Ainda fará sentido, no século vinte e um, falar-se de província? Parece um tópico oitocentista e novecentista. Nessa altura, por província, entendia-se um espaço física e culturalmente afastado dos centros urbanos, habitado por pessoas pouco expostas a tendências culturais e civilizacionais importantes e, portanto, retrógradas, ignorantes e pouco tolerantes. (As descrições idílicas da província sempre foram irónicas ou ingénuas.)

Com a Internet, no entanto, a noção de província perdeu a relação decisiva com um espaço físico — mesmo vivendo num lugar remoto, ninguém deixa de ter acesso, pelo menos virtual, a manifestações culturais importantes, se o desejar. Por isso, a Internet intensificou a relação do conceito de província com um espaço mental. Viver na província é cada vez mais uma questão de atitude. Ter mais contacto com a diferença (interesses e modos de vida distintos) não tornou todas as pessoas mais tolerantes. Persiste na «província do século vinte e um» a ideia de que alguns podem decidir como os outros devem viver, mesmo, ou sobretudo, quando o modo de vida dos segundos não prejudica de modo algum os primeiros.

As dificuldades conceptuais do tópico mantêm-se. «Província» é um termo depreciativo e relacional, definido por contraposição a uma suposta não-província. Contudo, há um certo provincianismo na classificação de um espaço diferente do centro como «província». O conceito de província contamina qualquer não-província que se classifique como tal, na medida em que esta classificação deriva da mesma sensação de superioridade moral em face da diferença que caracteriza a província e o provincianismo. Acrescente-se que nenhum juízo depreciativo da não-província em relação à província convence ou humilha a província, tal como nenhuma avaliação negativa proposta pela província preocupa a não-província, visto que a província partilha com a não-província a noção de que é melhor do que o que se distingue dela. Para a província, os não-provincianos são bacocos e pretensiosos; para a não-província, os provincianos são tacanhos e atrasados.

Além disso, entre as pretensas não-províncias haverá sempre aquelas que, considerando-se mais cosmopolitas do que as outras, descrevem as segundas como províncias: por exemplo, em Portugal, Lisboa não se descreve como província, mas não seria de espantar que pessoas de Nova Iorque ou Londres descrevessem desse modo a capital de Portugal. Assim, quase todas as não-províncias são lugares imaginários — aspiracionais.

Mais complicado ainda, encontramos províncias nos espaços mais urbanizados — grupos, elitistas ou não, orgulhosamente retrógrados ou supostamente avançados, totalmente cegos e fechados ao que lhes é exterior, onde todas as relações são vigiadas e nenhuma discrepância é tolerada, precisamente como acontecia na província física dos séculos dezanove e vinte.

O próprio terrorismo, aliás, pode ser visto como uma espécie de provincianismo exacerbado, levado a cabo por grupos que, tal como na província de antigamente, tentam esmagar e destruir qualquer diversidade. A diferença é que, enquanto na província a pressão era social, sendo exercida pelo grupo maioritário, geralmente os grupos terroristas são minoritários no contexto onde actuam e por isso recorrem a meios violentos e à destruição para manifestarem a sua presença.

Recentemente, lendo o capítulo dedicado a Hopper no livro Lonely City, de Olivia Laing, recordei a imagem que, no século vinte, quando eu própria vivia na província — no tempo em que a província ainda era um espaço geográfico concreto —, encarava como uma espécie de arquétipo do que a antiprovíncia poderia ser: o quadro Nighthawks (a tradução portuguesa mais conhecida é Noctâmbulos).

Nighthawks, Edward Hopper, 1942 (Art Institute of Chicago).

Nighthawks, Edward Hopper, 1942 (Art Institute of Chicago).

Ainda hoje me comove o carácter absolutamente gratuito da cena representada pelo artista americano. Fica-se com a ideia de que aquelas figuras, que tanto podiam estar ali como noutro lado, passaram por aquele bar e entraram ou têm o hábito de o fazer. Não há troca de palavras nem de olhares. As pessoas estão de passagem, depois do trabalho ou antes de irem trabalhar. Parece haver só elos casuais, pouco decisivos entre elas. Para elas, não há justificações a dar.

Neste quadro e na obra de Hopper em geral, Laing destaca a incerteza das figuras humanas sobre serem vistas — o risco de passarem despercebidas, serem ignoradas, serem esquecidas, não darem nas vistas, não serem consideradas.  Para esta ensaísta, esse é um dos aspectos mais inquietantes e desumanizadores da circunstância de se viver na cidade, uma experiência que a autora descreve como profundamente solitária e alienante. Quem já viveu na província, contudo, poderá considerá-lo uma das maiores vantagens da vida urbana, precisamente por ser o contrário do que se passa num lugar onde todas as vidas são escrutinadas até ao mais ínfimo pormenor — essa, sim, uma experiência verdadeiramente sinistra.

A autora de Lonely City descreve como uma falta a ausência ou pobreza de conexões, proximidades e afinidades, mas na província só há conexões, todas as pessoas são definidas em relação a outras. Quem tente escapar às conexões é condenado, como se nada pudesse fazer para contrariar um destino programado muito antes de nascer, pelos erros e acasos nas vidas dos antepassados. É que não se passa grande coisa na província: se não se entretiverem a comentar as vidas umas das outras, por muito banais que estas sejam, as pessoas ficam sem nada para fazer.

O dramaturgo David Hare comentou certa vez que a grande vantagem de se ter nascido na província é tudo parecer interessante depois de se ter vivido lá. Segundo Hare, visto que uma das componentes da depressão é o desinteresse por tudo, só a muito custo alguém que nasceu na província poderá ser depressivo se for viver para outro lado. Eu, no entanto, quero acrescentar que, ainda que tudo o que se viva depois de se fugir da província possa ser mais interessante do que a vida que se teve lá, não é possível esquecer a província: tudo o que acontece depois é pálido em comparação com o que não aconteceu lá.

Anos depois de folhear melancolicamente o livro sobre Hopper no meu quarto na província, havia de reencontrar a figura feminina ruiva do bar de Nighthawks, a seguir a uma sessão de cinema, num sítio do Porto com algumas semelhanças com o bar de Hopper. A meio da tarde, uma senhora de certa idade comia um gelado colossal, que acompanhava com sangria. A dada altura, pousou a cabeça sobre o balcão e o empregado aproximou-se para verificar se ela se sentia bem. Ela respondeu que sim. O empregado afastou-se amavelmente, sem a incomodar.

Seria uma personagem de Hopper ou uma espécie de fantasma do futuro? Tenho pensado que não bastam momentos de suspensão e desconexão na vida das pessoas. De vez em quando é preciso viver num lugar habitável — mas sem nos instalarmos nem numa província nem numa não-província, se pudermos evitá-las.

faca de papel #3

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