Num destes dias, dei por mim a recordar uma visita ao Museu do Oriente em Dezembro de 2021, para ver desenhos de edifícios nipónicos imaginários. No fim, saímos para esperar um táxi. Foi num domingo de manhã, durante a pandemia: estava frio e reinava um sossego estranho. No pequeno lago em frente ao museu, entre as plantas amarelecidas pelo Outono, as carpas despertavam lentamente da sua letargia. Apareceu um gato e instalou-se sob aquele sol indeciso. Tinha a intenção de nos vigiar, a nós e aos peixes, mas fingia desinteresse em relação a ambos.

No ensaio «On Being Ill», Virginia Woolf senta-se num jardim a observar o céu e descreve assim a perspectiva de quem é afectado pela doença: deixamos de ser soldados no exército das pessoas de bem e assumimo-nos como desertores; o mundo que continue a sua corrida desaustinada sem nós.

Durante a pandemia, perguntavam-nos o que fazíamos com o tempo, parecendo esperar que trocássemos poemas por email, organizássemos livros de autores diversos e escrevêssemos obras-primas da literatura. Quando explicávamos que sempre fizemos parte do grupo dos que precisam de se concentrar em sobreviver, éramos objecto de um certo desprezo. Não somos fãs de Bartleby, nunca pudemos dar-nos a esse luxo; mas, mesmo antes da doença, já não compreendíamos bem aonde as pessoas iam buscar a motivação para fazerem tantas coisas.

Ainda assim, temos jardins na cabeça, como diz Katherine Mansfield. Caminhamos entre árvores de ramos emaranhados, frutos esquecidos no chão, fontes invadidas por musgo, esculturas com formas intrigantes, trilhos mais e menos percorridos, a possibilidade de uma cobra ou duas, e um lago sombrio, de profundidade desconhecida. A gravilha afunda-se sob os nossos passos.

Não foi por acaso que Virginia Woolf escolheu um jardim como espaço de convalescença. Um jardim tem vários níveis. Faz-nos pensar sobre o chão que pisamos. Debaixo dos pés, sob o universo das formas que as plantas sonham para si mesmas, existe um mundo onde as forças da vida se debatem contra a resistência do inerte e do inanimado.

Há quem proponha uma analogia entre jardim e histórias: ambos têm ritmo, trilhos secundários, intrigas, surpresas, perspectivas e aparências que se revelam gradualmente. Planeando, semeando e cultivando, os jardineiros vivem para o futuro, ansiando pelos resultados do seu trabalho.

Durante a doença, somos o oposto de jardineiros. Abafamos muitas vezes as palavras dentro de nós. Suspendemos a narrativa. Não queremos imaginar o futuro; evitamos distrair-nos com palavras. Tentamos situar-nos fora do tempo, supondo que sem palavras é mais fácil. Só depois percebemos que diminuímos o futuro, ao recusarmos as palavras e as histórias.

Tanto nos tínhamos distraído com os percursos e as palavras dos outros, que, quando finalmente chegamos ao jardim, deparamos com os seus trilhos invadidos por silvas e vegetação selvagem. São os trilhos mais próximos do nosso coração, mas já não passávamos por lá há muito tempo. Pensando que não nos distinguíamos deles, achávamos que continuariam ali para sempre, mas só nos deixam percorrê-los se os desbravarmos persistentemente.

No jardim, o tempo, como uma personagem, vem falar connosco. As histórias desenrolam-se à nossa frente. As palavras organizam-se sequencialmente, mas é como se tivessem sido todas ditas ao mesmo tempo. O que vai acontecer já está presente.

Durante uma daquelas festas de casamento que se prolongam durante horas infindáveis em casas palacianas de outros tempos, um convidado de tenra idade, cansado de estar ali sem fazer nada, decidiu explorar o jardim e encontrou um lago. Fascinado pelas águas escuras e, contudo, translúcidas, mergulhou vestido. Queria descobrir o que havia lá dentro. Quando emergiu, coberto de limos, estava um pouco perplexo. Talvez o lago fosse menos fundo do que imaginava. Como não tinha outra roupa para vestir, os pais tiveram de o levar logo para casa.

Podemos sentir que passámos a vida toda a atirar palavras para dentro do lago. Imaginamos que elas continuam lá, à nossa espera, algumas delas transformadas em peixes de águas profundas, com cores e olhos estranhos. Como diz Cavell, no entanto, todas as coisas têm um fundo sólido; nem o silêncio é sem fundo. É preciso sossegar e recuperar o pé, para as águas se clarificarem.

Como uma criança entediada, perscrutamos os movimentos dos peixes dentro do lago. Se os peixes nos parecerem baços e estremunhados, podemos dar um passeio de noite pelo jardim, com eles presos por cordelinhos. Passarão a ser peixes fora de água. Nós ficaremos com esta história para contar e assim saberemos que estamos curados.

Faca de Papel #17

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