«Às vezes não durmo, para poder imaginar o meu sono.»
Herberto Helder, Apresentação do Rosto.
Numa fotografia que não sei se existe mesmo, um homem dorme num parque do Japão enquanto um veado o observa. É como se o sono, por não querer que o homem acorde, se tivesse materializado no corpo do animal, para velar o seu dormir.
Colecciono imagens de pessoas adormecidas, ou com sono, mas, entre estas, raramente encontro o que procuraria se quisesse contar uma história. Talvez o sono me interesse precisamente pelo facto de as expressões das pessoas serem ilegíveis. Ali não há palavras. É a relação ideal: não haver palavras.
Alguém pergunta: o que é a linguagem se não a capacidade de extrairmos de nós mesmos o que aconteceu para que possa acontecer noutro lado? Como a linguagem, o sono extraiu-se de dentro daquele homem e formou um veado.
Proust dizia que só quando vemos alguém a dormir sentimos que o possuímos, na medida em que as imagens e as palavras deixam de transbordar do seu corpo e de apontar para as outras vidas que tem longe de nós. Há muito tempo que não releio Proust, embora já tenha lido dezenas de vezes algumas passagens da Recherche. Agora, talvez prefira sonhar com Proust, em vez de o compreender, mas não faz mal, porque Proust observa o sono dos leitores do lado de fora.
Já foi sugerido que a vida e os sonhos são páginas do mesmo livro. Ao fim do dia, continuamos a folhear o mesmo volume, mas ociosamente, sem objectivos. O pensamento entrega-se a si próprio, prestando atenção a uma ou outra página fora de ordem. Às vezes, são páginas já lidas, de que não nos lembramos bem. Uma das melhores formas de ler pode ser sonhar.
Evelyn De Morgan, Night and Sleep, 1878, De Morgan Foundation.
Noutra imagem da minha colecção, a Noite abrigada sob um manto pardacento, cruza os céus puxando o Sono pelo braço. Será a Noite mãe do Sono? Parece um filho demasiado antigo para tão jovem mãe. Noite e Sono são um emaranhado de mantos. Tudo indica que pertencem um ao outro. Ninguém sabe separá-los. Podiam ser letras, as papoilas que se derramam deste emaranhado. As duas figuras estão de olhos fechados, lendo coisas fora de ordem que mais ninguém lê. Ou, então, o Sono é só aquilo que a Noite não consegue dizer. Tem de o arrastar para todo o lado.
Nem sempre os livros com que sonhamos correspondem aos livros lidos. Há anos que queria ler On Not Being Able to Sleep, de Jacqueline Rose. O ensaio que dá título ao volume é sobre A Interpretação dos Sonhos, de Freud. Freud salienta que nunca sabemos o que vai acontecer quando adormecemos, porque nessa altura nos entregamos ao que, dentro das nossas cabeças, não podemos prever nem controlar ― as verdadeiras forças da vida interior.
Há quem não queira adormecer por ter medo do que verá em sonhos, mas, segundo Freud, os sonhos são guardiões do sono, na medida em que tentam livrar-nos de tudo o que o perturba. Formam-se com toda a energia psíquica de que somos capazes, apontando caminhos que ainda não tínhamos visto. Não são mais do que um modo particular de pensamento, tornado possível pelo facto de estarmos a dormir.
Por sua vez, a insónia é uma forma de resistirmos ao que dentro do sono quer apontar uma saída. De certo modo, resistimos a adormecer como quem resiste ao futuro. O problema da insónia é obrigar-nos a pensar acordados, quando deveríamos pensar a dormir.
Adam Phillips, que, por acaso, teve uma relação de vários anos com Jacqueline Rose, salienta que evitamos o que tem mais força dentro de nós porque cedermos seria uma experiência equivalente a voltarmos a confundir-nos com a nossa mãe. Só podemos começar a contar a nossa história quando conseguimos extrair-nos da nossa vida (e da nossa mãe).
Durante a minha infância, a angústia da minha mãe ocupava o lugar dos sonhos, escreveu Marguerite Duras. Na casa da minha infância, nunca ninguém dormia bem, escrevo eu. As pessoas estavam sempre prestes a fazer coisas estranhas, quando deviam estar a dormir. Iam à cozinha a meio da noite. Vagueavam pelo corredor com expressões estremunhadas, tentando perceber o que estaria a acontecer. Desenvolviam teorias bizarras. Era preciso ficar acordado para ver o que se passava.
Pensar a sonhar é como vaguear no escuro pela casa da nossa infância, percebendo os perigos, mas também as saídas e passagens que antes nos tinham escapado. Também eu prossigo por indirecção, como se vagueia no escuro, aproximando-me perigosamente, por meio de imagens e citações evitantes, mas o que quero dizer é que alguns nascem na história de outra pessoa e só conseguem contá-la quando finalmente a observam de fora.
Às vezes, as pessoas acordam com o corpo numa posição que lembra outra pessoa, mas percebem que só viverão se conseguirem descobrir a posição que mais lhes convém.
Que animal ou planta seria o sono de cada um de nós se um dia se exteriorizasse? O meu sono quer que eu acorde. De certeza que não seria um veado.
Em The Berry Picker, o apanhador de frutos silvestres de Andrew Wyeth colheu mirtilos, não amoras. No fim, sentiu o cansaço. Deitou-se na relva. Parece confortável, bem estendido. Adormeceu com o chapéu ao lado. Ao lado da cabeça, como se vindo dos seus sonhos ou da cor da sua camisa branca, cresceu um arbusto esbelto, que deu flor. É delgado, embora as flores pareçam firmes, não voláteis. Mas quem vai apanhar frutos silvestres de camisa branca? Não terá medo das nódoas escuras? Que se faz com mirtilos, quando era de amoras que se precisava? E quem adormece assim ao ar livre depois de não ter encontrado o que procura?
Os animais e plantas gerados pelo sono são animais e plantas que regressam sempre. Mesmo quando penduramos espanta-espíritos, evitamos as plantas que os atraem, ou temos um cão vigilante e barulhento, é muito raro, de manhã, não encontrarmos veados a dormir no jardim.
Também eu quero ter um sonho em que apanho amoras. Quando não uso as palavras, não durmo; quando não durmo, não sonho. Se sonhar, pelo menos saberei que adormeci.
William Auden comenta que a sinceridade é como o sono. Parte-se do princípio de que as pessoas são sinceras quando falam, mas há quem sofra de insinceridade. Do mesmo modo, pressupõe-se que todas as pessoas dormem; algumas, porém, sofrem de insónias. Haverá comprimidos para a insinceridade como há comprimidos para dormir? Pelo menos, escrevemos insinceramente, tentando livrar-nos dos sonhos, como quem toma um comprimido para dormir. Havia uma história nocturna que não queria contar, mas já foi escrita, e foi assim que a escrevi.
Seria bom se aprendêssemos a conviver com os veados, sem os lançarmos em debandada. Os seus olhos tragam as sombras, à procura de lampejos dos predadores. Os ouvidos captam todos os sons, mesmo as palavras.
Imagino como seria deparar com um deles. Encarar-nos-ia como numa pintura rupestre, sobre quatro finas patas, apreendendo e assimilando o nosso assombro. Daria uns passos em direcção a nós, antes de, com um salto, desaparecer entre os ramos e as folhas.
Uma vez, ouvi uma história sobre uns pescadores que viram um veado a nadar no mar, a cerca de dez quilómetros da costa. Quando repararam nele, perceberam que estava tão exausto, que não ia aguentar dentro de água durante muito tempo mais. Tremia, cheio de frio, quase já não se aguentava à tona, praticamente nadava círculos.
Os pescadores decidiram salvá-lo, levando-o outra vez para a praia. Era uma vida. Não iam deixá-lo afogar-se ali, no meio do nada.
Tiveram de o transportar para a areia, porque já não conseguia avançar. Na praia, aqueceram o veado com mantas. Três horas depois, conseguiu finalmente levantar-se. Então afastou-se pelo seu próprio pé.