Conta-se que a aguarela A Cama Desfeita, de Eugène Delacroix, já teve um grande número de proprietários diferentes, por nenhum deles ter conseguido mantê-la em sua posse durante muito tempo. Escondida entre os lençóis desarrumados, é possível encontrar ou projectar uma cabeça de Medusa que rapidamente se torna uma obsessão. Há até quem encontre mais do que uma. Estas possíveis cabeças de Medusa não me incomodam verdadeiramente. A minha dificuldade com A Cama Desfeita deve-se ao facto de convocar a memória de noites de insónia, de alguém a remexer-se desconfortavelmente, alguém que sente que, quanto mais deseja dormir, mais o sono se afasta.

A Cama Desfeita, Eugène Delacroix (1827).

A Cama Desfeita, Eugène Delacroix (1827).

Recentemente, numa exposição no CCB, encontrei outra representação interessante de insónia nas pinturas autobiográficas que Charlotte Solomon produziu para a série Vida? Ou Teatro? De acordo com Solomon, o acontecimento que marcou o início das suas insónias na adolescência foi o suicídio da mãe, um acto quase impossível de compreender. Nas imagens, Charlotte remexe-se na cama e vagueia pelo quarto e pela casa. Estes gestos e percursos representam os trajectos dos seus pensamentos, embatendo uns nos outros permanentemente, sem encaixarem.

No livro At the Borders of Sleep: On Liminal Literature, Peter Schwenger escreve sobre estados associados ao sono, relacionando-os com a actividade de fazer sentido. Schwenger faz notar que acontecem coisas estranhas nos pensamentos que temos antes de adormecer. Durante uma insónia, as coisas mostram como são quando parcialmente desligadas dos papéis que desempenham na vida de todos os dias. O repisar e o remoer das ideias acaba por pôr em pé de igualdade todos os acontecimentos, desde os do passado mais longínquo até aos mais recentes. Alguns elementos insignificantes e corriqueiros adquirem uma importância desmedida. Coisas que pareciam importantes revelam a sua impressionante irrelevância.

O que acontece aos pensamentos durante uma insónia é semelhante ao que acontece às palavras quando se trabalha em dicionários. Definir uma palavra, descrever, traduzir ou tomar em consideração as suas diversas acepções, reflectir sobre a sua gramática, ilustrá-la com exemplos de uso são actividades equivalentes às de quem se remexe na cama sem conseguir adormecer. No romance Aparição, de Vergílio Ferreira, uma personagem comenta que, quando repetimos muitas vezes determinada palavra, ficamos com a sensação de que esta é mero ruído. Do mesmo modo, quando trabalhamos em dicionários, o significado das palavras vai-se dissolvendo até estas se reduzirem ao seu som ou à sua transcrição ou mancha gráfica.

Trabalhei em dicionários  a tempo inteiro durante dez anos. Depois de ter passado o dia imersa nessa actividade repetitiva e cansativa, seria de esperar que o pensamento se ocupasse com outros assuntos, mas durante a noite a minha cabeça continuava a repetir as operações do dia. Aliás, por vezes, depois de finalmente adormecer, eu sonhava com os mesmos gestos e associações mentais, como se tivesse deixado para trás uma lacuna grave ou um erro escusado que nunca conseguia corrigir.

Nessa época chegava a casa com a cabeça a zumbir com os murmúrios gratuitos das palavras, como se de abelhas em fuga da colmeia. Escrevia muitas coisas a lápis em folhas quase transparentes. Desde então essas palavras esbateram-se e tornaram-se praticamente ilegíveis. As palavras limitavam-se a usar-me para concretizarem um desejo importante: não irem a lado nenhum. Entregue a si própria, a linguagem não faz sentido: não quer dizer nada.

Em O Espaço da Literatura, Maurice Blanchot explica que se alguém quiser fazer sentido com a linguagem tem de silenciar ou baixar o volume da tagarelice das palavras. Schwenger compara este passo com o de tapar a entrada de um túmulo com uma pedra. E eu concordo que só se consegue escrever quando a linguagem se distrai e adormece — e, mesmo assim, com cuidado, porque a linguagem tem sono leve.

Depois de ter tapado o túmulo, durante muito tempo não pensei em dicionários. Quando agora penso neles, lembro-me de um quartinho de arrumos nas águas-furtadas da casa dos meus avós.

Era uma divisão sem janelas que estava sempre fechada. Para se lá chegar, tinha de se subir por umas escadas íngremes em caracol. Só a minha tia e a minha avó tinham as chaves; eu podia entrar na companhia delas, mas só elas podiam abrir e manusear os conteúdos das caixas.

Neste espaço escondiam-se o passado e o futuro. Não era permitido ao presente imiscuir-se no passado e no futuro, nem o passado e o futuro podiam intervir no presente. Eu própria não tinha autorização para brincar ali sozinha, por elas recearem que eu desarrumasse tudo. Era um receio estranho porque elas pareciam não se lembrar bem do que tinham lá guardado.

A minha tia acumulava ali  tecidos, rendas e botões de que gostava — para um dia usar nas peças que costurava. A minha avó guardava uns poucos objectos desirmanados que tinha trazido de África quando tivera de partir à pressa. Não se podia falar sobre os objectos que tinham ficado para trás, mas nesta casa havia sempre uma jarra de flores junto a uma imagem de Santo António. Segundo a minha avó, se rezássemos a Santo António, ele ajudava-nos a encontrar os objectos perdidos. Por esse motivo, já me interroguei várias vezes se, com São Jerónimo, Santo António não poderia ser também uma espécie de santo padroeiro dos tradutores, que estes invocariam enquanto procuram febrilmente uma palavra ou expressão que conhecem ou intuem, mas não conseguem localizar.

Eu subia as escadas com dificuldade, agarrando-me ao corrimão, cheia de tonturas, até chegar à porta fechada. Depois só conseguia descer sentando-me em cada degrau e deslizando para o seguinte com cuidado, por causa das vertigens.

Um dicionário não é bem uma colecção. É mais como um repositório de tralha ou um conjunto desordenado de objectos que fomos guardando por acharmos ou que não estamos preparados para os perder ou que de algum modo um dia nos podem vir a ser úteis. Não seria difícil criar um alfabeto a partir destes objectos preservados, mas nem nos dicionários nem nos quartos de arrumos há sentido ainda. Só palavras e objectos isolados dos seus contextos habituais, alguns dos quais explicando ou referindo coisas que já não existem. As palavras dos dicionários são como abelhas desorientadas, que perderam a casa.

Como as abelhas antes de uma casa ser concebida para elas, a linguagem mora em lugares esconsos, sem janelas, quartos de arrumos, divisões vazias, secretas ou fechadas, por decorar ou à espera de obras; umas vezes, em túmulos mal fechados; outras, ao fundo de escadas que temos medo de subir ou que não conseguimos descer. 

Fazer sentido com as palavras será como vasculhar um quarto de arrumos em busca de alguma coisa que não nos pertence propriamente e só arrevesadamente herdámos, sem sabermos bem o que é nem termos a certeza se está lá? É um pouco como desarrumar um quarto de arrumos ou como remexermo-nos desconfortavelmente na cama, sem conseguirmos dormir, amarfanhando os lençóis e expondo o colchão, em busca de uma posição em que seja possível repousar, em vez de andarmos perdidos com as palavras por bosques de contos de fadas — ou pior, muito pior.

Faca de Papel #9

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