O que têm em comum Veneza e Vila do Conde, além de começarem com a letra V? Subitamente, em 2020, tornou-se viral um vídeo que mostrava Veneza sem turistas. Graças à ausência de pessoas, não só as águas de Veneza tinham voltado a ser cristalinas, como a vida selvagem regressara à lagoa e aos canais. Entre peixes e cisnes, foram captadas imagens de golfinhos.

Não há registo de avistamentos reais de golfinhos em Veneza: as imagens eram apócrifas. Em fins de Junho, no entanto, foi divulgado mais um vídeo com uma aparição inesperada e inédita de golfinhos – desta vez, em Vila do Conde, num Domingo de manhã. As imagens de Vila do Conde eram reais, mas o vídeo não se tornou viral. Os golfinhos imaginários causaram mais furor do que os golfinhos reais.

Pensei muito nas cidades de Veneza e de Vila do Conde quando nos proibiram de sair de casa. Em Veneza estive uma vez e jurei que voltaria; a Vila do Conde, cidade em que durante a infância e a adolescência passei muitas vezes férias de Verão, costumo regressar – não só no Verão, mas também depois do Natal, por nesses dias ter muitas vezes aí encontrado a luz mais bela do ano, indo a pé pela marginal até à Póvoa durante a tarde.

Em Vila do Conde, quem viu os golfinhos disse que eram nove. De acordo com a notícia, foram avistados e filmados por alguns incautos que passeavam, corriam ou pescavam junto ao rio. Quando vi estas imagens, sabendo que este ano seria difícil voltar a Vila do Conde, imaginei imediatamente como seria estar sentada num banco à beira-rio, levantar a cabeça e ver de repente aqueles golfinhos. Estiveram ali cerca de meia hora, junto à foz do Ave, deixando-se fotografar e filmar. Depois foram-se embora, provavelmente satisfeitos com o impacto causado.

Para lá destas imagens virtuais, entre as minhas memórias de Vila do Conde, tenho uma colecção incipiente de memórias dúbias. Todos os anos, mal dormia na primeira noite de férias que passava em Vila do Conde, estranhando a cama e ouvindo o sino bater quase todas as horas até ao nascer do dia. Conta-se que houve um ano em que, no dia seguinte, saí de casa de madrugada e atravessei a rua para ver o mar. Eu tinha seis ou sete anos e o meu pai ficou muito espantado quando, entrando na cozinha às sete da manhã para preparar o pequeno-almoço, me viu chegar sozinha da praia.

Além desta recordação que não é totalmente minha, acumulo uma ou outra descrição perdida. Uma carta enviada a uma amiga em que descrevia apaixonadamente uma manhã de nevoeiro na praia, entre as carroças dos sargaceiros e os barcos tortos recolhendo algas no mar. Os sargaceiros pareciam criaturas mitológicas. Que será feito dessa carta? Não guardei cópia nem rascunho. Escrevia-se à mão na altura.

E há também a descrição daquela noite, alguns anos depois, em que enfrentei a nortada ao fim do dia para assistir a um concerto dos Gabrieli Consort & Players numa igreja da Póvoa. Música aquática, de inspiração veneziana. Quando regressei ao hotel, escrevi várias páginas, mas por onde andará esse diário, se é que chegou a existir? Palavras irrecuperáveis.

No fim da adolescência, imaginei muitas vezes que no futuro viveria em Vila do Conde. O nosso temperamento pode precisar de mais aventuras do que pensávamos, mas nunca esqueci essa versão ligeiramente diferente de mim. Durante as férias percorro o cenário dessa vida que não cheguei a viver. Muitas vezes me sento no banco de jardim de onde poderia ter avistado os golfinhos se lá vivesse e recordo os outros momentos em que passei ali tempo, a fazer horas antes do cinema ou esperando a abertura da Feira do Livro que dantes se realizava ali.

Tenho – temos – sempre muitas coisas do passado em que pensar. Por passarmos mais tempo em espaços fechados, o ano de 2020 tem sido pródigo em circunscrições e sobreposições de espaços e tempos diferentes. Às vezes, as coisas que não aconteceram confundem-se não só com as que aconteceram mas também com as que não temos a certeza de terem acontecido. Há golfinhos imaginários que se convertem em golfinhos reais e promessas do passado que percebemos de repente que se traduziram ou concretizaram noutros lugares.

Na realidade, este texto é sobre três cidades. No Verão de 2020 não pude ir a Vila do Conde, nem a Veneza, nem a lado nenhum. Tive de ficar em Lisboa, mas num dos primeiros dias depois do confinamento fui ao cinema. Apesar de raramente andar de carro em Lisboa, nesse dia regressei a casa de táxi. A cidade continuava vazia, reinava uma atmosfera de melancolia que ainda não se dissipou, o taxista não disse uma única palavra e conduziu muito devagar.

Rua Garrett, Calçada do Sacramento, Calçada do Carmo, Rua Primeiro de Dezembro, Praça dos Restauradores, Avenida da Liberdade. De repente, foi como se, levantando a cabeça, tivesse visto não golfinhos, mas a mim mesma, de relance, a dobrar uma esquina, toda despenteada, de cabelo ao vento, com muitas coisas para fazer. Rotunda do Marquês do Pombal, Avenida Fontes Pereira de Melo, Praça Duque de Saldanha, sempre em frente. Depois de quase quinze anos a viver em Lisboa, a sentir falta das brumas e dos nevoeiros do Norte e a queixar-me da luz ofuscante, compreendi que, se tivesse de viver noutro lado, sentiria falta de Lisboa, como senti falta do Porto quando deixei de lá viver.

O passado imagina o futuro e o futuro retribui essa imaginação, fantasiando com o passado, mas nem sempre nos lembramos de que é preciso imaginar o presente. Entre as coisas que não aconteceram e aquelas que não temos a certeza de terem acontecido, imiscui-se o presente, e este, quer queiramos, quer não, assume-nos todos os dias, com ou sem imaginação.

Os que sofrem de insónias ou costumam ler artigos e livros sobre o sono já devem ter ouvido falar dos quatro cronótipos (isto é, perfis de sono, padrões individuais da actividade circadiana) que Olivia Arezzolo distingue, associando cada um deles a um animal. Entre os ursos, os lobos e os leões, os golfinhos são os que têm o sono mais leve; mesmo quando dormem, estão meio acordados. Mas onde terei ouvido pela primeira vez a música “Dolphins” cantada por Tim Buckley? Na letra de Fred Neil fala-se de coisas que não mudam ou nunca hão-de mudar e da necessidade de paz, só que a ligação com o refrão é tão dúbia!

No Verão deste ano, embora tenha dormido mal, não procurei golfinhos, ainda que não seja invulgar eles aparecerem em Lisboa. Ouvi as cigarras – nos dias de maior calor quase sempre mais ruidosas do que o trânsito e os aviões. Passei algum tempo a ler numa varanda virada a norte, onde costumo ser saudada pelos crocitos de uma ave misteriosa que deve morar num dos andares mais altos do prédio em frente. Passeei pelo Jardim do Campo Grande tentando a custo entrever os escassos patos dos lagos e sonhando com as largadas de cisnes de outrora. Nesta zona da cidade e em Alvalade reparo muitas vezes em pormenores que me lembram Vila do Conde – certas árvores, algumas casas, o correr do tempo.

No piso escorregadio e pegajoso da calçada portuguesa de Lisboa, não encontro ainda os alfabetos, as mensagens e as correspondências que José Cardoso Pires diz reconhecer, mas naquele táxi percebi que, apesar de ainda não ter decifrado a cidade com os passos, ela há muito me soletra a mim.

Sobre Veneza, não costumo escrever, porque é um daqueles lugares do mundo onde me senti feliz sem qualquer justificação e contra todas as evidências. Talvez tudo o que vivemos e escrevemos não seja mais do que traçar círculos em torno de felicidades tão inexplicáveis que às vezes duvidamos delas. E embora escrever sobre outras cidades seja muitas vezes escrever sobre Veneza, escrevemos sobre outras cidades e vivemos nelas para não escrevermos sobre Veneza, para não regressarmos a ela, e assim podermos ser felizes ou infelizes com sentido, frases gramaticais e justificação.

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