Tenho pensado nas letras e na forma como os corpos criam os seus próprios alfabetos quando não querem ou não podem falar. Muitas vezes, desenhamos letras com o corpo curvado, todo encolhido. Os corpos podem ser como letras enroladas sobre si mesmas, contorcendo-se um pouco, mas reprimindo-se automaticamente no centro (a letra B); ou então expandindo-se, gritando e correndo até onde conseguem alcançar ― por vezes, só o fundo do corredor da casa onde vivem (um T, um Z). Há letras em circuito fechado (o P). Há letras que, quando replicadas num corpo, se cancelam a si mesmas (o X).

O vocabulário e a gramática vêm daqui: os nossos passos, o modo como nos sentamos, a forma de vestir, o duplo queixo, os receios injustificados, a ansiedade, as memórias estranhas e longínquas de experiências que nunca tivemos. Muitas vezes, sem querer, repetimos expressões e reproduzimos trejeitos e até pontos de vista com que não concordamos. Cada gesto, uma página. Se ao menos alguém se desse ao trabalho de registar estes alfabetos e de compilar estes dicionários!

Dentro dos dicionários, há palavras que já só encontramos lá: palavras esquecidas, nem sabemos o que significam; palavras estranhas que, mesmo quando eram usadas, suscitavam dúvidas, erros de semântica, frases atabalhoadas; resquícios de épocas de que já não há memória; tesouros de valor incerto ou incalculável; palavras ímpares, incompatíveis com quase todas as outras.

Num dicionário em que trabalhei, de vez em quando as letras emaranhavam-se umas nas outras. Até houve uma vez em que a maiúscula na secção das palavras iniciadas por A tentou fugir durante a composição. Foi preciso chamar a atenção do paginador.

De noite, quando as luzes se apagam, podemos constatar que algumas letras das palavras que trazemos dentro de nós deixaram de acender. Nessa altura, suspiramos, pensando que não nos podemos dar ao luxo de as mandar arranjar, ou que não temos energia para tratar disso. Seria necessário parar tudo e concentrarmo-nos nessa nova tarefa, correndo o risco de nos distrairmos dos pensamentos habituais. Ou então achamos que, apesar de não acenderem, não podemos prescindir daquelas letras, ainda que por pouco tempo. Não podemos cedê-las. Optamos por confiar que, apesar de haver letras apagadas, as pessoas vão perceber o que queremos dizer, ainda que saibamos que, mesmo com as letras todas acesas, as pessoas raramente percebem.

Alguns de nós não se importam de dizer imperfeitamente. Não conseguem mais. Há corpos que nem palavras conseguem formar. Desfazem-se em letras. Outros usam mal as palavras, para ver até onde conseguem chegar.

Penso muitas vezes nas pessoas que escrevem coisas sem significado. Registam tudo num papel solto que guardam dentro da gaveta da mesinha de cabeceira. Palavras encavalitadas, como dentes tortos. De repente, deixam de fazer o que estão a fazer e vão a correr rabiscar nesse papel. Quem o encontra, todo amarfanhado, lê-o sem perceber, rasga-o e deita-o ao lixo. Se, depois, as pessoas perguntam pelo papel, responde: não sei, nunca vi isso.

Há coisas que não foram escritas para ser lidas. Quem as apontou não conseguia dizê-las em voz alta ― teve de as rabiscar. Eram tantas palavras dentro da cabeça, que nem se ouvia bem lá dentro. Foi preciso apontar gatafunhos, coisas ilegíveis, erros, gralhas. Que mais maneiras temos de escapar ao sentido?

Em vários contextos, as expressões «querer dizer» e «significar» são intercambiáveis («a palavra X quer dizer Y» é equivalente a «a palavra X significa Y»), mas nem sempre queremos dizer o que as nossas palavras significam. Nem sempre queremos dizer o que queremos dizer. Ou então dizemos «sem querer»: na verdade, não queríamos dizer aquilo. Não sabíamos que nos sentíamos assim e as palavras esclareceram-nos. Não nos sentíamos assim e as palavras mentiram. Dissemos umas palavras, quando queríamos dizer outras, mas não temos ânimo para procurar as palavras mais verdadeiras. Temos dificuldade em perceber até que ponto nos querem ouvir e até onde queremos dizer.

Há também quem compreenda o mundo a partir de uma semântica particular, em que todas as coisas têm significados obscuros e perigosos. É como se estas pessoas tivessem um dicionário só delas. Não só ouvem mal, como também projectam significado nas mensagens que lhes escapam, construindo histórias e criando personagens. Confunde-se a cabeça das personagens com a cabeça de quem as cria.

Uma personagem é como uma pessoa que sente que não nasceu, por não conseguir distinguir-se da sua própria mãe. Quem se inspira em alguém para criar uma personagem transforma o inspirador numa criatura shakespeariana a quem cortaram a língua e as mãos. Sem língua e sem mãos, Lavinia, em Titus Andronicus, tem de escrever todas as palavras na terra, com um raminho na boca, incluindo o nome dos seus atacantes. Quando cortam a garganta a esses facínoras, Lavinia recolhe o sangue, para preparar uma torta para servir às mães deles. A personagem dá o criador a comer aos outros.

Traduzir é como tentar encontrar a mãe – o texto original – dentro de nós. Quando traduzimos, descobrimos em nós essa cabeça desconhecida. Em Apresentação do Rosto, de Herberto Helder, fala-se da cabeça de uma mãe, que volta sempre, para observar o filho, apesar de este a ter atirado ao rio, embrulhada num jornal. O filho refere também a sua própria cabeça decapitada, que apanha quando rola pelo chão, ao mesmo tempo que pergunta: «É um livro?»

É compreensível que alguns escritores se interessem pelo tema da decapitação. Prefeririam libertar os textos do pensamento. O sentido que procuram não é humano; está nos movimentos das letras, nas raízes, nas folhas, na lama ou seixos que formam. Imaginam que, se lhes cortassem a cabeça, as palavras, como num jardim, se transformariam em plantas, animais ou minerais. Quais elementos da natureza, as palavras vibram de sentidos por fixar e por captar. Como ler o mundo?

Será um livro o reverso de fazermos apontamentos impreteríveis, alguns sem sentido? Só quando saímos da nossa própria cabeça somos legíveis. Ainda assim, com ou sem sentido, continua a haver apontamentos inevitáveis, pelos quais largamos tudo. Queremos mesmo escrever aquilo que mais ninguém, além de nós, poderá dizer. Passamos o tempo a tentar deixar de escrever mal à maneira dos outros, para podermos escrever mal à nossa maneira.

Falar das imperfeições do que escrevemos é como falar das imperfeições da nossa mãe, em relação à qual podemos ser como erros ortográficos, palavras com letras que não acendem, sinónimos imperfeitos.

Pensar muito nas palavras é como desmontarmos uma boneca com que a nossa mãe nos proibiu de brincar, sabendo de antemão que não seremos capazes de voltar a encaixar todas as peças e que a boneca ficará num estado irrecuperável. Para algumas pessoas, a cabeça sobra sempre e fica a observá-las durante toda a eternidade.

Os livros não passam de cabeças arrumadas nas estantes – por  ordem alfabética –, cheios de pó, enquanto lá fora, no mundo, tudo se desencaderna.

What to Draw and How to Draw It, E. G. Lutz, 1913.

Faca de Papel #18

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