Num destes fins-de-semana fui acossada por coincidências com marcadores de livros. Num suplemento literário, li sobre o livro Breve Historia del Marcapaginas precisamente no mesmo dia em que encontrei um bilhete de entrada amarelado para o jardim do Palácio dos Marqueses de Fronteira, esquecido em 1998 entre as páginas do livro Less Than One, de Joseph Brodsky. No dia anterior, sorrindo com as recordações dos utilizadores da rede de bibliotecas itinerantes da Gulbenkian, tinha-me lembrado de repente, com uma nitidez extraordinária, de encontrar um marcador com um desenho de Amadeu de Souza-Cardoso dentro de um livro requisitado numa dessas bibliotecas.
De certo modo, um marcador de livros é um objecto reconfortante, associado à ideia de que, aconteça o que acontecer, podemos regressar à leitura, recuperando o momento exacto em que a interrompemos. Num livro que traduzi no ano passado, o protagonista é descrito como um vento frio que entra pela casa dentro, folheando os volumes deixados abertos e assim fazendo os leitores perderem o lugar onde tinham parado de ler. A alguém que recorra a um marcador, contudo, só dificilmente isso poderia acontecer. Seria preciso um turbilhão, um tremor de terra que arrancasse os livros das estantes, um vento com um sopro tão forte que invadisse os livros do mundo e os fizesse perder os conteúdos, para o leitor se perder da leitura.
Usar um marcador de livros é uma demonstração de interesse no futuro, um encontro marcado com a leitura, uma manifestação do desejo de a retomarmos sem perdermos tempo à procura da última frase que lemos. Mas, apesar de, graças aos marcadores, recuperarmos o momento em que interrompemos a leitura, não nos recuperamos a nós. Um dia, reabrindo por acaso o livro, encontramo-nos a nós mesmos quando encontramos o marcador, mas não conseguimos voltar a ser essa pessoa. Na Fonte dos Livros, em Roma, a água jorra das fitas que marcam as páginas dos livros; também dos marcadores que encontramos dentro dos nossos livros jorra o tempo.
Não consigo lembrar-me do título do livro da biblioteca da Gulbenkian em que achei o marcador com o desenho de Amadeu, mas procurei, e localizei, esse desenho no site da Gulbenkian. Parece-me menos nítido do que a imagem do marcador que tenho na memória, como se o lápis do artista se tivesse apagado com o tempo.
Recordo distintamente o momento em que encontrei esse marcador: de imediato imaginei a pessoa que o teria deixado no meio do livro. Devia ser muito diferente de mim. Talvez estivesse naquele momento à procura dele, sem conseguir encontrá-lo, mas também poderia ter deixado ali aquela oferta para algum habitante de terras inóspitas e distantes, em que não só não havia museus como também nada se passava. Pensei que um dia gostaria de ser uma pessoa como o leitor que usava marcadores de livros assim.
Olhando para o desenho agora, a figura feminina de ar exótico, com cabelo apanhado e argolas, parece-me uma letra de um alfabeto estranho. Suspeito, além disso, que mais tarde a posso ter reencontrado, sem saber, nas festas bizarras de A Confissão de Lúcio ou de alguns contos de Mário Sá-Carneiro. Podia ser uma daquelas mulheres de unhas douradas que, segundo o narrador, lembravam os lagos onde entravam descalças.
Em A Confissão de Lúcio há uma personagem que fala, por um lado, da incapacidade de se ver no seu próprio futuro e, por outro, da sensação do “já visto”, a reminiscência vaga de já ter estado onde nunca esteve. Acontece algumas vezes sairmos do nosso tempo ou não nos situarmos, não nos orientarmos, nele. Pode suceder estarmos pela primeira vez em sítios onde viveremos no futuro, mas sentirmos que já estivemos ali, em vez de adivinharmos que, na realidade, estamos onde havemos de estar. Percepcionamos o futuro enquanto passado, ou como substância opaca que não conseguimos ler. O passado, mais tarde, revela-se um território cheio de pistas e prenúncios que nos escaparam. Somos leitores distraídos, pouco competentes. Também por isso precisamos de marcadores.
Os marcadores são uma espécie de emissários do futuro e do passado, com informação sobre quem fomos e sobre quem vamos ser ou conhecer. Reencontrados anos depois entre as páginas dos nossos livros, perguntam: “Estavas aqui, mas por onde andaste entretanto?”, “Percebeste bem o que estavas a ler?”
Abrir o livro de Joseph Brodsky e encontrar o bilhete de entrada no Palácio dos Marqueses de Fronteira foi como ver um desenho pouco nítido, uma personagem, ou uma palavra dúbia, em que temos de pensar bem para perceber as funções que desempenha. Há palavras e personagens assim: podem ser associadas a várias categorias, são difíceis de definir, nos dicionários preenchem várias páginas só com enquadramentos e exemplos de uso. Aos vinte e quatro anos, naquela manhã quente no jardim, eu era uma palavra mal flexionada. Ainda não tinha chegado ao género feminino: achava que ninguém podia impedir-me de fazer nada.
Será que nos interrompemos a nós mesmos como interrompemos a leitura de um livro? O bilhete de entrada no jardim permaneceu dentro das páginas, mas aquela pessoa desapareceu aos poucos, como um desenho traçado a lápis demasiado leve. Mais de vinte anos depois, vivo na cidade onde então só passava férias, mas na altura não suspeitei que estava onde haveria de estar.
Numa entrevista recente, quando perguntaram à artista Roni Horn o que a inspirava, ela respondeu: um pensamento inesperado, um mal-entendido, uma coincidência, um erro, um momento que se distingue dos anteriores. São sempre casos em que alguma coisa nos faz pensar de modo diferente ou interrompe a sequência linear do quotidiano.
Uma coincidência é uma repetição que parece conter em si algum significado, como se houvesse um princípio de organização da realidade escondido que, com alguma reflexão, pudéssemos desvendar. Há tantas repetições no universo, que o mais extraordinário não são as coincidências, mas sim o facto de não repararmos nelas. Os investigadores que estudam as coincidências observam que se há pessoas a quem estas parecem acontecer mais frequentemente, é porque estas simplesmente prestam mais atenção. Por exemplo, pessoas religiosas, pessoas dadas à auto-análise, pessoas interessadas em fazer sentido, leitores.
Folheando o livro de Brodsky, percebi entretanto que tinha deixado os últimos dois ensaios por ler. Pouco antes do fim do último ensaio, Brodsky cita uma frase do pai: “Quanto a mim, preferia morrer imediatamente nas chamas do que sofrer uma morte lenta e descobrir sentido nesse processo.” O pai de Brodsky falava da morte, mas nós, enquanto tivermos a vida para resolver, continuamos suspensos das teias de sentido que segregamos, pensando ler.
Frustrado pelo facto de não conseguir produzir uma teoria unitária capaz de explicar o sentido das coincidências e de abranger toda a diversidade destas, Jung compara-as com os antigos gabinetes de curiosidades, onde convivem fósseis, conchas e criaturas imaginárias. São mais ou menos assim os acontecimentos da nossa vida: só fazem sentido quando os colocamos lado a lado. As coisas da vida repetem‐se com diferenças que às vezes pensamos compreender.