É como uma Spoon River Anthology que toca na essência poética do futebol. História poética do futebol mundial, diz o subtítulo. Entretanto, o título propriamente dito é literalmente tramado, bem urdido, tão pontual que faz cismar em torno do problema de uma possível «tradução», problema que não é (tanto) linguístico, mas, digamos, táctico: La solitudine dell’ala destra. Nessa linguagem especial que é o futebol, o ala (isto é, «asa») é o extremo, claro, mas isto não nos dá nenhuma certeza de que dizendo hoje ala ou extremo estejamos realmente a usar o nome certo para o portador daquela solidão. Aquela asa solitária está muito menos solitária hoje, à medida que o futebol se foi transformando, a ponto de ter sido literalmente virado do avesso. De vertical que era, fez-se horizontal; do culto do individual (que, contudo, continua bem vivo) passou à religião «contra-reformada» do futebol «associativo». So long, Cambridge!... Como escreveu Jonathan Wilson, a pirâmide foi materialmente invertida, mesmo em termos ontológicos, não apenas tácticos.
Quando Fernando Acitelli,[1] já lá vão vinte anos, publicou pela editora Einaudi de Turim estes cento e oitenta e cinco poemas inspirados em lendas do futebol mundial, essa inversão já era clara, mas seguramente nunca foi tão nítida como agora. E a solidão daquele extremo direito será ainda a mesma? Será igual a sua «ânsia da margem»? Julgo que não. Dos cinco avançados da geométrica «Cambridge Pyramid» — entre os quais os dois extremos, chamados precisamente wingers —, passando pelo «sistema» de Herbert Chapman, e ainda pelo «método» de Vittorio Pozzo, e pelo totaalvoetbal dos holandeses, até ao sacchismo dos anos 1990 e ao juego de poisicíon de Guardiola (célebre o seu postulado «O nosso avançado é o espaço»), o ala passou por transformações epocais, que edulcoraram a sua própria poisicíon. Pode dizer-se que a solidão agora mal chega aos guarda-redes, pois o associativismo almeja, enfim, uma abolição de todas as solidões, pelo menos dentro do rectângulo.
De entre os muitos itinerários que nos pode sugerir esta história poética do futebol, escolhi um, como podia ter escolhido outro, tentando «traduzir» um onze ideal, perigosamente individual e individualista, próximo talvez da reaccionária pirâmide das origens, aqui construída com figuras que pertencem a todo o século XX. Na baliza, o lendário Lev Yashin, o único guarda-redes capaz de ganhar a Bola de Ouro; depois, um defesa que é como se a tivesse ganhado (Paolo Maldini), e outro que não era bem um defesa (Sócrates); três meio-campistas muito ofensivos (em Cambridge seriam halfback, aqui serão Gigi Meroni, Roberto Baggio e Diego Armando Maradona); dois extremos puros (Angelo Domenghini e George Best), e três avançados (Eusébio, Schiavio e Van Basten). Estas são apenas as razões tácticas: as razões poéticas não necessitam de explicações.
Lev Yashin
Debaixo de chuvas ionizantes,
quando um esquema táctico
tem o sabor de uma ofensiva
sobre Berlim, tu, manso, reflectes
só na tua força física;
e quando voas de um poste para o outro,
no Ocidente pensam que há alguma coisa
ali por trás.
Lev Jascin (1929-1990). Mítico guarda-redes do Dínamo de Moscovo e da Selecção soviética. Foi campeão da Europa em 1960 e chegou, ainda com a sua Selecção, ao quarto lugar no Mundial de Inglaterra em 1966.
[Todas as notas são do autor. Acrescentam-se apenas as datas de falecimento de atletas que estavam vivos em 1998. Todos os itálicos são igualmente do autor (N. de T.)]
Paolo Maldini
Excessivo como a natureza.
Debaixo dos holofotes do futebol
ousas apresentar-te com a beleza
do teu lado.
Jubilosa cara de pau.
Afinal, és lateral e esquerdo
para o mundo.
Se o cinema e a moda te reclamam,
tu do campo respondes-lhes à herói
mas nas pausas trais o amor
cult-movie.
Assim Pulp Fiction ou Forrest Gump
vêmo-lo também num sorriso teu,
numa careta tua para o banco.
Paolo Maldini (1968). Defesa. Descendente de um futebolista, aquele Cesare que foi um símbolo do AC Milan e um grande defesa da Selecção azzurra. Paolo Maldini herdou do pai a sabedoria táctica e a elegância, tanto em avançar como em defender. Estas qualidades, juntamente com a sua extraordinária força física, fizeram dele o maior lateral esquerdo do mundo. O «estilo Maldini» é pensamento, é intuir com que facilidade poderia chegar à bola, mas é ainda o seu sorriso em frente às câmaras, mesmo após uma derrota... Com o AC Milan ganhou em todo o lado. Nos Estados Unidos da América perdeu o Mundial nos penaltis.
[A expressão «esterno e sinistro / al mondo» é baseada nos diferentes significados dos termos italianos esterno, isto é, «lateral (no futebol)», ou «externo», «exterior», e sinistro (port. «esquerdo» e «sinistro»)] (N. de T.)
Sócrates
Voltam-se para a história os cariocas.
Folheiam Tácito, Suetónio e Fócio,
e dão-se depois nomes solenes: Zenon.
Eneas, Júlio César, Marco António
Marco Aurélio, Caio, Túlio, Valdo...
Para Socrátes é grande a hipoteca grega:
filósofo e médico, tolerância austera,
sabedoria encanecida.
Mas ele parece um profeta, absorto
nas margens do Jordão: e a clâmide
verde-amarela que o veste solenes
rolos esconde: o encanto secreto
de toques, métodos e tácticas
dos Padres do deserto.
Brasileiro de Oliveira Sócrates (1954-2011). Meio-campista do Botafogo, do Corinthians e da Selecção brasileira no Campeonato do Mundo em Espanha (1982). Uma das figuras mais notáveis daquele meio-campo carioca, onde havia também Luisinho, Júnior, Falcão, Cerezo, Zico. Após a desilusão do Mundial espanhol, tentou a aventura italiana, mas com a camisola da Fiorentina não teve grande sorte e permaneceu nesse clube apenas durante um ano. Regressou ao Brasil, onde começou a dedicar-se à sua profissão de médico.
Os nomes evocados no poema são de jogadores brasileiros. Marco Aurélio e Valdo também jogaram na liga portuguesa.
Angelo Domenghini
Dom Quixote disciplinado
e generoso, mal aguçado compasso
mimando um círculo, encarnaste amiúde
a solidão do extremo direito,
posicionamento estético
e ânsia da margem.
Os teus «sujos» petardos
ofuscaram os guarda-redes
e tanto Hellström
como Calderón, num irrepetível
México 1970, inclinaram-se
perante a tua ousadia de atirador
de fora da grande área.
Angelo Domenghini (1941). Extremo direito. Vestiu a camisola da Atalanta, do Inter de Milão, do Cagliari e da Roma. Com o Inter ganhou dois campeonatos italianos, mais um com o Cagliari. Com o Inter ganhou ainda duas Taças dos Campeões Europeus e duas Taças Intercontinentais. Campeão da Europa com a Selecção italiana em 1968 e vice-campeão do mundo no Mundial México 1970. Jogador generoso e incansável, muitas vezes era capaz de resolver os jogos com repentinos remates de longe, precisamente como aqueles que descrevi no poema, contra a Suécia e o México, respectivamente.
Ronnie Hellström, guarda-redes da Suécia; Ignacio Calderón, guarda-redes do México.
George Best
Patilhas saxónicas,
passe viril,
pirata número onze
tal como o teu companheiro Morgan.
«Se Liverpool tem Paul McCartney,
nós temos George Best!» gritavam
as teenagers sonhando um beijo teu.
Com o teu apelido, o melhor,
fechavas o tridente dos vermelhos
de Manchester.
George Best (1946-2005). Talentoso extremo esquerdo da Irlanda do Norte, actuava nos vermelhos do Manchester United num ataque funambulesco que compreendia, entre outros, Denis Law, Bobby Charlton e o extremo direito Morgan. Vestiu também a camisola do Fulham e do Hibernian.
Eusébio
Idealizando em dias alternados
aquele narciso do Vasco da Gama
que da ponte manda carregar
as espingardas...
Respirando o hálito dos antepassados
e o ranger do ferro das correntes
nos porões exíguos
vem-se a ser ipso facto
navegador do Benfica.
Dos ecrãs ingleses
naquele preto e branco
de guerra fria, vemos-te
plantar a bandeira no solo
dos mestres.
E tudo isso soa
como uma reconquista estética.
Em zooms sucessivos,
à espera de um pontapé de canto
e no orgasmo de um toque,
até as tuas chuteiras
têm um nome... puma.
Eusébio da Silva Ferreira (1942-2014). Natural de Moçambique, foi avançado do SL Benfica e da Selecção portuguesa. Magistrais foram as suas exibições durante o Mundial de 1966, que se realizou na Inglaterra. Nessa circunstância Eusébio foi o melhor marcador do torneio, com nove golos, e Portugal ficou em terceiro lugar após ter vencido por 2-1 a União Soviética.
Gigi Meroni
Gigi, amigo que não conheci!
Como me pareceu diferente o Oratório
no dia seguinte... sem Ti.
Extenuado pela dor estava o campo,
orfãos nós, criancitas, mudas as balizas
(habitualmente tão barulhentas!) e desajeitadas as nossas
tentativas na lateral direita...
Na lateral faltava alguém: o teu Coração!
Esgotado o estro dos oriundos,
a cátedra de Metafísica
foi conquistada por Gigi Meroni.
Não foi um concurso por exames,
e nem sequer por títulos, e o que
lhe valeu foram as suas maravilhas
estéticas, as hipérboles por todo o campo
e os sofismas de ressalto.
Ideal bisneto de Marinetti,
riu-se das academias da vida, ele,
jocoso sábio do futebol.
E as suas palavras em liberdade
doaram-nos cenários acrobáticos,
quadros felizes de golos em fuga,
silêncios de casebres à Baudelaire.
Luigi Meroni (1943-1967). Extremo direito. Vestiu a camisola do Como, do Génova e do Torino. Também jogou pela Selecção italiana e participou na deslocação dos azzurri ao Mundial de Inglaterra em 1966. Génio, fantasia, classe, altruísmo, estas eram as suas qualidades. Este poema pretende ser uma homenagem a Gigi Meroni e, por isso, tentei recriar a minha emoção de criança no rescaldo daquele absurdo 15 de Outubro de 1967, quando o avançado dos granata morreu, atropelado por um carro, numa rua de Turim.
Roberto Baggio
Parece fácil dizer Baggio!
E o que dizer então do ultraje
da substituição?
E da colocação na bancada?
Nada, talvez?
E da Duma que o descobre
«imaturo» desterrando-o
entre os suplentes, a salvo?
Coragem! Coragem! Roby Baggio!
Talento vestido de cetim, passe
erudito, toque infinito, menino
ferido...
Os fora de série hoje já não são a mesma coisa,
na moda estão apenas os normais...
Roberto Baggio (1967). Craque da Fiorentina, da Juventus, do Milan e do Bologna [e a seguir do Inter de Milão e do Brescia, (N. de T.)]. Cresceu futebolisticamente no L. R. Vicenza. Apesar de ter demonstrado o seu valor ao mundo inteiro, é frequentemente utilizado a meio tempo, pois as tácticas exasperadas do futebol moderno e os novos esquemas parecem exigir jogadores universais que saibam atacar e ao mesmo tempo defender. Parece até que nesta exasperada evolução táctica não há lugar para os fora de série.
Diego Armando Maradona
Na despensa vazia
procura-se o culpado.
Nossas Senhoras nunca antes vistas
confortam os muros
e o requiem do escoadouro
está nas últimas.
Histórias de vício têm pausas
na estrada nacional entre Rosário e Tucumán.
Ao pôr-do-sol um pai sem salário
tem poses de General.
Mas a camisola do Boca está pendurada,
como se fosse a capa
de Simón Bolívar. E é bom sinal
para o pai de Dieguito.
No Argentinos Juniors
os dirigentes têm o coração a mil
e mais do que um se arrisca a um enfarte
sempre que Diego toca na bola.
Os jornais da noite conjecturam
que deve ter uns cromossomas a mais.
Investiga-se nas periferias.
Diego Armando Maradona (1960). «El Pibe de Oro» do futebol mundial. Há quem o considere maior do que Pelé, e quem, pelo contrário, o coloque logo após o «Pérola negra». Em todo o caso, é apenas uma questão de milímetros. Participou em quatro campeonatos do Mundo. Na verdade podiam ter sido cinco, mas o selecionador argentino Cesar Luis Menotti não quis arriscar levá-lo, com dezoito anos apenas, ao Mundial de 1978, ganho precisamente pela Argentina. Venceu o Mundial no México, em 1986, enquanto na Copa do Mundo realizada em Itália, em 1990, ficou em segundo lugar, após uma final muito discutida. Na Espanha vestiu a camisola do Barcelona e do Sevilha. Em Itália, com o Nápoles, ganhou dois campeonatos, uma Taça UEFA e uma Taça de Itália. Acho que é suficiente. Na Argentina vestiu a camisola do Argentinos Juniors e do Boca Juniors.
Angelo Schiavio
... Quase como se o teu olhar moral
garantisse também a eficiência
física, como se a mais se revelasse
até o exame médico, como se esse sorriso
enfim decretasse a precisão
do coração e o bater romântico,
visando o que é justo e não apenas
a vitória.
Pozzo, tratando-te talvez por «vós»,
pôs-te extremo no corredor direito,
admirando-te estafado, exausto,
mas com o espírito levantado.
No estádio os espectadores de 1934
julgavam-se pessoas como as outras,
mas depois do teu golo mundial — solene
sobressalto no centro — guardaram o bilhete
de ingresso, convencidos de terem entrado também eles
(finalmente!) na História.
Angelo Schiavio (1905-1990). Avançado. Vestiu a camisola do Bologna e teve fama de grande concretizador. Foi 22 vezes internacional, marcando 15 golos. Na final do campeonato do Mundo de 1934, Schiavio concretizou o golo decisivo contra o grande guarda-redes checoslovaco Planicka, cinco minutos após o início do prolongamento. Essa gloriosa partida foi também a última de Schiavio com a Selecção.
Marco Van Basten
Aventuroso piloto da raf
radiante após incursões
sobre o canal da Mancha.
Descido do velivolo
entregas-te ao «Daily News»
que comenta a audácia
na pessoa de Jim Sanders.
Pelos teus feitos europeus
valem as filmagens
e as vãs defesas antiaéreas do Benfica,
do Steaua e do Barcelona.
Nas rotas intercontinentais,
derrubas venenosas esquadrilhas
colombianas e de Asunción.
Contudo, ficas ferido,
mas já nem Marteens
(além dos santos) consegue fazer milagres.
Que estás pronto para o cinema
sabêmo-lo tu e eu.
Marco Van Basten (1964). O Ajax dos ovos de ouro produz carradas de talentos. Avançado extraordinário, durante cerca de dez anos o melhor em absoluto. Campeão da Europa com a Selecção holandesa em 1988, triunfou na Europa e no mundo com o AC Milan. Autor de golos extraordinários, em particular aquele que realizou com uma volée na final europeia de 1988. No seu sorriso fora do campo entrevi uma cara de piloto, de actor, ou de «craque» dos céus.
Marteens é o famoso médico ortopédico que operou o tornozelo de Van Basten na tentativa de o devolver ao mundo do futebol.