Num poema em que fala de cíclames que brotam do chão, junto aos pés, D. H. Lawrence diz a dada altura que os cíclames lhe lembram mulheres numa fonte, de madrugada. Lawrence explora outras imagens associadas, mas, aos leitores, vistas de longe, estas mulheres quase parecem fantasmas. 

Na minha família, houve uma ou duas mulheres que se dedicaram com tal fervor a actividades como coleccionar cíclames, que um dia tiveram de dissolver a colecção, por não conseguirem pensar noutra coisa. São mulheres que trazem nas mãos tesouras, panos de pó, plantas, um batom, bonecas, nunca livros. Nos braços, como uma actriz contracenando com um actor, transportam ressentimentos, cartas para queimar, imagens que recolheram durante uma viagem, ou um ou outro animal de estimação doente. Não são sedutoras, nem casadoiras, tão-pouco mães de ninguém. Não costumam aparecer como personagens em livros escritos por homens: assim seria o seu epitáfio ou a sua biografia.

Há uns meses, traduzi uns cíclames de Lucian Freud para a vida de todos os dias. Apesar de Lucian Freud ter pintado várias vezes estas flores, quando lhe perguntaram se tinha lido um famoso ensaio do seu avô sobre cíclames, respondeu que não. Explicou que se interessava por estas flores porque morriam espalhafatosamente, como personagens de romance, mas parece-me evidente que se trata de um daqueles casos em que repetimos determinadas imagens que não conseguimos nem corrigir nem decifrar, como se o sentido das coisas nunca nos pertencesse individualmente e estivéssemos condenados  a perpetuá-lo, encenando-o repetidas vezes.

A ideia de que a mesma pessoa renasce até aprender as lições que deve assimilar pode ser uma espécie de tradução da sensação de o sentido de certas coisas ser inalcançável. Ainda assim, acreditar que haverá outras vidas para reformular essa incompreensão não acalma propriamente. Durante todas as vidas, pintaremos repetidamente uns cíclames que herdámos sem saber. Estarei ainda a falar de traduzir? Ou de viver?

No ensaio de Sigmund Freud inspirado por um álbum de cíclames que um dia viu na montra de uma livraria, o avô de Lucian recorda que um dia o pai lhe ofereceu um livro com ilustrações, dizendo-lhe que podia fazer dele o que quisesse, inclusivamente rasgar e deitar ao lixo. Freud explica que é praticamente a única memória que guarda da infância e acrescenta que, com a irmã, destruiu o livro página a página. Depois, no entanto, associa este episódio ao facto de se ter transformado num bibliófilo obsessivo.

Como entender isto? Toda a vida tentamos recuperar as coisas que destruímos? Ou: não se consegue construir sem destruir?

Num dia destes, lendo um texto em que se aproximava estilo e  biografia, anotei várias coisas. O estilo é o que resta de tudo o que era importante para nós, depois de termos tentado destruí-lo. O estilo é o que resiste à destruição.

O estilo: será mesmo forçoso tê-lo? Desligamo-nos do estilo como nos desligamos da própria vida. Quando lemos o que escrevemos, nem sempre nos reconhecemos lá. Talvez o estilo seja como uma emoção forte. Aprendemos tão bem a desligar-nos de emoções fortes, que nos separamos logo do estilo, sem pensar. As pessoas acreditam no que escrevemos, mas nós pensamos: foram as palavras que disseram aquilo; eu nunca digo nada.

As minhas traduções parecem ter sido escritas por mim; os textos de que sou autora parecem ter sido escritos por outra pessoa. Os tradutores não têm estilo? E têm vida?

Já me interroguei várias vezes sobre o que vêem os cíclames. A minha gata preta engraçou com as flores brancas do cíclame que comprei. Esperava por mim com as flores aos pés, toda orgulhosa, para eu perceber que tinha sido ela a decapitá-las. Tive de levar o vaso para a varanda, para o salvar. Agora as flores espreitam bem acima das folhas e vislumbram o céu de Lisboa. Praticamente secaram durante o Verão, mas, numa fotografia que lhes tirei em Outubro, já pareciam etéreas, quase um produto da minha imaginação. Era como se fossem de papel, páginas em branco em pleno voo, em que seria possível escrever com a tinta preta que é a minha gata.

Tanigami Kōnan, Seiyō sōka zufu, 1917.

Não é muito frequente conversar com alguém sobre as crónicas da Faca de Papel, mas recentemente expliquei a uma pessoa que são textos que costumam partir de uma recordação ou imagem específica, a que depois se juntam várias associações, que exploro para ver se descubro o que as trouxe até ali. O tom ensaístico é fingido ou falsificado. Há mais recordações entre as palavras, umas bem escondidas, outras mal, e posso estar a escrever sobre um assunto, mas a pensar noutro, sabendo ou sem saber. Existe sempre um assunto de que quero falar, mas que evito.

Falando sobre estes textos, percebi que o tom inicial se tem diluído, mas ainda não sei bem o que o substituirá. Sabemos como começa, mas não como vai terminar: é o género de frase que os terapeutas costumam pronunciar, em tom de advertência, sobre as coisas da vida que podem acabar mal (uma depressão, uma aventura). Se a entendermos como máxima, também podemos aplicá-la aos textos. É possível que a ficção seja uma linguagem que não se deve aplicar ao estilo. Já me perguntei, por exemplo, como seria escrever sem fingir que não escrevo, dizendo o que não digo.

Sabemos como o estilo começa, mas depois lá vão as frases, rumo ao desconhecido. O estilo é como Clark Gable no fim de E Tudo o Vento Levou – «Francamente, minha querida, quero lá saber!» Clark Gable está-se nas tintas. O estilo é a tinta que sobrou.

Faca de Papel #19

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