Uma mulher, encontrando-se às cinco da manhã junto de uma igreja e com a bexiga cheia, tem vontade de urinar contra a parede da igreja. A cena ocorre em Jerusalém, o romance de Gonçalo M. Tavares. Chamo a atenção para a preposição escolhida para expressar o desejo desta mulher: esse contra. Ela é bastante significativa — denota uma direção de encontro violento. Mas há aqui um problema: é que nenhuma mulher é capaz de urinar contra o que quer que seja.[1]

Deixar escorrer o chichi pelas pernas abaixo, sim, pode. Mijar por cima de uma superfície horizontal (de uma lápide, de um canteiro florido, de uma mesa bem posta), sim, pode. Pode, conceptualmente, mostrar a sua atitude contra urinando, mas se o fizer, será de uma forma mais subtil, não se podendo apoiar nessa preposição (provavelmente terá, sim, que se apoiar, mas em alguma outra estrutura, com propriedades mais sólidas). O que a Mylia, a personagem de Jerusalém, causa notório transtorno. 

É certo que a relação entre o corpo e a linguagem é um tema importante para Gonçalo M. Tavares.[2] Podíamos pensar que Mylia escaparia, assim, através da linguagem, às limitações do próprio corpo. Barthes ensina, na sua Lição, como a linguagem pode ser um lugar hermético — fechado, constrangedor, limitado e limitante — do qual só saímos por meio de alguma espécie de batota, de trapaça. Uma dessas trapaças possíveis é a literatura. Mesmo que a linguagem seja limitada, é com ela que produzimos algo que nos permite sair dela mesma, e até de nós mesmos. Mas mesmo dentro do espaço ilimitado da literatura, Mylia acaba por ter de aceitar que não é capaz. O seu corpo não foi desenhado para levar a cabo a ação pretendida, com a atitude idealizada. Existe uma impossibilidade fisiológica de direcionar com precisão aquilo que o seu corpo rejeita como impuro. A mulher não está fisiologicamente apetrechada para excretar as suas toxinas como ato de violência contra algo ou alguém.

Da mesma forma, uma mulher não pode vir-se contra, ou para dentro de um homem, ou mesmo de outra mulher. Essa capacidade de projetar, ou injetar, a sua potência para dentro de um invólucro humano que o recolha está-lhe vedada.[3] Tão pouco pode vir-se para cima, para baixo ou para o lado de. Uma mulher atinge o orgasmo num movimento íntimo, interior. Pode sentir espasmos musculares, contrações na zona pélvica, elevação da temperatura e/ou rubor; mas nada disso é contra, em, entre, para, ou por. Uma mulher vem-se sem preposições. 

Algo que a mulher pode, sim, é acolher dentro: o sémen; mais tarde, o feto. O corpo da mulher está virado para dentro, em vários sentidos; está predisposto a acolher e nutrir. A vagina expande para que o pénis do seu amante caiba. O útero cresce e todos os outros órgãos internos se reorganizam para abrir espaço para o outro, seu filho, dentro de si. Note-se que nem todos os homens estão dispostos a acolher partes de outros seres humanos dentro de si.

Por outro lado, só às mulheres é permitido derramar leite sobre, num gesto irrigador, de fertilidade. Uma irrigação que pode ter várias forças e consequentes simbolismos — variando entre um esguicho forte quando, distraído da sucção, o bebé vira a cara à mama, ou um pingar meloso, quase imperceptível, quando a mãe toma um banho quente e relaxante.

Caetano invoca esta característica da mulher na letra de «Vaca profana», onde começa por tentar, precisamente, esse tipicamente masculino movimento de agressão pelos fluidos: «Dona das divinas tetas / derrama o leite bom na minha cara / e o leite mau na cara dos caretas», mas vai ganhando bonomia e poder feminino, numa progressão tão característica do perdão, passando por uma fase de indiferença. Segue em crescendo desde «Quero teu leite todo em minha alma / nada de leite mau para os caretas» até ao benevolente «Deusa de assombrosas tetas / gotas de leite bom na minha cara / chuva do mesmo bom sobre os caretas». O que contrasta com a enunciação, de um teor semelhante, mas agora sem hesitações, «Eu vou pingar até em quem já me cuspiu, viu?», cantada por uma grande mulher, Elza Soares, e escrita por outra grande mulher, Tulipa Ruiz.

Não conheço descrições, em literatura, do momento em que o leite começa a surgir na mama e se dirige ao mamilo da mulher. Pela mama da mulher passa uma espécie de calafrio quando o seu filho começa a sugar o mamilo, que faz com que o leite comece a ser distribuído. É tanto esse movimento físico de sucção, como o sentimento de amor pelo filho que alberga no seu colo, que libertam as hormonas necessárias para que isto possa ocorrer. Na ausência do filho, ver fotografias ou ter pensamentos sobre ele podem fazer o mesmo efeito de intumescimento da mama e início da provisão de leite. As semelhanças com a ejaculação masculina são notórias, mesmo que não sejam fáceis de encarar ou interpretar.

Ainda sobre a amamentação e a linguagem, é curioso notar que o momento, horas ou dias após o parto, em que o corpo da mulher começa efetivamente a produzir leite, tanto se pode chamar descida do leite como subida do leite — tendencialmente subida do leite em Portugal e descida do leite no Brasil. O que nos leva a supor que a referência para este movimento da mulher não está relacionada com o seu próprio corpo mas sim com os polos terrestres.

É, aliás, natural para a mulher estar ligada a movimentos à escala do cosmos. O seu ciclo menstrual tem, grosso-modo, 28 dias, tal como o ciclo da lua. Assim como a lua tem esse ciclo dividido em quartos, também a mulher passa por várias fases dentro desse ciclo, a mais evidente das quais sendo o período menstrual: a destruição de tudo o que se preparou, no caso muito provável de não ter servido para acolher um embrião. O ciclo termina com a rejeição e expulsão, tantas vezes dolorosa, dessa parte da mulher que se preparou para acolher dentro de si, em vão.

Em rigor, se pensássemos apenas na ovulação, a mulher estaria fértil por apenas 48 horas em cada ciclo. Essa é a duração máxima do óvulo, que rapidamente se torna inviável após ser libertado pelos ovários. No entanto, a janela fértil de cada mulher é muito mais longa do que isso: chega a preencher perto de metade de cada ciclo. É porque o corpo da mulher se prepara para acolher, de inúmeras formas, incluindo a alteração de viscosidade dos seus mucos para facilitar a progressão ou fixação do esperma, que esta janela se expande. A mulher é capaz de preservar dentro de si esperma viável por até cinco dias, mesmo que o seu próprio óvulo não resista mais do que dois. Fala-se muito pouco sobre o facto de que a fertilidade da mulher é condicionada sobretudo por esta sua capacidade de acolher o homem. Ao homem cabe a capacidade fisiológica de projetar, atirar (dentro, contra) e à mulher cabe acolher ou não acolher. O poder que ela tem reside nesta escolha. Que, muito infelizmente, lhe pode ser negada de várias formas.

Mas não prosseguirei por aí. Aquilo que quero dizer, re-invocando o título deste ensaio e retornando àquele contra que me intrigou, é simples. Que à mulher só lhe é permitido projetar a sua urina sobre superfícies horizontais, previamente abatidas. Não as verticais. Mas é preciso não subestimar a capacidade da mulher — às vezes, usando a força; tantas outras, a doçura — para abater superfícies verticais.

[1] Respeitosa excepção seja feita às mulheres trans que tenham mantido a genitália masculina.

[2] Sobre a dicotomia, em Gonçalo M. Tavares, do “corpo-máquina-masculino” e o “corpo-máquina-feminino”, leia-se também, de Pedro Eiras, «O Senhor Henri — III», em A Moral do Vento: Ensaio sobre o corpo em Gonçalo M. Tavares, p. 193-195. Aconselho ainda o trabalho de uma sua excelente leitora, Raquel Gonçalves; por exemplo em «A voz na escrita ou “um belo ritmo alfa” – Os ‘casos’ de Herberto Helder e Gonçalo M. Tavares» (2021), em www.voxmedia.uc.pt.

[3] Exceção feita também para o ainda pouco estudado fenómeno da ejaculação feminina ou squirting.

 

Referências:

Barthes, Roland (1988) Lição. Lisboa, Edições 70.

Eiras, Pedro (2006). A moral do vento: ensaio sobre o corpo em Gonçalo M. Tavares. Lisboa, Caminho.

Gonçalves, Raquel (2021). «A voz na escrita ou “um belo ritmo alfa” – Os ‘casos’ de Herberto Helder e Gonçalo M. Tavares». Coimbra, Vox Media. http://www.voxmedia.uc.pt/index.php/2021/02/09/a-voz-na-escrita-ou-um-belo-ritmo-alfa-por-raquel-gonalves-ensaio-convidado/

Ruiz, Tulipa (2018). «Banho», no álbum Deus é mulher, de Elza Soares.

Tavares, Gonçalo M. (2006). Jerusalém. Lisboa, Círculo de Leitores.

Veloso, Caetano (1986). «Vaca profana», no álbum Totalmente demais, Philips.


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