Há fotógrafos que, quando tiram retratos, recomendam aos retratados que imaginem que estão a olhar pela janela. Estes fotógrafos! Já não bastava a obsessão que têm com a posição das mãos e o sorriso. Também pedem imaginação. Ainda por cima, nunca explicam o que se vê por essa janela. E o que está dentro de casa? A que divisão corresponde aquela janela, quando vista de fora?
Às casas, chegamos sempre de fora, como desconhecidos. Uma figura vigia-nos da janela. Parece uma gravura num livro de Edgar Allan Poe. Dir-se-ia que alguma coisa sinistra se prepara para acontecer. Encarada de dentro para fora, também pode ser uma situação inquietante. O que vê essa mulher, olhando pela janela? A nós, não vê, com certeza. Porque nos virou as costas? Esta mulher está sempre a pensar noutra coisa, nunca pensa em nós. Não lhe caberia interessar-se pelo que se passa dentro de casa?
No interior, as coisas podem complicar-se um pouco, com sótão e cave, recantos esconsos ou acolhedores, corredores sem fim. A cozinha velha é um espaço misterioso onde certos anos agora perdidos na memória deixaram sinais, vultos escuros, cobertos por farrapos sujos e empoeirados que tanto as crianças como os adultos parecem ter receio de levantar. A própria iluminação deste espaço é fraca e instável. A um canto, está o fogão a lenha, uma forma grande e antiga que recorda as forjas de Hefesto, quando alguém o usa para cozinhar, no Natal ou na Páscoa. Deste fogão, emanam odores inebriantes, vindos da comida, mas também das pinhas e da lenha que ardem. Só nestas ocasiões é permitido às pessoas da casa ver chamas de perto.
Certas divisões só descobrimos por acaso; a estas, ninguém vai. Há espaços que não se compreende logo para o que servem. Os sentimentos das mães e das tias, como de costume, ficam guardados nos lugares secretos, atravancados de tralha.
Entreouvem-se palavras através de uma porta fechada. A eloquência faz-se ouvir, quem escreve bem faz-se ouvir, mas há quem não possa mais do que ser entreouvido. O que acontece às palavras entreouvidas, quase não escutadas, através das portas fechadas?
Alguns espaços exploramos quando não está ninguém em casa. Podemos passar tardes inteiras a experimentar as roupas que encontrámos nas águas-furtadas. Encenamos uma ressurreição improvável, ao mesmo tempo que satisfazemos uma certa ambição de sermos personagens e de participarmos em enredos que, embora cansativos, costumam ser empolgantes. Na vida, pelo contrário, recomendam-nos sempre que evitemos enredos demasiado cativantes.
Sem corpo, as roupas lembram palavras penduradas numa corda. No filme A Estrada, de Fellini, Zampano chega com o circo a uma cidade. Antes do espectáculo, dá uma volta pela povoação. Pede um gelado de baunilha e limão. De repente, ouve alguém cantar a música que Gelsomina costumava tocar no trompete. Semioculta pelos lençóis que o vento enfuna, como se fossem fantasmas, uma rapariga que põe a roupa a secar explica o que aconteceu a quem lhe ensinou a melodia que entoa. É como se Gelsomina falasse com Zampano através do vento nas roupas.
Também às personagens chegamos de fora, como se chega a uma casa. Uma tia lavava muitas vezes as mãos; a outra usava a tesoura. Se entrássemos de repente, enquanto ela trabalhava, olhava para nós, de tesoura em riste, com uma expressão crítica, tensa e interrogativa, como que a perguntar: O que é? Nenhuma força já seria capaz de lhe arrancar a tesoura das mãos. Certa vez, a avó ficou fechada num compartimento de um barco e teve de arrombar a porta para sair, mas, quando encontraram a fechadura no chão, não explicou que tinha sido ela.
Estas personagens fazem há tanto tempo parte de mim, que sinto relutância em separar-me delas. Seria como tentar recortar-me dos meus sentimentos. Sem os meus sentimentos silenciosos, teria medo de não me reconhecer.
Umas personagens tentam passar de um quarto para o outro, mas pode haver alguém no umbral da porta a dificultar a passagem. Para evitar problemas, outras personagens não tentam sequer sair de onde estão.
Com passos leves ou pesados, umas figuras sobem, outras descem. Alguém contempla umas escadas difíceis de subir. Idealmente, os degraus conduziriam ao patamar seguinte da narrativa. Dentro de casa, no entanto, parece impossível contar uma história. O tempo traduz-se em hábitos e repetições. Espirais na cozinha, sulcos profundos sob a janela, meandros pela sala de estar. Os pensamentos parecem subir umas escadas precárias. Será a casa a história?
Não encontramos a saída dentro desta casa. Um dia, contudo, tanto a casa como a família desaparecem. É possível que tenha sido um caso de força maior; alguma coisa arrancou à força os habitantes dali de dentro e uns aos outros. Ou então, como num fresco de Ghirlandaio, uma figura esbelta entrou, num turbilhão, equilibrando uma bandeja a transbordar de fruta em cima da cabeça, como se o vento a tivesse soprado para ali. De vestes etéreas e esvoaçantes, quase transparentes, foi como se a Fortuna tivesse irrompido por ali dentro. Por muito altos que sejam os muros, de vez em quando estas figuras perigosas conseguem entrar, sendo depois acusadas de terem roubado todas as coisas que as pessoas perderam sem querer.
Pormenor de um fresco de Ghirlandaio na Igreja de Santa Maria Novella, em Florença, 1450.
Era uma casa ou uma cabeça? Era uma máquina estranha em que se concentrava tudo aquilo de que não queríamos falar. Mas como viver no mundo sem essa casa? Era uma cabeça, grande como uma casa, com uma tesoura esquecida em cima da mesa.
A tesoura ficou para trás. Se não a usarmos, se não pegarmos nela, parece um objecto inofensivo, mas é um signo de acção. Se o activarmos, terá consequências, haverá deslocamentos. Nem todas as coisas, porém, são inevitáveis.
Nas palavras, a minha dificuldade é sentir-me em casa. Acreditar que lá moro. Houve alturas em que senti que a outra casa, os seus objectos e as suas ideias eram mais importantes do que eu e que devia sacrificar-me a eles, para poderem continuar, como se um serviço de pratos antigos, ou as salas que não se podia desarrumar, fossem muito mais valiosos do que uma pessoa só.
Preciso sempre de começar por essa casa. Desejo um texto em que possa dormir, como não dormi dentro dessa casa. Começo por essa casa, afinal sei onde está a saída, mas, dentro de mim, ainda tenho de procurar, quase sempre sem encontrar, o desejo de sair.
Olhando para essa casa, quando lá chegámos pela primeira vez, de noite, depois de atravessarmos o jardim, discernimos pelas janelas uma figura que percorria o interior com uma candeia acesa. Era a avó; saiu de casa, entregou-nos a candeia, mas não nos ensinou a ler. Não nos ensinou a falar. Não nos ensinou a escrever.
Perante umas fotografias recentes, um fotógrafo comenta sobre o retratado: não consegui que me desse nada. Também o fotógrafo viu a casa de fora. Só lhe interessavam as imagens, não a casa. Ignora que também ele é uma personagem e que passou a fazer parte da história.