Em 1789, o botânico americano William Beal, querendo saber durante quanto tempo determinadas sementes poderiam continuar viáveis sem serem cultivadas, encheu vinte garrafas com sementes envolvidas numa mistura de areia e enterrou-as. Para este estudo de viabilidade, de cinco em cinco anos desenterraria uma garrafa e plantaria as sementes lá preservadas. Mesmo depois da morte de Beal, os botânicos da universidade em que trabalhava foram passando a palavra sobre a localização secreta das garrafas — e a experiência ainda hoje continua. Até agora, as sementes não deixaram de dar origem a plantas.
Em garrafas ou frascos fechados, mas com terra e sementes já germinadas no interior, os terrários contêm plantas que vivem felizes durante vários anos sem serem regadas. A luz é a única coisa que recebem do exterior. As plantas não podem sair porque a garrafa está hermeticamente fechada, mas a humidade que segregam é suficiente para vicejarem.
Alguns terrários lembram selvas em miniatura, mas bem delimitadas, observáveis, quase decorativas, susceptíveis de vigilância. De fora, podemos passar várias horas a olhar para eles e a devanear sobre as diferentes plantas entre o musgo, naquela atmosfera autónoma, circunscrita e protegida. Pensamos sobre como as plantas terão sido seleccionadas e inseridas nas garrafas, sobre como viveriam e se distinguiriam se estivessem fora do terrário, sobre a proximidade de espécies, a intensidade do verde, sobre a própria terra parecendo mais terra por estar húmida. Mas os nossos pensamentos embatem no vidro e não conseguem entrar.
Entre as conversas escutadas na infância que nos acompanham durante toda a vida sem que as compreendamos inteiramente, ultimamente tenho-me lembrado de um episódio relacionado com terrários potenciais, que nunca chegaram a existir. As minhas tias tinham umas garrafas grandes, transparentes e vazias no quintal. Estavam ali há muito tempo, sem ninguém se interessar por elas. E quando um dia alguém se lembrou de as pedir para fazer terrários, as minhas tias responderam que preferiam que as garrafas continuassem vazias. As garrafas continuaram intactas e imóveis até à morte delas, até a própria casa ficar vazia e para lá disso. É possível que ainda hoje lá continuem, no quintal — a casa já foi vendida e não posso regressar para confirmar.
Já alguém salientou que os bons pensamentos são aqueles que embateram no vazio e tiveram de começar do zero. O pensamento é o que acontece quando a casa está vazia. Que o diga quem já chegou a uma casa vazia esperando encontrar quem costumava estar lá dentro. Os frascos, as garrafas e as casas dão forma ao vazio. Na origem, somos seres contidos.
Aos jardins que poderiam ter existido dentro dessas garrafas, as minhas tias preferiram o vazio, um vazio de balões de banda desenhada sem palavras. Ou então talvez houvesse selvas invisíveis dentro dessas garrafas, que só as minhas tias viam, e preferiam esconder de toda a gente, por assim sentirem que as controlavam melhor. Num texto de conselhos de novo ano para pessoas ansiosas, lembro-me de ler uma vez que é boa ideia anotar as ansiedades em papéis e guardá-las num frasco colocado num lugar bem visível, como na secretária onde trabalhamos, para assim podermos vigiá-las.
Ao contrário de um terrário, a casa das minhas tias não só já não pode ser observada do exterior como também não era impermeável ao que estava fora dela. Não se pode portanto dizer que, à sua maneira, fosse uma espécie de terrário com possíveis terrários lá dentro. As estruturas em abismo são muito bonitas como mecanismo literário, mas é mais difícil encontrá-las na realidade do que se imagina.
Ironicamente, havia muitos frascos nessa casa das garrafas vazias em que, em fins do século XIX, tinha sido fundada uma farmácia. A farmácia tinha um laboratório cheio de frascos de vidro de diferentes cores e dimensões, uns cheios, outros a meio, alguns com etiquetas quase apagadas. Os frascos azuis, se não me engano, continham as substâncias mais perigosas. Proust comparou a memória com uma farmácia, onde umas vezes se encontra bálsamos, outras, venenos. Ia dizer que se calhar os escritores de que mais gostamos criam o mundo em que vivemos ainda antes de os termos lido, mas nem só os escritores sabem fazer frases. É possível que esta citação proustiana seja apócrifa afinal. Pode ter sido só alguém como eu a fabricá-la. São como letras, as sementes; dão origem a plantas, enquanto as letras dão origem a palavras. É irresistível fazer experiências com ambas ou tentar cultivá-las.
A propósito de laboratórios, lembro-me de uma fotografia do departamento de testes de uma empresa americana de sementes no início do século XX.
Há um século, as mulheres eram consideradas adequadas para actividades que exigiam precisão e atenção ao pormenor — tarefas supostamente menores. Uma das funções das funcionárias deste departamento era recolher cuidadosamente diferentes sementes e depois secá-las, preservá-las e catalogá-las. Faziam uma espécie de lexicografia das sementes.
Nesta fotografia, a mulher sentada à secretária está muito concentrada. Podiam ruir civilizações inteiras, que ela continuaria a classificar. Ao lado, tem uma janela que dá para a rua. O vidro parece fosco, mas, mesmo que fosse transparente, quase nada do que se passa na rua lhe chamaria a atenção. Em cima do balcão, junto à janela, há vasos e plantas parecidas com tubos de ensaio em que decorrem diversas experiências.
Aos terrários reais e imaginários, aos frascos de substâncias terapêuticas ou perigosas, aos tubos de ensaio e aos herbários, tenho de contrapor o jardim da minha avó — camponesa, não farmacêutica —, pelo facto de ainda hoje ser um espaço de surpresas. Há plantas que continuam por lá desde tempos imemoriais, como se costuma dizer quando alguma coisa parece mais poderosa do que a própria memória. Não precisam de manutenção; persistem simplesmente, mesmo que já ninguém as consiga classificar. Ocasionalmente, alguém de fora visita o jardim e identifica certos espécimes misteriosos com algum espanto, mas já ninguém sabe como foram ali parar, nem com que fim terão sido integrados no jardim.
Sem a jardineira, nem sempre é possível compreender e descrever imediatamente o jardim, mas, ainda que os jardins não se traduzam sozinhos, podem ser objecto de investigação e recuperação. E às vezes fazem perguntas sobre nós. Somos observadores, semeadores, investigadores, zeladores, lexicógrafos, tradutores, fazedores de frases ou escritores? Os nossos pensamentos estão em frascos, garrafas e casas vazias? Estamos do lado de dentro ou de fora das janelas? E, quanto ao musgo que nos rodeia, tapará os nossos nomes ou preenchê-los-á?