Chorar fora de casa, só se não se conseguir evitar. Mas às vezes o choro é tão selvagem, que talvez não seja seguro deixar entrar em casa um animal tão feroz. Os transportes públicos podem ser uma boa opção para o amansar. Assim não perdemos tempo — o choro não interrompe a nossa vida, ao contrário do que aconteceria se tivéssemos de procurar um lugar mais discreto para chorar. No metro ou no comboio, avançamos para algum lado; temos um destino; dir-se-ia que nos vamos aproximando de um futuro em que o choro se terá desvanecido. Os passageiros não fazem perguntas. Se olham para nós, fazem-no com a atitude de quem vê um filme. E nós mesmos, se a dada altura tivemos de aprender a chorar tranquilamente, apesar do turbilhão interior, assistimos com algum interesse, ouvindo música, ao desenrolar da situação.

Tem muitos encantos, o estatuto de espectador. Sobre teatro, não, mas sobre cinema queremos sempre falar, pensando noutras coisas. Na sala de cinema, até as esperas e os intervalos são interessantes. Nesses momentos, mal somos nós; limitamo-nos a aguardar, observando as coreografias das pessoas que se aproximam e afastam. Até as que estão sossegadas têm diferentes maneiras de estar sossegadas. Por exemplo, às vezes está-se sossegado com o ar sensato de alguém que só muito dificilmente tiraria os sapatos no escuro do cinema, mas também se pode estar sossegado com a expressão de alguém prestes a contar uma história que nunca é contada. Os espectadores inquietos já não são tão interessantes. Deixam menos à imaginação.

Intermisson, Edward Hopper (1963).

Pouco antes do início do filme, nas salas mais pequenas, as pessoas que chegam em cima da hora geram o caos. Não encontram lugares lado a lado, tropeçam nos que já estão sentados, têm de arrumar à pressa os casacos, os cachecóis, as mochilas, os guarda-chuvas e restante tralha. Há quem faça isto com uma eficiência impressionante — raparigas lindíssimas, de cabelo comprido liso e impecável —, mas a maior parte dos mortais é imperfeita e causa estardalhaço. Às vezes, as discussões prolongam-se mesmo depois de as luzes se apagarem.

Até depois do início do filme pode haver incidentes. Numa sessão com um filme mudo, já não me lembro qual, soou de repente a canção «Brothers in Arms», muito baixinho. Já estive em tantas sessões de cinema em que determinados espectadores escutavam uma banda sonora alternativa, que me limitei a recriminar mentalmente mais este – até perceber que essa pessoa detestável era eu. Dentro da minha bolsa, o MP3 tinha-se ligado sozinho.

Nessa altura, ouvia muitas vezes esta música dos Dire Straits, desde que tinha visto um episódio da série West Wing em que desempenha um papel importante. Em toda a secção final (cerca de cinco minutos), ouve-se esta canção, que, segundo Aaron Sorkin, foi uma das inspirações do episódio. Não há muito mais palavras nestas cenas. Vemos sobretudo passos, movimentações, pessoas que vestem casacos e gabardines, cumprem encontros à hora marcada no corredor, entre expressões de expectativa e preocupação. Todos estão suspensos de uma decisão que é preciso tomar.

Sempre achei que o que mais inspirou Sorkin na letra foi, não a noção de fraternidade sugerida pelo título, mas sim a ideia sugerida por estes versos: “But it's written in the stars/And every line in your heart” — a ideia de que, se há um destino, está escrito dentro de nós, e, por muitas voltas que demos para o evitar, vamos ter de o cumprir.

A dada altura, apesar de haver uma tempestade, o protagonista de Sorkin recusa a gabardine que lhe querem vestir. Lembramo-nos do ditado “Quem anda à chuva molha-se”, mas o episódio transfigura a sua aplicação tradicional. O ditado costuma ser entendido como uma advertência que transmite uma mensagem de senso comum e sensatez (quem se expõe ao perigo não pode queixar-se depois), mas aqui quer dizer o contrário: se não andares à chuva, não te molharás — resguardar-te-ás da vida. Pelo contrário, escutando o destino há muito tempo inscrito no nosso coração, não temos como fugir à vida. No fim do episódio, há uma conferência de imprensa em que um jornalista tem uma pergunta preparada, para o protagonista poder fugir à questão mais importante. No último momento, no entanto, o protagonista decide responder à verdadeira pergunta que todos querem fazer. Responde à pergunta e enfrenta a chuva.

Na verdade, a relação de Aaron Sorkin com esta música e o percalço que tive com ela no cinema ilustram perfeitamente o que é a inspiração: uma música que se faz ouvir em várias circunstâncias, muito diferentes entre si, algumas vezes inopinadamente. Tantas vezes escutamos esta música, que acabamos por ter de a transcrever em algum lado. A transcrição nunca corresponde exactamente à música original. Umas vezes captamos só a melodia; outras, uma letra truncada. Em «Brothers in Arms», há um momento em que Mark Knopfler, já de si dotado de uma dicção duvidosa, resmoneia uns versos que parecem totalmente ininteligíveis. Todas as canções deviam ter pelo menos um verso ininteligível, cujo sentido caberia aos ouvintes imaginar.

A inspiração é uma espécie de destino, na medida em que estamos condenados a ela. Mesmo se a mandarmos embora, só a custo desiste de nós e, quando parece ter desistido, continua a reaparecer em versões parecidas, que só algum tempo depois percebemos terem a mesma origem. É como ouvir uma música a tocar no cinema e amaldiçoar a falta de respeito do suposto espectador em transgressão, quando afinal esse espectador somos nós, infringindo as regras sem querer. É como escrevermos sobre uma coisa, pensando noutras. Escrevemos uma coisa, mas os leitores captam outras, que podem não compreender imediatamente, e nós também não. É como lágrimas que julgamos só poder levar para casa com tradução.

De qualquer modo, naquele dia não houve protestos na sala. As pessoas estão mais ou menos habituadas a ruídos extemporâneos durante os filmes mudos. Na Cinemateca, havia um espectador conhecido por desembrulhar caramelos durante estas sessões — ou por fingir que desembrulhava, limitando-se simplesmente a fazer barulho com os invólucros dentro dos bolsos do sobretudo azul-escuro que trazia mesmo quando não estava frio.

Mas também há sessões de cinema que decorrem sem incidentes de maior. Em Lisboa, no Verão, só o cinema e as salas de exposição sem janelas ou com cortinas poderosas são locais onde o pensamento pode acalmar. Lembro-me bem do dia de Verão de 2019 em que, depois de três noites sem conseguir dormir por causa do calor, adormeci na sala grande da Cinemateca. Depois da luz e do barulho de Lisboa ao fim do dia, a sala estava tão fresquinha e sossegadinha, que simplesmente cedi. Ao meu lado, uma cadeira depois, estava uma rapariga de braços muito alvos e magríssimos, com uma manga verde-esmeralda rasgada. A cor rimava com o meu nome. Quando acordei, lançou-me um olhar que não percebi se era de inveja ou de escândalo. Não devo ter perdido muito do filme. Senti-me revigorada. E a história ainda fazia sentido. Chorar nem sempre nos acalma, mas dormir ajuda sempre.

De resto, tenho quase a certeza de que há uma ligação entre as salas de cinema e o inconsciente. Isso torna-se evidente quando pensamos nos cinemas abandonados. Como acontece com os rios subterrâneos, só aqueles com idade suficiente para se recordarem do passado, ou que tenham lido sobre isso, sabem que um dia houve um cinema ali. Os cinemas abandonados continuam a existir, fechados, no escuro, com as cadeiras esburacadas, a tinta das paredes a descascar, manchas de humidade, sinais de saída apagados e os cartazes dos últimos filmes que lá passaram. Há cidades em que os cinemas abandonados regressam de vez em quando. No Porto, a Casa das Artes lembra-se ocasionalmente de que tem um cinema escondido num jardim com magnólias e diospireiros, árvores com flores e frutos que mesmo em pleno dia lembram lanternas ou candeeiros, com uma luz que só os ilumina por dentro.

No fim do filme, temos mesmo de despertar. Saímos do cinema como se sai do passado — com relutância, com alguma dificuldade. Saímos do cinema como se o realizador nos tivesse roubado aquela história e como se fôssemos uma personagem do enredo que acompanhámos. Se nos cruzássemos com os actores na rua, confundi-los-íamos com pessoas da nossa vida e também por isso não tentaríamos interpelá-los. É o filme que nos replica a nós ou somos nós que tentamos replicar o filme? Fomos nós que vivemos a história que inspirou o filme ou o filme que nos criou a nós?

A Faca de Papel #16

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