«Stop writing on walls», pode ler-se na parede de uma casa de banho feminina de uma Faculdade de Letras portuguesa.[1] A frase remata: «start writing for real». O apelo parece razoável, mas levanta mais perguntas do que aparenta. Nomeadamente: o que significa writing for real?
Iniciando um trabalho de tradução que inclui uma tentativa de perceber a intenção da autora, a ideia parece ser a de exortar a que se deixe de escrever nas paredes (e vou deixar passar o paradoxo em relação ao meio escolhido para a inscrição que contém esse conselho) e se passe a escrever a sério. Só que este sério também levanta problemas. Imagino que a sério signifique neste caso: de forma estruturada, coerente, linear, progressiva, em direção a uma obra mais extensa, que poderá ser eventualmente reproduzida em formato livro (é uma longa presunção, mas sendo a autora anónima, não posso pedir-lhe que a confirme ou desminta). Mas porque é que publicar, tendencialmente em livro, seria mais sério ou mesmo mais real, em duas possíveis versões da expressão inglesa for real na nossa língua? A frase escrita no livro é mais séria ou real do que a frase proclamada ao vento, sussurrada ao ouvido, lançada em aviões de papel, enviada em carta postal, ou escrita numa parede? O que é exatamente este for real, pergunto, interrogando imaginariamente a autora. E, na tentativa de construção da sua resposta, dou por mim inevitavelmente a caminho do sério. Ora, o embate da escrita com o sério não me parece deixar a escrita em bom estado. Ao relacionar a escrita com o sério corremos o risco de aprisionar um ato que é, na sua essência, um ato de liberdade. E vamos, ataquemos o paradoxo: se ninguém levasse a escrita nas paredes a sério, a exortação não teria efeito — e este texto não teria sido escrito.
Imaginemos uma autora nascida já no contexto da ubiquidade do meio digital, como provavelmente será, e perguntemos: escrever a sério inclui também a escrita em plataformas digitais? Seria isso suficientemente sério e real para satisfazer o seu apelo? Creio que não, e a oposição entre escrever na parede e escrever no real, se esse duplo sentido é bem vindo, poderia seguir nesse caminho. Volto atrás, ao início da inscrição — «Stop writing on walls» — para pensar esta expressão no seu paralelismo com a wall em inglês, ou mural em português: a palavra usada, na rede social mais popular no país onde encontramos esta casa de banho, para a área na qual os utilizadores inscrevem os seus conteúdos.
Pessoalmente, parei de escrever nesse mural quando me apercebi do quanto essa escrita canalizava a atenção do leitor para uma rede social perante a qual sou bastante crítica. O meu incómodo passa, não só mas também, pela forma como aglutina conteúdos sem ter por eles qualquer tipo de respeito. Eles tornam-se mais visíveis ou invisíveis consoante a sua popularidade, mensurada em número de reações e comentários, e ficam praticamente inacessíveis assim que o passar de algum tempo (muito pouco) torna esta progressão no nível de popularidade mais lenta. Mesmo a periódica mensagem a relembrar o que escrevemos há um, três, cinco ou sete anos (iniciada por um «we care about you» que não consigo ler sem ironia) serve apenas para que esses conteúdos possam ser re-mastigados, e assim gerar uma nova corrente de reações e comentários. Deixou de fazer sentido para mim alimentar esta maquinaria. Mantenho a minha presença nessa rede apenas por questões de divulgação, porque de facto ela tem um grande potencial nesse aspecto.
Quando tomei esta opção, a minha preocupação não era tanto a de poder estar a canalizar em vão para essa rede social os esforços de escrita, porque sabia que o que aí escrevia não teria propriamente um lugar em qualquer outra plataforma. Eram frases soltas, ideias livres, sem compromisso com um pensamento mais alargado — no fundo, não eram muito a sério. Mas o que mais me incomodou foi perceber, não só que a escrita estava a ser canalizada para esse meio, que a amassava e tornava espúria, mas que a leitura, de um modo geral, estava a ser canalizada para esse meio. O tempo de leitura do leitor contemporâneo está em grande parte direcionado para essas redes sociais aglutinadoras, tão cheias de conteúdo muito pouco sério. Poder-se-ia argumentar que essas redes não roubaram o tempo de leitura aos livros ou revistas, mas sim que criaram um tempo para elas mesmas, retirando-o de forma legítima a outros meios de entretenimento e de comunicação em massa, como a televisão. Certo. Mas já esses meios de comunicação em massa retiravam à leitura — leitura aqui num sentido mais restrito: de livros, de jornais, de revistas, ou seja, independentemente do seu meio impresso ou digital, de publicações editadas por uma equipa de profissionais, e portanto, definitivamente mais sérias. Foi nesse sentido que também eu, perante o incómodo gerado por esta forma de gerir o espaço de leitura, não só meu, mas de uma comunidade de leitores que me inclui, deixei de escrever nessa parede. Mesmo que isso não gerasse necessariamente, da minha parte, uma escrita mais formalizada, mais coerente, e em direção a um pensamento mais abrangente — uma escrita mais a sério —, isso representava para mim um pequeno ato de rebeldia, pela recusa em participar de um círculo/circo de entretenimento mútuo, que muito prejudica outros meios de entretenimento que merecem ou deveriam merecer mais estima da minha parte e da parte da comunidade.
De cada vez que alguém escreve algo interessante nessa parede aglutinadora está a valorizar essa parede, está a emprestar a essa plataforma o seu interesse enquanto pessoa criadora de conteúdos. Assim, está a atrair para essa plataforma as pessoas que gostam de ler coisas interessantes, e que, portanto, seriam aquelas que consumiriam outros produtos culturais produzidos de forma efetivamente mais séria. O «perigo», portanto, não está nos milhares de vídeos de gatinhos — eles haveriam de encontrar o seu lugar, e esse parece-me perfeitamente idóneo. O «perigo» está nos proto-artigos de opinião, nas observações pertinentes. Se coloco o perigo entre aspas, é porque me apercebo do papel talvez excessivamente conservador que estou a ter. Percebo que estou a ver perigo numa situação perfeitamente normal, em que novas instituições substituem instituições antigas, que se demonstram obsoletas. Devo, por isso, acrescentar que admito, obviamente, e com total naturalidade, que estas redes sociais têm e terão o seu papel como meios de comunicação na nossa sociedade. Refinando: estas redes sociais que conhecemos atualmente têm, e outras vindouras terão, porque estas mesmas que existem hoje se estão a demonstrar obsoletas perante as gerações mais novas. Para mim, e por exemplo, são boas para a divulgação de eventos, atividades, produtos ou serviços que desta forma mais facilmente encontram o seu público. Ou para manter uma agenda de contactos de pessoas que um dia se cruzaram nas nossas vidas, o que, a meu ver, tem de facto bastante valor. Também entendo a sua utilidade para figuras públicas e para divulgação institucional. Mas, a nível pessoal, não estou disposta a entregar-lhe de mão aberta a gestão de certos conteúdos, criados por cada um de nós, que sejam mais interessantes, mais coesos, mais direcionados para um pensamento e uma obra coerente — de certa forma, mais sérios, ou seja, for real.
Este carácter aglutinador de que falo está também patente na forma gráfica como é tratado o texto nessa superfície de inscrição — que aliás, está em constante alteração, sem qualquer tipo de aviso prévio ou posterior. Quando, em março de 2014, fizeram algumas alterações ao grafismo, confesso que, como designer consciente, perdi um pouco do meu sono nesse dia, e no dia seguinte explanei a minha indignação nessa mesma plataforma. Essas alterações gráficas diziam respeito, principalmente, à formatação de hiperligações externas. Da primeira vez que notei a alteração, gostei das escolhas tipográficas. Pensei que aquela hiperligação em que reparei, de um qualquer jornal, ficava de facto com uma aparência gráfica de artigo de jornal; assim bem sério. Achei adequado. Mas então percebi que todas as hiperligações para conteúdos exteriores eram tratadas graficamente da mesma forma. Portanto, todos elas (fossem publicidade, vídeos de gatinhos ou escândalos sobre celebridades) ficavam com aquele aspecto de artigo de jornal. Fiquei muito decepcionada quando percebi isso. Mas depois entendi que isso até fazia sentido. Na verdade é exatamente isso que essa rede social faz: reunir uma amálgama de conteúdos diversos (sapatos! gatinhos!) e tratá-los como notícia. Esta era apenas a materialização gráfica do trabalho de legitimação e glorificação de conteúdos que a plataforma vinha a fazer desde sempre. Se o leitor ainda pensa que o tratamento gráfico da palavra não quer dizer nada, pode pensar nisto como exemplo. O que faz de um conteúdo um conteúdo sério? A sua validação por alguma instância de legitimação, cujo selo de aprovação está normalmente associado, como face visível, ao tratamento gráfico e material do texto escrito, dando-lhe uma forma concreta e reconhecível. É isto que acontece, por exemplo, quando uma obra é publicada dentro de uma coleção de grandes clássicos. O selo do cânone é dado através da inclusão na coleção, e transmitido ao leitor pela apresentação material e gráfica da coleção, com o seu tamanho, formato, e demais características de um projeto gráfico definido, consolidado e reconhecível.
Voltando ao que me parecer ser o ponto central da interpretação dessa expressão escrita na parede que temos vindo a tentar traduzir, esse a sério que me deixa perplexa. Na intenção da autora, essa seriedade está, parece-me, ligada a uma escrita num contexto determinado. Escrever mais a sério pode ser escrever de forma a poder apresentar essa produção para que ela possa ser validada por uma entidade editora, e assim ser decidido a favor da sua publicação. Ou seja, está diretamente relacionado com instâncias de validação externa. Na verdade, o que procuramos quando escrevemos algum conteúdo nesses murais é precisamente uma validação externa imediata, também no sentido de sem mediação: é um assunto a ser tratado diretamente entre autor e leitor. De facto, isso pode enfraquecer a potência da escrita que seria vertida em textos mais extensos e coesos, posteriormente levados à consideração dessas outras instâncias de validação, por sua vez mais sérias, uma vez que dirigidas por profissionais competentes que sabem o que estão a fazer. Mas essa instantaneidade é muito tentadora. Para as gerações mais novas, ela pode mesmo ser mais do que irresistível: ser estrutural.
Sherry Turkle, em Alone Together (2011), descreve aquilo a que chama the collaborative self. Esta psicanalista, que se dedica à relação do sujeito com as tecnologias digitais, observa que muitos dos adolescentes que nasceram na era digital e cresceram conectados com os seus amigos de uma forma virtual efetivamente precisam dessa rede de validação externa dos seus próprios sentimentos. Não são capazes de lidar com um emergente sentimento de tristeza, por exemplo, sem escreverem a algum amigo que o possa validar com algum tipo de reação. Nesses adolescentes existe uma dificuldade em lidar com os sentimentos sozinhos ou, dito de outra forma, uma capacidade de «partilhar sentimentos como parte de os descobrir» (Turkle, 2011: 176, em tradução livre). Em qualquer idade, desde que segurando nas nossas mãos a capacidade tecnológica de colocar os nossos pensamentos por escrito num mural, estes podem ser validados de forma imediata, apenas dependente de que alguém se encontre disponível para o ler. E isto é impressionante.
Por outro lado, o apelo e até a valorização desta validação sem mediadores não bate certo com um preconceito que se tem instalado até aqui em relação à autopublicação. Tantas vezes, ela é vista como uma espécie de batota na tentativa de entrada para o círculo dos autores publicados (com toda a seriedade que isso implica). Não conseguir a validação de uma instituição de legitimação como uma editora é frequentemente visto como um fracasso, e a autopublicação uma espécie de válvula de escape para quem não consegue acomodar em si esse sentimento de suposta derrota. Este preconceito não tem, porém, em conta o sucesso sob todas as perspectivas de autores que em algum momento se autopublicaram, como por exemplo João Cabral de Melo Neto e a sua prensa manual, imprimindo pequenos livros com o selo O Livro Inconsútil.[2] Não me parece que a ausência de uma instância de legitimação externa nesses livros tenha deixado a menor nódoa na obra do poeta. Por outro lado, num extremo oposto que serve o mesmo propósito de questionar o papel dessas instâncias, relembro que Adélia Prado conseguiu publicar a sua obra de estreia apenas depois de Carlos Drummond de Andrade a elogiar publicamente e recomendar a sua publicação.[3] Veja-se que até para ser validada por uma instância de legitimação, Prado precisou de subir um degrau intermédio, sendo validada primeiro por um elemento já legitimado, num esquema de entrada no círculo dos autores publicados quase maçónico (para ser um, peça a um). Em ambos os casos, a via de entrada no círculo dos publicados não parece ser relevante quando olhamos para a qualidade da obra — pelo menos à luz dessa outra instância de legitimação, com um carácter e critérios sem dúvida mais inefáveis: a posteridade.
Um outro tema sensível nesta questão da avaliação de qualidade e validação por pares é o dos concursos. Concursos podem constituir-se também como uma instância de legitimação. Mas seria bom avisar o candidato exatamente em que consiste um concurso, para que ele saiba gerir as emoções que qualquer resultado sempre acarreta (e lembrar também que a probabilidade de acerto é sempre estatisticamente mínima). Um concurso não elege necessariamente o melhor texto, simplesmente porque não existe tal coisa, em abstrato e sem contexto. Ganha um concurso o trabalho que melhor corresponde aos requisitos daquela edição do concurso, avaliados por aquele júri, segundo os critérios que a entidade promotora do concurso valoriza. Sublinho: não ganha o melhor trabalho (porque, repito, não me parece que exista tal coisa como um melhor em termos absolutos); ganha o trabalho que melhor corresponde àqueles critérios específicos, definidos por uma entidade específica, e tal como avaliados por aquele júri em concreto. Quando uma obra não ganha, tudo o que isso diz dessa obra é que não era aquela que correspondia melhor aos critérios específicos daquele concurso, segundo a perspectiva daquele júri. Ou mesmo que não se adequa ao contexto, ao tom, ou ao propósito que a entidade promotora do concurso procura. Não considero isto parcialidade; vejo isto como um caderno de encargos, algo a que quem presta serviços criativos está acostumado. O júri é encarregado de avaliar se o trabalho cumpre ou não os requisitos pedidos. Mesmo que não cumpra, pode ainda ser um excelente trabalho! Simplesmente não levará, naquele momento, o selo daquela instância de legitimação específica.
Em 1977, Rocky, com Sylvester Stallone, ganhou o Óscar para melhor filme. Nesse ano, entre os nomeados encontrávamos Taxi Driver, realizado por Martin Scorcese, com a brilhante interpretação de Robert De Niro. Rocky estava nomeado para dez Óscares, ganhou quatro. Taxi Driver estava nomeado para três e não ganhou nenhum (nem o filme como um todo, nem De Niro como ator principal nem Jodie Foster como atriz secundária levaram para casa a cobiçada estatueta naquela noite). Rocky é um filme melhor do que Taxi Driver? A interpretação de Sylvester Stallone é melhor do que a de Robert de Niro? Para a Academy of Motion Picture Arts and Sciences, sediada em Beverly Hills, representada pelo júri a quem ela delegou essa escolha no ano de 1977, a resposta é: «Sim». Para benefício de todos, o filme preterido pela Academia encontrou outras formas de se legitimar e chegou até nós, aparentemente, sem o orgulho ferido. Mas quantas obras excelentes ficaram por ver, ler ou ouvir por não ter conseguido passar essa barreira da legitimação? Felizmente, essas obras têm sempre a hipótese de ser proclamadas ao vento, sussurradas ao ouvido, lançadas em avião de papel, enviadas por carta postal — ou mesmo de ser escritas em paredes.
[1] Por curiosidade, não aquela na qual mais se reflete sobre as várias Materialidades da Literatura.
[2] Leia-se Priscila Monteiro (2017), «Um retrato inconsútil: João Cabral de Melo Neto, editor e impressor brasileiro». In Afluente: revista de letras e linguística, v. 2, n. 4, jan./abr. 2017.
[3] Escolho deixar de parte questões de género que eventualmente poderão ter estado presentes neste processo, sobre as quais muito haveria a dizer.
Bibliografia
Turkle, Sherry. 2011. Alone together: why we expect more from technology and less from each other. Nova Iorque, Basic Books (Perseus Books).