Numa entrevista antiga, a cantora Joanna Newsom conta que, durante a adolescência, costumava enfiar pedras nos bolsos para poder caminhar no fundo do rio. Em certas pessoas, no entanto, o peso do silêncio é tão grande, que, se mergulhassem nas águas, facilmente iriam ao fundo sem precisarem de pôr pedras na roupa ou de as coser nos bolsos, como teria feito Virginia Woolf.

Penso nisto enquanto leio Histoire du Silence, de Alain Corbin. Neste livro, uma espécie de pequena compilação comentada de frases sobre o silêncio de vários escritores, achei mais interessantes algumas tentativas de explorar a hostilidade e os perigos do silêncio do que as suas descrições favoráveis, a que estamos mais habituados.

Ao silêncio, mais cedo ou mais tarde, todos havemos de chegar, mas enquanto estivermos vivos este nunca poderá ser completo. Quem já esteve em câmaras anecoicas explica que mesmo lá dentro há um ruído inescapável: o som do nosso próprio coração. De certo modo, vivemos sempre contra o silêncio.

Já se escreveram muitas páginas a defender o silêncio. Aparentemente indiferentes ao paradoxo de usarem palavras para defender este ponto de vista, livros inteiros sugerem que o silêncio seria preferível às palavras.

Em tempos de barulheira generalizada, defender o silêncio pode parecer essencial para se poder pensar, e não duvido de que se deseje o silêncio se já se teve demasiadas palavras desnecessárias, mas nem sempre o silêncio é uma escolha. Para algumas pessoas, em particular, é uma herança com que todos os dias têm de se debater. Para estas, os dias só existem se conseguirem arrancá-los ao silêncio — por vezes um silêncio cheio de palavras, mas todas elas como que surdas-mudas, por articular. Foram ensinadas a calar-se, supostamente para seu próprio bem.

Numa das citações registadas no livro de Corbin, Catão observa que quem se cala não corre perigos, mas não é bem assim. Sem dúvida, o silêncio é mais seguro para quem manda calar, mas não sei se há perigo maior do que perder a vida por não se ter usado as palavras. Numa vida de poucas palavras, como saber realmente o que se pensa ou se pode pensar? Abdicar das palavras ou aceitar que nos mandem calar implica tolerar uma existência que outros escolhem para nós. É ser um observador não-participante na própria vida, absorvido numa história sem narrador nem leitores, tão ininteligível aos outros como a nós mesmos.

Agora, embora ainda haja muita gente que se espanta quando alguém antes silencioso protesta, as pessoas são educadas para falar, não para ficarem caladas. Em contraste, algumas secções do livro de Corbin recordam os tempos em que o silêncio era descrito como bem estratégico e, às vezes, enquanto sinal de distinção para os interessados na ascensão social.

Corbin não comenta, contudo, que nem toda a gente era educada para o silêncio. Aqueles que aconselhavam os outros a calar-se tinham liberdade de falar. Os mais poderosos eram educados não só para falar mas também para explicar aos outros se estes deveriam ou não fazê-lo, e como deviam fazê-lo. Se defendiam o silêncio, era por saberem que assim seriam mais facilmente ouvidos.

A aprendizagem do silêncio fazia-se por prudência, por subserviência, mas também por ambição. Alguns julgavam, muitas vezes justificadamente, que só dessa maneira poderiam sobreviver e proteger o que amavam, outros aprendiam a calar-se por sentirem alguma vergonha de quem eram — para não serem bem quem eram.

Sinto muitas vezes que venho de um tempo tão cheio de arcaísmos que, ao longe, parece quase mitológico. Era um tempo em que algumas famílias simplesmente suprimiam o vocabulário para articular determinadas dificuldades. Não era difícil falar só no presente; também as palavras do passado e sobre o passado deviam ser vigiadas, ao ponto de se considerar aconselhável destruir pelo fogo todas as que pudessem restar e ser encontradas. Nessa época havia coisas que não se diziam — e essas coisas eram precisamente as mais importantes para nós.

As pessoas do tempo e do lugar de onde venho ficavam preocupadas quando viam alguém ler livros — e com razão. Quando começamos a ler, constatamos que alguns disseram o que pensavam; esses disseram o que não se deve dizer. Ler é uma forma de adquirir o vocabulário do que não nos deixaram dizer.

Neste aspecto, as obras de Thomas Bernhard são um manancial admirável. Às crianças que têm descontrolos emocionais, alguns pais recomendam: usa as palavras. Bernhard escreve dessa maneira; para ele, usar as palavras é o sinal de fogo que anuncia que ainda não conseguiram neutralizá-lo. Num dos momentos mais importantes da sua Autobiografia, logo no início da terceira secção, o autor descreve o momento da juventude em que, no hospital com uma doença gravíssima, «já fora dado por perdido». Bernhard explica que nesse ponto fez uma escolha decisiva — a de viver. A partir desta passagem compreendemos totalmente a atitude deste escritor em face não só da vida mas também das palavras: Bernhard parece sempre às portas da morte quando escreve, as repetições e as insistências lembram alguém que respira a custo, mas resiste. Para ele, a escolha entre o silêncio e as palavras é uma questão de vida ou de morte. Bernhard diz o que precisa de dizer para se manter vivo.

Quanto a mim, toda a vida trabalhei, de formas diferentes, com palavras, mas dominar um vocabulário não basta. Quando comecei a traduzir regularmente, compreendi melhor o papel do silêncio. Desde então encaro uma família como um conjunto de problemas de tradução. Para traduzir precisamos tanto das palavras que nos disseram como do que não foi dito. Trabalhamos com o que não compreendemos imediatamente mas sabemos que não pode ser ignorado. Quando traduzimos uma família, falamos com os mortos, usando a linguagem que nos transmitiram. Uma tradução, no entanto, faz-se muitas vezes com vocabulário que não nos legaram e por vezes só adquirimos ao traduzir. Exige as palavras que nos recusaram e tivemos de recordar ou recuperar, além do novo vocabulário que vamos adquirindo sozinhos.

Sobre vocabulário, a tradutora italiana Susanna Basso escreveu que uma das maneiras mais interessantes como os tradutores usam os dicionários é consultando-os não para aprenderem o que determinada palavra significa, mas sim tentando recordar esse significado que parece escapar-lhes. De acordo com Basso, os tradutores recorrem a um tipo especial de memória, através da qual se recorda aquilo que ainda não se sabe ou se pensa ignorar. Consultando o dicionário, vão assimilando as palavras até convocarem o sentido que lhes falta, compreendendo não por meio do que encontram nas páginas ou no ecrã, mas através do que não está lá. Cultivo este tipo de memória. O alfabeto dos dicionários que consulto foi desenhado por estas pessoas — os hábitos e os gestos mais comuns definiram o contorno das letras.

Li algures que, por mais que lhe façamos perguntas, o passado não fala. As pessoas estão mortas e nem quando estavam vivas se teriam manifestado, mesmo que lhes tivéssemos pedido. A verdade, no entanto, é que nunca como depois de mortas as pessoas da minha família foram tão eloquentes.

Somos o que não nos disseram e sempre fez parte de nós — mas também aquilo que já conseguimos dizer, contra o silêncio, através do novo vocabulário que vamos forjando e do vocabulário antigo que herdámos e recordamos. Usando as palavras, descosemos os bolsos.

Faca de Papel #6

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