Na recensão de uma biografia que saiu há algum tempo, leio que determinado escritor, quando trabalhava como escriturário, copiava ou fazia a contabilidade com letra bonita, mas sonhava escrever textos originais. Tendo em conta que vários escritores e personagens literárias tiveram profissões semelhantes, vamos chamar-lhe R. W. Só quando este quase alegórico R. W. passou  a escrever a lápis com uma caligrafia minúscula e quase ilegível, em fragmentos de papéis que tinham desempenhado outras funções, começou a consolidar a sua própria obra.

Entre as várias explicações que o autor e vários críticos propuseram para esta metamorfose caligráfica e pessoal, nunca nenhuma me pareceu totalmente convincente. Não acredito que a suposta necessidade de escrever mais devagar por causa da mudança de suportes e materiais tenha ajudado R. W. a acalmar e organizar os pensamentos. Desde quando se escreve mais depressa com caneta do que com lápis?

Pergunto-me se R. W. teve uma mãe que remexia nas coisas do filho durante a sua infância e adolescência e que tentava ler tudo o que ele escrevesse, mesmo que estivesse bem escondido. O problema deste olhar perscrutador seria não só ser inescapável, mas também compreender tudo mal e transmitir interpretações erradas aos outros. Nesse caso, só com uma caligrafia indecifrável em fragmentos que pareceriam descartáveis e sem valor teria R. W. conseguido evitar esse tráfico de sentido inadequado.

Ou será que R. W. só conseguia escrever disfarçando que estava a escrever, enganando-se a si mesmo e à linguagem, a ponto de nem a linguagem nem ele já acreditarem que escrevia? Sabemos que outros escreveram graças a estratagemas semelhantes. Shirley Hazzard, por exemplo, confessou que o início da sua carreira literária aconteceu quando um dia, acamada e a recuperar de uma doença, pegou num caderninho e registou umas ideias nas últimas páginas, progredindo depois de trás para a frente, já que resistia à ideia de ter algo interessante o suficiente para ser registado nas páginas iniciais.

Com esta solução, talvez também R. W. estivesse a empurrar o sentido para longe, em vez de o tornar explícito. Talvez temesse ou desprezasse o sentido. Sentir-se-ia mais próximo das coisas sem sentido ou condenado a elas? Só sabemos que já não queria copiar nem passar coisas a limpo. R. W. não servia para o que os outros queriam — e «aquilo que os outros querem» é uma boa definição de «sentido». O olhar de alguns leitores é semelhante ao de uma mãe que vasculha nos papéis do filho à procura de coisas para dizer aos outros sobre ele, mas acima de tudo interessada em dizer coisas. R. W. não queria nem dizer nada aos outros nem que os outros dissessem nada sobre ele.

Walter Benjamin — chamemos-lhe W. B. — comparou as personagens de R. W. com as figuras dos contos de fadas, porém depois do fim dos contos de fadas: já passaram por todas as metamorfoses e todos os sofrimentos e percursos que tiveram de cumprir dentro da lógica dos contos de fadas, mas curaram-se entretanto. W. B. não diz nada sobre recaídas, mas todos sabemos que quem se curou depois de ter passado por experiências deste género de vez em quando descompensa e desata a dizer coisas sem sentido.

Quem, entre nós, não teve aventuras com a caligrafia? O meu avô e a minha tia Laura escreviam com uma letra que toda a gente dizia que era lindíssima, mas que eu, por mais que tentasse, não conseguia perceber. Tinham aprendido caligrafia na juventude. Enviavam-me cartas e mensagens que só quando outros as liam em voz alta eu conseguia compreender.

No tempo em que os médicos preenchiam receitas em papel em vez de as inserirem no computador, esta profissão era conhecida por ter uma caligrafia ilegível. Apesar de todos os farmacêuticos do mundo decifrarem competentemente o que estava escrito nas receitas, para mim o que escreviam não passava de rabiscos ininteligíveis.

Já adulta, sempre me suscitaram admiração os investigadores capazes de transcreverem os textos dos manuscritos encontrados nos espólios dos escritores. Durante muito tempo, os papéis de R. W. passaram despercebidos e só quando um investigador descobriu que ele escrevia com uma caligrafia antiga se percebeu que ainda havia textos literários no seu espólio, e não apenas sintomas de uma mente em desintegração. 

É possível que a minha cegueira e incompetência caligráficas sempre tenham sido indicações de que não posso ser farmacêutica nem investigadora de literatura. Duvido também que alguém com uma caligrafia tão legível como a minha alguma vez possa ser escritor. O que seria dos investigadores se todos os textos fossem de leitura fácil?

Em pequena, costumava brincar no escritório do meu avô. Gostava particularmente de uma caneta que tinha de ser carregada com tinta e me manchava as mãos sempre que tentava escrever porque ainda não conseguia segurar bem nela. Quando eu escrevia, as palavras saíam todas tortas e intermitentes. Eu observava o meu avô com muita atenção sempre que ele usava a caneta, munido de um mata-borrão que secava a tinta. Deve ter sido numa dessas vezes que tomei a decisão escrever um livro com capa em papel vegetal cor-de-rosa e título em letras garrafais. O meu avô não gostava que eu brincasse sozinha com a caneta, mas eu todos os dias aproveitava as ausências dele do escritório para escrever uma página, que ilustrava com desenhos a lápis legendados, e depois escondia numa gaveta pouco usada da secretária. Houve um dia, contudo, em que ele precisou de abrir essa gaveta — e encontrou o livro. Lembro-me de ele contar que leu tudo muito rapidamente e depois veio à minha procura porque queria saber o que acontecia a seguir. Eu é que, depois disso, não consegui continuar.

Estudo de Eugène Delacroix para Luta entre Jacob e o Anjo, fresco da Igreja de Saint-Sulpice em Paris (1850-1856)

Quando as crianças aprendem a escrever, a linguagem parece-lhes difícil, tortuosa e estranha. Com letra tremida, tentam desenhar o alfabeto entre uma floresta de ziguezagues e rabiscos, empunhando canetas ou lápis que fazem doer os dedos e criam calos que deformam as mãos.

Já alguém comparou a aprendizagem das letras à luta entre Jacob e o anjo. Jacob pergunta ao anjo como ele se chama, mas o anjo nunca lhe dá essa informação. Segundo algumas interpretações, isto pode ter acontecido porque acreditava que quem conhece todas as letras do nosso nome se torna capaz de controlar o nosso destino. Sem saber o nome do anjo, Jacob luta com ele como as crianças lutam com as letras e como os escritores lutam com o sentido – sem vencerem nem serem vencidos.

Transformar as pessoas em letras permite-nos manipular o seu destino? No tempo em que a humanidade fazia as primeiras leituras, nem sequer havia alfabeto – só vestígios de presas e pistas sobre a movimentação das feras, restos das refeições dos animais, dentes, garras, peles, carapaças, penas ou peles das criaturas devoradas, excrementos, lixo. Alguns de nós ainda entrevêem esse texto primitivo por baixo das letras traçadas ou impressas, mas já não sabem o que quer dizer. De qualquer modo, até já há escolas onde as crianças não aprendem a escrever à mão, pelo que qualquer dia também os textos sobre caligrafia como este deixarão de ser entendidos.

A Faca de Papel #15

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