que Louie se encontra nesse momento da sua vida.

Muitas das respostas negativas aos momentos mais provocadores de Louie resultam, no fundo, do facto de a série não dar ao crítico o que este pretende. Assim se explica a transmutação de sensações de choque e horror perante acontecimentos moralmente ambíguos em juízos de valor reprovadores e num questionamento incessante acerca dos motivos por detrás da representação desses acontecimentos. A reação a «Pamela, Part I» é a manifestação de um mecanismo de defesa do crítico contra a desilusão que a obra de arte opera sobre a sua representação mental dessa mesma obra:

That Guy here has been our protagonist, a hands-on dad, a friend–maybe a loser, often wrong, sometimes selfish, but a guy who’s trying. Louie is hardly a traditional comedy, but it’s also not Breaking Bad. The “Pamela” scene makes us see the character in a way that fights against how we want to see him(…).

A fonte do problema encontra-se nesta tensão entre o que nos é apresentado e o «how we want to see him». Este fenómeno é exposto de modo eloquente por Jeanette Winterson no ensaio intitulado «Art objects»:

Admire me is the sub-text of so much of our looking; the demand put on art that it should reflect the reality of the viewer. The true painting, in its stubborn independence, cannot do this, except coincidentally.[ii]

Regressando ao artigo de Sonia Saraiya, note-se a presença de frases como «I feel betrayed», «I trusted him» ou «I wanted Louis C.K. to be a good guy». Seguindo Winterson, a arte verdadeira «objeta» esta posição de cumplicidade e subserviência face ao consumidor/crítico; os sentimentos de desilusão ou traição experienciados por este são, muito simplesmente, a consequência necessária de expectativas irrealistas.

Em conclusão, é razoável pensar que, com o tempo, as nuvens negras de subtexto a pairar sobre a obra de Louis C.K. se afastem e ela recupere o seu legítimo lugar enquanto produção incontornável no panorama da grande arte contemporânea. É claro que, à luz do que agora sabemos, o visionamento de um episódio de Louie pode constituir também um exercício de descoberta de indícios dos transtornos sexuais do autor, e isso pode ter alguma relevância relativamente à nossa experiência de interpretação da obra — o mesmo poderia ser dito, por exemplo, em relação a Proust aquando da leitura de Em Busca do Tempo Perdido, ou mesmo a Fernando Pessoa com as odes de Álvaro de Campos; em todo o caso, tratar-se-á sempre de informação contextual, com utilidade ao nível interpretativo mas que não afeta diretamente o valor da obra na sua essência. Importa sublinhar, neste ponto, que a batalha atual contra o estatuto intocável do «génio artístico» e contra a ideia de que «The art excuses the crime» precisa mesmo de ser travada — hoje sabemos mais do que o suficiente acerca dos recantos escuros da indústria de entretenimento para não podermos aceitar a relativização deste problema. Mas isso não faz com que deixe de ser necessário questionar a legitimidade, bem como a utilidade, de se permitir que o crime arraste a arte consigo, dando origem a cenários em que o objeto artístico, qual personagem kafkiana, é preso e flagelado por razões que desconhece e que o transcendem.

 

Quanto a um eventual regresso de Louis C.K. aos palcos e à vida pública, a situação é mais complicada. Na melhor das hipóteses, será um processo moroso, com a sua credibilidade a ter de ser reconstruída a partir do zero. O primeiro passo está dado: a admissão pública dos atos praticados, na qual Louis C.K. afirmou ter consciência do impacto negativo que teve na vida de várias pessoas, utilizando de modo irresponsável e abusivo a influência que detinha sobre elas; de agora em diante, a sua postura terá de constituir, de dia para dia, a comprovação dessa afirmação. O restauro da carreira de C.K. dependerá, em grande parte, da capacidade de encarar de frente esta situação: não procurar evadir-se e varrer o assunto para debaixo do tapete, mas, pelo contrário, abordá-lo com a auto-consciência e honestidade crua que sempre caracterizaram a sua figura de palco. Num eventual regresso ao stand-up, C.K. terá de dar a mão à palmatória e começar, antes de mais, por apontar para o «elefante a masturbar-se na sala». Se é verdade que o seu estatuto atual não lhe garante a confiança pública necessária para lhe permitir desempenhar o seu antigo papel de «voz da razão» a propósito de temas sensíveis, também é verdade que a dissecação desta situação se insere naquilo que o comediante faz com maior mestria: falar sobre a fraqueza humana em face do vício, tomando a sua vida pessoal como principal fonte de matéria-prima.

[i]  Davie, Donald, «Sincerity and Poetry», in Speaking of Writing: Selected Hopwood Lectures, ed. Nicholas Delbanco, Ann Arbor, University of Michigan Press, 1990, p. 216.

[ii] Jeanette Winterson, «Art Objects», in Art Objects, Essays on ecstasy and effrontery, Jonathan Cape, London, 1995, p. 10.

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