O que é pensar? É vivermos numa casa elegante e extraordinariamente bem decorada, mas passarmos o tempo a vasculhar no sótão, à procura de um berloque qualquer que ainda não sabemos que está lá.

James Richardson, Vectors

E a história daquela menina que vivia num sítio recôndito, noutro continente, mas, quando chegou à idade de ir para a escola, teve de vir para Portugal? Viajou de avião sozinha. Os pais não foram com ela. Naquela altura, não era muito raro as crianças viajarem desse modo. Ainda assim, imaginamos a inquietação.

A transportadora aérea destacava uma hospedeira para acompanhar essas crianças em trânsito. Além dessa desconhecida, a única companhia que a menina teve durante a viagem foi uma boneca de porcelana.

Recentemente, um museu publicou várias imagens dos raios X de bonecas, mostrando como são por dentro. O interior de uma boneca é escuro, com constelações complicadas de arames, parafusos e mecanismos estranhos, e às vezes uma caixinha de onde saem sons: choro, música ou algumas palavras.

Por dentro, a boneca de porcelana que viajou de avião era oca, por isso coube nela tudo o que a menina não reconheceu. Por fora, apresentava-se com um vestido azul de seda brilhante que lhe tapava os joelhos sem lhe prender os movimentos. Com aquele tom de pele, o azul e o verde eram cores que a favoreciam. Tinha cabelo cacheado. Usava os sapatos rasos de boneca que durante a infância muitas meninas tentam replicar. Poderia viajar assim interminavelmente, sem se incomodar.

As bonecas são como blocos de construção ou blocos para formar palavras com as letras do alfabeto com que encenamos, investigamos e deslindamos os primeiros mistérios. Personagens dos nossos primeiros pensamentos e das nossas primeiras histórias, dão-nos lições preliminares sobre a inércia da matéria, a sua resistência e o seu peso, o esforço monumental que tudo exige, embora às vezes pesando apenas aquilo que encaixámos nelas, sem sabermos que a felicidade está nas coisas mais leves.

Nem sempre conseguimos construir o que queremos construir. Se empilharmos demasiados blocos ou formarmos palavras muito compridas, há risco de desastre. Quando não se tem cuidado, depois é preciso andar à procura dos blocos com letras desaparecidas. E convém não desgastarmos as bonecas, se não queremos que um dia percam uma cabeça ou um braço. Infelizmente, não há hospitais de bonecas por toda a parte. 

Quando crescem, quase todas as crianças deixam as bonecas para trás como corpos estranhos ou ideias esquecidas. Esta boneca de porcelana, no entanto, nunca foi perdida. Acompanhou a menina durante toda a vida. Já adulta, apesar de a boneca estar preparada para viajar, ela mantinha-a bem protegida num armário fechado à chave e escondia a chave. De vez em quando, deixava os filhos brincarem com a boneca, mas por pouco tempo e sempre vigiados. Um grande desgosto da mãe era a boneca ter um lábio ligeiramente lascado. Se os filhos brincassem muito com ela, havia o risco de a danificarem um pouco mais.

Os filhos não queriam que a mãe guardasse coisas. Tinham aprendido a olhar com desconfiança para as coisas guardadas. Durante a maior parte do tempo que tinha livre, a mãe vasculhava as gavetas, os armários e o sótão à procura de alguma coisa — uma jóia, um documento importante — que geralmente nem sequer tinha desaparecido.

A mãe perdia coisas a pretexto de as guardar. Os fins de estação eram um pesadelo, quando era preciso trocar as roupas de Inverno pelas roupas de Verão. Ela nunca conseguia encontrar o que estava guardado. A casa tinha um sótão que era o repositório de tudo o que estava perdido — real ou imaginado, protegido ou nunca deslocado. A mãe subia ao sótão por uma escada íngreme e pouco segura. Entre os filhos, nem todos subiam por essa escada. Numa teimosa inversão da tradição literária da mulher escondida no sótão, havia quem ficasse sempre no chão.

Podia ser uma questão de vida ou de morte, a memória, mesmo a que fixava sem esforço todos os pormenores inúteis e insignificantes. Era a diferença entre ser invadido pelo caos daquelas buscas e perceber que não se situavam bem na realidade. O que era a realidade? A realidade talvez fosse o sítio em que se sabia sempre onde as coisas estavam. Pelo contrário, o sótão era labiríntico e difícil de percorrer mentalmente, cheio de compartimentos ocultos, com coisas que não se esperaria encontrar ali. Haveria ratos? Corujas? Morcegos? Outros animais que saem disparados?

Naquele tempo, ainda se usava um sinónimo ligeiramente depreciativo do verbo «pensar»: de acordo com a avó, que já não vivia noutro continente, a mãe passava o tempo a «cismar». É um verbo que aparece nos poemas de Florbela Espanca. Cismar é o que acontece quando o pensamento não vai a lado nenhum. Em vez de progredir, o pensamento repisa e repete, sem conseguir avançar. Quem cisma não encontra o que não perdeu, mas continua a insistir. Se pensar é procurar coisas que não sabemos que estão lá, cismar é procurar coisas que sabemos onde estão.

Agatha Christie com as bonecas Phoebe e Rosalind, 1898. Fotógrafo desconhecido.

As bonecas não cismam. São o contrário da insónia, o contrário do pensamento e o contrário da memória. Adormecem logo que se deitam. Não pensam em nada. Não se recordam de nós, nem sequer dos que sofrem de excesso de memória. Mesmo assim, são uma espécie de especialistas em repetição: repetem feições e nomes, geração após geração. De tanto as acompanharem em todas as aventuras, tornam-se parecidas com as crianças a que pertencem. Mais tarde dir-se-ia até que há semelhanças entre elas e os filhos dessas crianças já adultas.

Num conto de Yasunari Kawabata, a protagonista nota que, tentando pintar o retrato da mãe, só alcança resultados satisfatórios quando esse retrato começa a parecer um auto-retrato. Nem todos queremos encontrar as nossas mães no nosso retrato, nem todas as mães querem ser encontradas aí. Apesar disso, os retratos são como uma música; repetem a mesma expressão pálida e fantasmagórica, o cabelo e o olhar ensimesmado.

Não se pode fazer nada contra a repetição. Não temos uma palavra a dizer nem sobre o que repetimos nem sobre o que repetem de nós. Umas coisas não conseguimos guardar, outras não conseguimos perder. Mesmo sabendo onde certos objectos estão, continuamos a procurá-los. De vez em quando, encontramos o que não pensávamos ter. Construímos sem os blocos de construção que alguém perdeu ou guardou em sítios que nunca quisemos alcançar.

Por exemplo, não era nada disto que eu queria escrever. Escrevi com as letras que consegui localizar. O que eu queria dizer, e outro escreveu por mim, era que as mães estão sempre tão perto dos filhos, que é como se vivessem na pupila dos seus olhos. Os filhos não as vêem, não as encontram, não sabem onde elas estão, mas tudo o que vêem a mãe vê também. Em latim, «pupila» significa «menina» ou «boneca».

Faca de Papel #14

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