Originalmente publicada na Radical Philosophy

Amia Srinivasan é Chichele Professor of Social and Political Theory em All Souls College, Universidade de Oxford, e consultora de edição da London Review of Books. A sua colecção de ensaios, O Direito ao Sexo: Feminismo no Século XXI,[1] foi publicada em 2021. Nesta entrevista para a Radical Philosophy,[2] conversa com Victoria Browne, Hannah Proctor e Rahul Rao.

 

Radical Philosophy: Ao longo das últimas décadas, assistimos a uma importante reactivação feminista de autoras, ideias e textos da chamada «segunda vaga». Shulamith Firestone, por exemplo, recebeu toda uma nova vida na teoria feminista, e o mesmo aconteceu com o movimento «Wages for Housework». Poderia comentar a relação deste fenómeno com o seu próprio trabalho, em particular o papel que Catharine MacKinnon desempenha em O Direito ao Sexo?

Amia Srinivasan: Em O Direito ao Sexo vou beber muito à obra e às ideias de gerações anteriores de feministas, sobretudo da tradição anglo-americana. Firestone e MacKinnon são referências importantes, assim como o são Angela Davis, Adrienne Rich, bell hooks, o Combahee River Collective e as feministas do movimento «Wages for Housework» tais como Silvia Federici, Mariarosa Dalla Costa e Selma James. Vou beber à obra delas de um modo que procura ser respeitoso sem ser reverente. Por exemplo, julgo que há muito de admirável nas considerações de MacKinnon acerca do sexo heterossexual, da função ideológica da pornografia e da natureza do estado; e, no entanto, sou também profundamente crítica do seu legalismo, da sua defesa do poder coercivo e carcerário do estado e da sua aposta naquilo que considero ser uma política simbólica que dá (involuntariamente) prioridade à punição de homens em vez de procurar melhorar a vida das mulheres em situações mais vulneráveis. Para mim — tal como para Firestone, Davis e Federici — a classe e o capital têm de ser temas centrais da análise feminista; ao contrário de MacKinnon, considero que a dominação com base no género se funda acima de tudo no papel atribuído às mulheres ao nível da reprodução biológica e social, não no sexo heterossexual per se.

Algumas das minhas leitoras foram surpreendidas pela minha disposição para dialogar com essas feministas, em particular MacKinnon e Andrea Dworkin, que defenderam o crescimento do estado carcerário e tentaram «salvar» as trabalhadoras do sexo, impondo uma série restrições à sua possibilidade de trabalhar legalmente e, desse modo, com um pouco mais de segurança. Mas gostaria de insistir que, ao nível do método, tudo no âmbito (e mesmo fora) do cânone feminista deve estar à nossa disposição teórica e política. O que é que significaria dizer que uma pensadora tão robusta e imaginativa — e, já agora, politicamente consequente — quanto MacKinnon não deve ser considerada como um recurso feminista? Devemos dizer o mesmo de Firestone? De Valerie Solanas? Gosto desta passagem do ensaio «On Liking Women» (2018) de Andrea Long Chu, no qual ela insiste que devemos ler Solanas com uma caridade que algumas feministas considerariam indevida: «[S]ó num espírito de generosidade é que um texto tão propenso a ferir sensibilidades quanto o SCUM Manifesto poderia alguma vez ter sido recebido. Trata-se, afinal de contas, de um panfleto que defende o assassinato em massa e, imagine-se, danos materiais.» 

Ao dizer que todas estas pensadoras e outras além delas devem ser entendidas como estando ao nosso dispor enquanto feministas, não estou a defender uma visão segundo a qual as ideias devem ser marcadamente separadas — ou consideradas independentemente — das suas consequências no mundo. Devemos pensar sobre o que é que as ideias mobilizam, produzem e preservam. É importante pensar sobre, por exemplo, aquilo que o feminismo anti-pornografia e anti-prostituição trouxe ao mundo: não apenas directamente, ao tornar ainda mais difíceis as vidas de algumas das mulheres em situações de maior vulnerabilidade, mas também indirectamente, ao oferecer uma máscara carcerária a algumas das mais profundas crises sociais e económicas produzidas pelo capitalismo. E no entanto, o feminismo anti-pornografia e anti-prostituição diz muitas vezes coisas, ao nível do diagnóstico e não da prescrição, que são profundamente esclarecedoras no que diz respeito ao funcionamento do poder e da ideologia masculina. Sigo aqui, em parte, a brilhante defesa da descriminalização do trabalho sexual de Juno Mac e Molly Smith, Revolting Prostitutes (2018). Uma das muitas coisas extraordinárias que o livro faz é ilustrar o modo como podemos dialogar de forma intelectualmente generosa com as nossas adversárias, mesmo sendo implacavelmente críticas das suas posições. Trata-se de um bom lembrete de que «dialogar com o outro lado» não tem de conduzir a uma política desradicalizada ou centrista — algo que Sophie Smith muitas vezes enfatiza no seminário de pós-graduação «Feminism and the Future» que leccionamos em conjunto.

 

RP: Interessa-nos o funcionamento das dinâmicas intergeracionais no seu livro, visto que nele dialoga quer com gerações mais velhas de pensadoras feministas quer com alunas mais jovens. Por exemplo, em que medida se encontra envolvida em desacordos produtivos com as suas alunas? E como é que distinguiria o seu ênfase na importância da educação e pedagogia da prática de consciencialização política?

AS: É demasiado fácil retratar o desacordo entre feministas como, invocando Lorna Bracewall, «uma luta de gatos» — ou, invocando Kathi Weeks e Maggie Nelson, um drama intergeracional de mães e filhas. E no entanto, como observou recentemente Sophie Lewis aquando de uma visita ao meu seminário de pós-graduação, estas dinâmicas intergeracionais, matrilineares, no seio do feminismo têm muito que se lhe diga. Para ser muito franca, identifico em muitas feministas mais velhas (embora não todas — Ann Snitow, que faleceu em 2019, é um esplêndido contra-exemplo) um intenso desconforto a respeito da irrelevância e obsolescência. É claro que, sob o patriarcado, as mulheres têm todas as razões para estarem preocupadas com a irrelevância e a obsolescência à medida que envelhecem. Mas demasiadas vezes, as feministas mais velhas canalizam a sua ira contra mulheres mais jovens, que julgam insuficientemente deferentes ou preocupadas com as coisas erradas — como a fluidez de género ou o carceralismo, em vez de (por exemplo) a violência sexual ou as desigualdades salariais. As feministas mais velhas tratam demasiadas vezes as gerações mais jovens de feministas como filhas ingratas que estão a tentar acabar com elas, em vez de camaradas de uma luta colectiva, ainda que uma luta cujas estratégias e objectivos têm de mudar com o tempo.

Trata-se de uma dinâmica infeliz, que no seu nível extremo leva a um cinismo profundo e anti-intelectual, que deturpa o trabalho das feministas mais jovens e faz dele espantalho. Considero a recensão do meu livro que Katha Pollitt escreveu para a Dissent como um caso desanimador e paradigmático disso mesmo: «desanimador» porque se esperaria melhor quer da Dissent quer da própria Pollitt, dado o seu importante trabalho sobre o aborto. No final da recensão, Pollitt caracteriza as preocupações do meu livro — que ela loquazmente resume como «incels e pornografia e professores que dormem com os seus alunos» — como «aquelas que interessam particularmente à juventude», sugerindo ao mesmo tempo que as verdadeiras feministas, adultas, se ocupam «dos problemas mais importantes das vidas da maioria das mulheres». Ela refere, como exemplos destes problemas, «movimentos nacionalistas semi-fascistas em todo o mundo» que, diz ela, «não são mencionados» no meu livro, e «os milhões de mães que foram forçadas a abandonar os seus empregos, algumas permanentemente, quando a pandemia levou ao encerramento de creches e escolas». Deixarei de parte os factos de que a pandemia de COVID-19 estava ainda no seu início quando entreguei o manuscrito de O Direito ao Sexo, que falo todavia das muitas mulheres que foram despedidas nessa altura (e muitas vezes encontraram no trabalho sexual uma alternativa), que dedico um espaço considerável à luta de mulheres pobres por empregos decentes e cuidados infantis públicos, e que discuto a emergência do autoritarismo de direita nos Estados Unidos, na Índia e noutros lugares, e mesmo as suas complexas ligações ideológicas e materiais ao fenómeno incel. A questão mais importante é esta: o que é que leva Pollitt a pensar que as preocupações centrais do livro — a violência sexual, a dominação racial, o estado, as patologias do capitalismo, a discriminação sexual, a política do desejo sexual, o trabalho sexual, a família — apenas «interessam particularmente à juventude»? Alguém poderia, com o mesmo nível de (in)sensatez, perguntar acerca do próprio trabalho de Pollitt: será que o aborto é um «problema da juventude» porque as pessoas após a menopausa não podem engravidar com facilidade?

O absurdo da pergunta reside na sua pressuposição de que o destino das mulheres jovens não está de modo algum ligado ao destino das mulheres mais velhas, de que as mulheres jovens nunca se tornam mulheres mais velhas, de que o tratamento das mulheres jovens enquanto objectos sexuais e instrumentos de reprodução biológica nada tem que ver com o tratamento das mulheres mais velhas como inúteis à sociedade. De facto, o absurdo da ideia de que a dominação racial e sexual ou o carceralismo são «problemas da juventude» faz-me pensar que aquilo que Pollitt lamenta verdadeiramente não é que as minhas preocupações não se apliquem a ela ou a outras mulheres da sua idade; mas simplesmente que essas não são as suas preocupações.

Deixando de lado esta escaramuça particular, julgo que a questão profunda aqui é: O que é que significa dar lugar a pessoas mais jovens num movimento social? Como é que alguém se habitua à ideia de que um movimento que julgou até então ser seu nunca é, na verdade, apenas seu, mas que o destino deste está sempre para além do seu próprio controlo? E que, efectivamente, isso é uma coisa boa? O que é que significa, por outras palavras, construir uma coligação radical com o futuro?

Para que fique claro, eu não estou a dizer que esta dinâmica intergeracional tenha um só sentido: há muita conversa redutora entre feministas mais jovens que vêem a segunda vaga como um movimento «branco» ou «TERF», que caricatura uma tradição política muito complexa a fim de a descartar— ignorando assim, inter alia, todo o trabalho de feministas de cor ou transfeministas da «segunda vaga». Isto deve-se certamente a alguma ignorância, mas está aqui também operante uma espécie de chauvinismo do presente, bem como, receio, um desejo patriarcal de ver as mulheres mais velhas como irrelevantes.

Quanto às minhas alunas: é difícil generalizar, mas julgo que tendo a ser mais crítica da família nuclear do que elas, mais atenta à fragilidade e falibilidade humana e, portanto, menos moralista, e mais convencida de que a transformação social necessária irá envolver genuína perda e sacrifício. Mas talvez esteja realmente a descrever a diferença entre a minha actual personalidade e a anterior. No caso das minhas alunas de licenciatura, detecto com frequência uma espécie de desejo de consciencialização. Escrevi recentemente sobre isto na New Yorker: «Muitas [das minhas alunas] chegam ao feminismo em busca de camaradagem, compreensão, comunidade. Querem reunir-se para articular a verdade implícita da sua experiência, e para ler textos feministas importantes que lhes revelarão o mundo a que devem aspirar politicamente.» Mas, como escrevi, estas esperanças acabam por ser inevitavelmente um tanto ou quanto frustradas — tal como aconteceu, aliás, com as feministas do final da década de 1960 e da década de 1970. Em particular, a convergência ideológica e a compreensão mútua acabam quase sempre por dar lugar a diferenças e desacordos — entre as próprias alunas, e entre os textos que lêem. Um dos meus objectivos é mostrar às minhas alunas que traçar os contornos do desacordo feminista pode ser intelectualmente produtivo, até empolgante, e mostrar-lhes que uma forma profunda de transformação pessoal é possível através do difícil e minucioso trabalho de ler, interpretar e argumentar.

Jane Gallop, em Feminist Accused of Sexual Harassment (1997), um livro que discuto num contexto diferente em O Direito ao Sexo, descreve como é que era ser aluna nos primórdios do feminismo académico, quando professoras e alunas eram igualmente especialistas, ou não-especialistas, e eram, portanto, capazes de se ver a si próprias como pares numa busca colaborativa de conhecimento e libertação. Essa visão — que Gallop caracteriza como «corajosa, embora ingénua» — já não é possível na sala de aulas feminista contemporânea: «Alunas e professoras já não estão a descobrir o feminismo juntas; hoje, as professoras que já são feministas há décadas geralmente ensinam-no às alunas para quem este é uma novidade. Já não estamos a descobrir livros juntas; em vez disso, as professoras feministas ensinam os clássicos feministas que leram meia dúzia de vezes às alunas que os estão a ler pela primeira vez.» Julgo que esta descrição é fidedigna — e, como tal, não faz muito sentido aspirar (como Gallop) a um momento perdido de horizontalidade na sala de aula, ainda que procuremos formas de a tornar mais, mesmo que não perfeitamente, igualitária.

 

RP: No seu livro, aborda receios de moralismo e uma preocupação com o facto de que uma «crítica política do desejo pode ser demasiado facilmente mobilizada contra aqueles que são eles próprios marginalizados». Como resposta, distingue entre a transformação do desejo como um projecto «disciplinar» e como um projecto «emancipador». Há ainda um momento memorável em que discute uma carta que recebeu de um homem gay falando de como teve de «trabalhar» o desejo que sentia pelo seu companheiro gordo, e pergunta «será isto disciplina ou amor?» Poderia falar um pouco mais sobre a relação entre disciplina e emancipação, e entre disciplina e amor? Por exemplo, poderá algo que começa por ser disciplina tornar-se amor? Ou será que aquilo que explica a disciplina de alguém é o facto de ela já amar? Ou será que a disciplina se verifica porque essa pessoa quer amar, mas não ama ainda?

AS: Sim, tudo isso. «O amor dá trabalho» é um lugar-comum terapêutico porque é verdadeiro. Contraponho retoricamente disciplina e amor — «será isto disciplina ou amor?» — mas o meu verdadeiro intuito é problematizar a distinção. Pode haver disciplina sem amor: «ficarmos juntos só por causa dos miúdos». Há amor sem disciplina: estar «apaixonado» caracteriza-se, inter alia, pela completa espontaneidade, e, aliás, por uma vontade que não é livre mas incessantemente dirigida ao objecto da paixão. Mas quando consideramos o amor num quadro temporal e alargamos o seu âmbito, toda a espécie de coisas — a volubilidade humana, a teimosia do outro, a nossa ânsia por mais, o fantasma das vidas não vividas — torna o amor difícil. A certa altura, temos de trabalhar para que as pessoas que amamos — amigas e amigos, amantes, camaradas, família — estejam bem. O amor entendido como paixão nada sabe sobre os desafios da existência temporal, e é por isso que lhe faz comichão a ideia de que o amor possa alguma vez dar trabalho, e muito menos requerer uma disciplina da vontade.

 

RP: Voltando à questão do moralismo, como é que podemos falar de ética sem ser moralista? E será que o problema é o moralismo em geral, ou o moralismo a respeito do sexo em particular? Por exemplo, no seu livro diz que «não há nada tão impregnado de política e, ainda assim, tão inviolavelmente pessoal» quanto o sexo. Muito possivelmente, contudo, o mesmo se poderia dizer da maternidade, e interessa-nos levar a comparação entre o sexo e a maternidade mais longe, a fim de interrogar as razões pelas quais o sexo é, muito possivelmente, uma esfera mais veementemente protegida do que a maternidade em termos de crítica política, e porque é que parece particularmente resistente a transformações que conduzam a uma maior justiça social. Por exemplo, parece-nos que argumentos a favor de um questionamento e reconcepção das formas existentes de desejo e prática maternal são recebidos com muito menor resistência no âmbito da teoria feminista/queer do que o mesmo tipo de argumentos acerca de formas existentes de desejo e prática sexual. Pode ser que isto seja o caso porque o sexo é habitualmente entendido como um assunto mais individual do que a maternidade/parentalidade (embora, claro, o sexo, incluindo o sexo consigo mesmo, seja inteiramente relacional). Mas será isto também devido a uma impressão de que há algo inerentemente «errado» no sexo (sexo sexy, entenda-se), em comparação com a maternidade/parentalidade? Assim, enquanto a educação das crianças seria colectivizada e o desejo maternal/parental redireccionado ou até eliminado numa sociedade feminista pós-revolucionária, o sexo continuaria a precisar, de alguma forma, do erotismo das relações de poder desiguais. Qual é a sua posição? Acha que este tipo de pressuposto está presente nos debates que o seu livro despoletou e, se sim, diria que este erotismo é algo que se aprende e, portanto, algo que se pode desaprender?

AS: Recusaria qualquer distinção acentuada entre «sexo» e «maternidade», embora as duas se possam certamente separar, uma vez que alguém se pode tornar mãe sem se envolver em qualquer actividade sexual e vice-versa. Com esta recusa, o que quero dizer é que uma crítica política integral do sexo tem de envolver uma crítica política da maternidade, e da própria parentalidade; de entre os textos que fazem isso — revelar a maternidade enquanto instituição política — o meu preferido é Of Woman Born de Adrienne Rich. Dito isto, claro que reconheço a assimetria que descrevem. Muita da teoria feminista/queer, desde The Dialectic of Sex de Firestone em diante, procura sujeitar a família, a maternidade e a educação infantil heteronormativas não apenas a escrutínio, mas a uma agenda transformadora. Enquanto isso, muita da teoria feminista e queer contemporânea tem receio de se envolver no tipo de crítica política do sexo e do desejo sexual que era tão familiar para as feministas radicais no final da década de 1960 e ao longo da década de 1970. O que é que se está aqui a passar? Como dizem, a família, tal como o sexo, é profundamente pessoal e, ao mesmo tempo, profundamente política.

Julgo que a resposta é difícil, mas permitam-me apresentar uma ideia. Para todos os tipos de conservadorismo — desde o conservadorismo social tradicional, de inflexão religiosa, ao neoliberalismo — a família nuclear heteronormativa tem uma importância central. (No que toca à importância contraintuitiva da família para o neoliberalismo, recomendo vivamente o livro de Melinda Cooper, Family Values, de 2017.) E, lamentavelmente, encontramos um apego semelhante à família nuclear heteronormativa em muitos quadrantes da esquerda contemporânea. (Richard Seymour tem um óptimo artigo recente sobre isto na Salvage, chamado «Abolition: Notes on a Normie Shitstorm», suscitado pela indignação de esquerda a respeito do novo livro de Sophie Lewis sobre a abolição da família.) Enquanto isso, a direita socialmente conservadora adora envolver-se numa crítica política do sexo e do desejo sexual: pense-se nas terapias de conversão gay e na histeria em torno das crianças trans. Pelo que me pergunto se a resposta não será fundamentalmente dialéctica — ou seja, que as feministas contemporâneas se querem distanciar (por excelentes razões) de uma direita ressurgente que é simultaneamente «pró-família» e «anti-sexo». O resultado é um feminismo que é «anti-família» e «pró-sexo».

Vou fazer mais uma observação. É verdade que, como dizem, o feminismo e a teoria queer dos nossos dias são, em geral, muito receptivas a críticas transformadoras da maternidade e da família. Mas, sobretudo no seio do feminismo, há ainda uma suposição de que a reprodução social (e, portanto, biológica) é uma coisa boa. Vemos isto sobretudo em certos quadrantes da teoria da reprodução social contemporânea. Ora, eu não sou propriamente uma anti-natalista ou uma ecologista radical — estas são visões do mundo que, implicitamente, e por vezes explicitamente, lesam sempre as mulheres pobres «híper-férteis» do sul global. Mas não creio que a reprodução social seja uma coisa boa per se — qual é ao certo esse «mundo» que tanto nos interessa reproduzir? — e quero perguntar o que é que poderia significar não adiarmos constantemente o projecto do florescimento humano para a geração seguinte, quer individual quer colectivamente. Pelo que detecto um apego atávico à ordem reprodutiva até mesmo entre aparentes críticas radicais desta.

 

RP: Isto leva-nos à nossa próxima pergunta, que é: se o desejo não é pré-político ou apolítico, como é que podemos falar de um desejo livre ou libertador, «livre das amarras da injustiça»? Será que isso funciona como uma espécie de ideal regulador?

AS: Ora bem, o simples facto de algo ser político — isto é, moldado pelos nossos esquemas de ordem social e cooperação vigentes — não quer dizer que seja inevitavelmente injusto. Mas poder-se-ia perguntar: o que é que precisa exactamente de ser «libertado», se tão pouco do desejo pode ser visto como precedendo o político? Isto é análogo ao problema da liberdade agencial a partir do momento em que reconhecemos a nossa constituição mútua enquanto sujeitos. A solução passa por repensar a nossa ideia de libertação: já não a emancipação de «eus» transcendentes, que se auto-constituem, mas um entendimento mais compatibilista que encontra espaço para ideias como autonomia, respeito, reflexão, crítica ou auto-compreensão, num cenário de co-constituição mútua. Num certo sentido, precisamos de dizer, como A. J. Ayer, que é completamente diferente termos uma arma apontada à cabeça ou sofrermos de abuso psicológico e sermos moldadas pela nossa própria Bildung. Mas, enquanto feministas, precisamos também de distinguir entre diferentes tipos de Bildung e perceber que toda uma série de aspectos da inculturação tomada como normal são, na verdade, perversos: que, sob o patriarcado, as meninas e as mulheres (e, aliás, muitos meninos e homens) são educadas com uma arma apontada às suas cabeças. Claro, tudo isto é uma nota promissória — e mais pode ser (e já foi) dito. Aqui, sim, julgo que um ideal regulador é uma noção útil. A libertação — do desejo, dos agentes — não é um estádio final, mas um processo.

 

RP: Interessa-nos também a incorporação de conceitos psicanalíticos de desejo no seu trabalho. Por exemplo, que tipo de entendimento da psique é que a sua discussão do desejo usa ou pressupõe? Podem os desejos ser conhecidos? E ainda a este respeito, se os «maus» desejos dos indivíduos forem entendidos na sua relação com estruturas opressivas da sociedade (i.e., situada no mundo exterior), será que não desembocamos num entendimento do desejo que o assemelha à falsa consciência? Como é que os conceitos psicanalíticos, tais como o inconsciente, complexificam o modo como se entende que a sociedade molda/influencia o desejo (o que, por sua vez, teria impacto no modo como o desejo poderia ser «libertado»)? Estes tipos de perguntas foram, claro, pontos de contestação no âmbito do movimento de libertação das mulheres e abordadas por muitas das pensadoras que discute em O Direito ao Sexo. Como é que responderia aos tipos de crítica que Juliet Mitchell dirigiu a rejeições feministas de Freud em Psychoanalysis and Feminism (1974)? Por exemplo:

As críticas feministas a Freud reclamam que ele estava a negar aquilo que realmente acontece, e que as mulheres que ele analisou estavam meramente a responder a condições deveras opressivas. Mas não há tal coisa como uma mera resposta à realidade. A realidade externa tem de ser «adquirida». Negar que haja algo além da realidade externa leva-nos de volta à mesma proposição: trata-se de uma negação do inconsciente.  

AS: Os desejos podem por vezes ser conhecidos, e outras vezes não, ou não imediatamente pelo próprio sujeito. A psicanálise, a começar por Freud, tem muito a oferecer ao feminismo. Alerta contra concepções simplistas da psique que reduziriam o sujeito a um conjunto coerente e cognoscível de desejos, crenças e objectivos. Lembra-nos que as coisas muitas vezes não são como parecem ser: que o ódio pode ser amor, que uma fantasia pode ser um remédio, que demonstrações de força podem ser confissões de fraqueza. A questão é como conciliar a concepção freudiana da psique — que, no seu universalismo, e não obstante os próprios preconceitos de Freud, é, num certo sentido, profundamente igualitária — com a realidade política profundamente desigual da qual há muito a psicanálise se envergonha. O que é que significa, por outras palavras, olhar para todas as pessoas humanas como estando envolvidas em dramas universais de repressão — como, num sentido importante, crianças perdidas e contrariadas — e ao mesmo tempo reconhecer que, no mundo imanente da «realidade» social, algumas dessas pessoas são imensamente poderosas, quase intocáveis, e outras terrivelmente privadas de liberdade.

A pessoa que julgo fazer isto melhor e da forma mais convincente é, sem surpresas, Jacqueline Rose. Ela insiste em conciliar o que frequentemente se considera serem impulsos contraditórios — entre condenar a violência masculina e reconhecer a fragilidade psíquica da qual esta advém, entre procurar uma reparação legal para a violência sexual e reconhecer a essencial ingovernabilidade do sexo, e entre reconhecer a ubiquidade da dominação sexual masculina[3] e deixar em aberto a possibilidade de homens individuais se demarcarem do guião da masculinidade. Rose recusa não só um feminismo radical ortodoxo que vê o poder masculino como uma conquista perfeita e totalizadora; como também uma psicanálise ortodoxa que prefere desenfatizar, se não mesmo negar completamente, as diferenças «reais» de poder e meios materiais que nos dividem.

Podemos observar o importante trabalho político do quadro psicanalítico de Rose na sua discussão das identidades trans. Ela escreve: «O padrão da diferença sexual é implacável mas isso não significa que quem acredita que subscreve a sua lei saiba mais acerca do que se passa sob a superfície do que quem se submete menos voluntariamente. [...] A mulher ou homem “cis” — i.e., não-trans — é um engodo, o resultado de múltiplas repressões cujas histórias não vividas assomam à noite nos nossos sonhos.» Com isto, Rose lembra-nos que modos alternativos de ser sexuado e genderizado — diferentes modos possíveis de reagir face ao «padrão da diferença sexual» — assombram literalmente toda a gente, à noite. Ninguém, trans ou cis, tem uma relação perfeitamente harmoniosa com o guião socialmente construído do sexo/género: a psique humana é demasiado complexa e interessante para isso. Isto sugere que a política trans-excludente é, pelo menos em parte, movida por uma ânsia por parte das pessoas «cis» em reafirmar a sua própria fidelidade a uma ordem social que, na verdade, nem sequer as serve. Esta é apenas uma das formas como a incerteza, a instabilidade e a ambivalência tratadas pela psicanálise se podem afigurar politicamente produtivas para o feminismo.

 

RP: No seu livro, uma preocupação central é que o critério de «consentimento» coloque um entrave a uma crítica política dos desejos e práticas sexuais existentes, mas há ainda uma outra preocupação — também articulada por Katherine Angel —, que é que esse critério impeça a experimentação sexual e o cultivo do desejo porque assume que sabemos o que queremos do sexo antes de efectivamente o praticarmos, e possa assim parecer apartado da intimidade e imediatez dos encontros sexuais enquanto experiências que se desenvolvem no presente. Na obra de Angel, isto surge como um ponto sobre a temporalidade do desejo, i.e., que o desejo não existe previamente ao sexo mas, pelo contrário, é activado e emerge através de um processo de exploração mútua. Poderia falar-nos um pouco mais sobre isto, e sobre as actuais práticas e promoção da «educação para o consentimento» — nas universidades, por exemplo. Haverá alguma forma alternativa de as instituições combaterem os mitos da violação e a dominação sexual masculina?

AS: O modelo do consentimento, tal como Linda Martín Alcoff argumentou, é fundamentalmente jurídico — e, portanto, não nos devemos surpreender com o facto de ter sérias limitações enquanto critério não jurídico para o sexo ético. Numa sala de audiências, precisamos de um critério que distinga a agressão sexual criminosa do sexo, apesar de tudo, não criminoso — e o não-consentimento não serve mal esse propósito, constituindo certamente um progresso face a critérios anteriores, historicamente falando, como a «presença de violência». Mas porque é que haveríamos de supor que o consentimento é aquilo que distingue o sexo ético do sexo não-ético? Há duas considerações que mostram porque é que isto é um erro. Em primeiro lugar, há muito sexo eticamente repugnante que, enquanto feministas, não devemos querer tornar ilegal, a menos que queiramos reforçar ainda mais o poder do estado carcerário. Segundo — e este é um ponto que MacKinnon formula muitíssimo bem, embora eu e ela daí tiremos diferentes lições — o facto de haver consentimento é compatível com sexo eticamente duvidoso, dado que as mulheres (devido à sua formação cultural) muitas vezes consentem sexo que não querem ter. A este respeito, a mudança para um padrão de «consentimento afirmativo» não é de grande ajuda: temos agora o fenómeno de mulheres a dizer que sim a sexo (do modo como são culturalmente ensinadas a fazer) que não querem ter. O que nós queremos saber é quando é que as mulheres se sentirão encorajadas a afirmar o que querem e os homens deixarão de se excitar por «receberem» aquilo que as mulheres não querem dar. (Não quero com isto dizer que a educação para o consentimento seja inútil. Uma das minhas últimas alunas de doutoramento argumentou que, embora o consentimento possa não ser a marca do sexo eticamente aceitável, a educação para o consentimento pode muito bem fortalecer indirectamente aquilo que mais importa no sexo ético, como o respeito pelo outro e por si mesmo.)

O problema com o que acabo de sugerir — que o sexo ético implica que as pessoas se sintam livres para afirmar aquilo que querem e estejam em sintonia com o que os outros querem — é que pode parecer que estou a pressupor uma concepção ingénua do desejo. Acontece a toda a gente ter desejos conflituantes: por exemplo, desejar encenar uma fantasia de violação e não querer ser o tipo de pessoa que se excita com uma fantasia de violação. E, como disse anteriormente, aquilo que queremos é-nos muitas vezes opaco e não existe necessariamente numa forma estável antes do próprio encontro sexual. Há aqui uma questão de temporalidade, como diz Angel, e há também a sempre espinhosa questão do inconsciente. Pelo que temos de enquadrar o nosso ideal regulador de sexo ético temporalmente e ter em conta todas as complexidades próprias do sujeito com desejos ambivalentes. Para isso, temos de virar a nossa atenção para o carácter relacional do sexo: para o processo pelo qual as pessoas se envolvem numa exploração mútua — e, na verdade, numa co-constituição sexual — fundada em algo como o reconhecimento do outro. E temos de o fazer de um modo que não reforce o ideal reaccionário do casal monogâmico, apaixonado e a longo prazo. Qualquer ideal de sexo ético que valha a pena tem de ser capaz de tomar o sexo anónimo, ocasional, como paradigmático.

 

RP: Continuando neste tema, um dos principais objectivos da «educação para o consentimento» parece ser tornar a afirmação e a negação do consentimento inteligíveis. No entanto, a sua recensão de Loving Animals de Joanna Bourke para a London Review of Books termina num tom de cepticismo acerca da possibilidade de o consentimento, quer de humanos quer de animais não-humanos, ser alguma vez completamente inteligível dada a vontade de poder que parece animar o impulso sexual. Podemos estar mais certos da nossa incapacidade para confiar nos nossos juízos acerca daquilo que um animal quer, mas, dada a sua problematização radical do consentimento, será que podemos confiar na nossa capacidade de perceber exactamente o que outro humano quer?

AS: Sim, julgo que podemos, às vezes: é um daqueles casos em que percebemos intuitivamente, embora, claro, algumas pessoas pecam por excesso de confiança acerca daquilo que os outros querem. Julgo que é essencial não nos tornarmos epistemicamente preguiçosos em relação às outras pessoas, sobretudo àquelas que «conhecemos bem».

 

RP: São claras as suas reservas em relação a apelar ao estado para implementar medidas que respondam a reivindicações feministas, sejam elas a «redistribuição» do desejo, a regulamentação da pornografia ou a punição mais severa da violência sexual. Onde é que isto a posiciona em relação ao feminismo socialista e ao socialismo em geral, que tem procurado assumir o controlo do estado mesmo que apenas para acelerar a sua queda? Como é que devemos, por exemplo, entender a candidatura de Angela Davis à vice-presidência dos Estados Unidos?

AS: Votaria sempre em Angela Davis, obviamente. Mas para compreender o estado, e a sua relação particular com o feminismo, recorro a MacKinnon. Em Toward a Feminist Theory of the State (1989), ela escreve: «foram deixadas ao feminismo estas alternativas tácitas: ou o estado é um instrumento fundamental de melhoria das condições das mulheres e transformação do seu estatuto, sem uma análise (e, portanto, uma estratégia) deste enquanto masculino; ou as mulheres são entregues à sociedade civil, que para elas mais se tem assemelhado a um estado de natureza. O estado e, com este, o direito têm sido ou omnipotentes ou impotentes: tudo ou nada.» Julgo que isto está fundamentalmente certo. O feminismo tem de rejeitar quer uma política de esquerda que aconselha uma simples rejeição do poder estatal e um recuo em relação ao mesmo, quer uma política liberal que recorre incessantemente ao estado. Nenhuma delas servirá as mulheres enquanto classe. (Algo semelhante pode ser dito a respeito das comunidades negras nos EUA, que muitas vezes dão por elas a sofrer quer de excesso de policiamento quer de sub-policiamento.) O próprio estado tem de ser um terreno de luta feminista; como diz MacKinnon, isto implica compreender o estado como masculino (e poderíamos acrescentar: branco, hétero e capitalista) de modo a saber como abordá-lo estrategicamente e, em particular, como advogar reformas com o potencial de conduzir a mudanças transformadoras. Em geral, não concordo com as prescrições estratégicas específicas de MacKinnon — estas envolvem, julgo eu, um optimismo excessivo a respeito do direito, um optimismo que não faz plena justiça à sua própria visão do estado como ideologicamente masculino. Mas o seu diagnóstico do problema, no que toca ao feminismo e ao estado, permanece inteiramente oportuno.

 

RP: Percebemos que os seus antecedentes e treino vêm da filosofia analítica e interessa-nos a sua relação com a filosofia analítica hoje em dia e o modo como identificaria as suas afinidades filosóficas e posicionamento. Por exemplo, num número recente da Radical Philosophy (RP 2.02), Alice Crary defendeu que a filosofia feminista analítica assume que «a neutralidade ética é um ideal regulador de todo o pensamento direccionado para o mundo» que é «fatal para a política feminista»; e, noutro contexto, a própria Amia falou sobre a necessidade de a filosofia ser mais orientada ou direccionada para o mundo. Poderia especificar um pouco o que quer dizer com isso? Concorda com o diagnóstico de Crary, i.e., que o principal problema é a concepção analítica de razão? E pensa que a disciplinaridade é também, aqui, parte do problema?

AS: Sou uma grande admiradora do trabalho da Alice Crary e tenho muito em comum com ela filosoficamente. Há uma diferença na medida em que eu não estou particularmente dedicada à questão de como devemos pensar sobre a razão. Em vez disso, estou muito mais envolvida em questões sobre como devemos pensar sobre o conhecimento. Mas concordamos que a adopção de perspectivas com uma carga ética é uma condição-base para ver o mundo correctamente — para pensar bem ou vir a saber — e que devemos rejeitar aspirações a uma concepção eticamente neutra do mundo social e político, incluindo o mundo dos animais não-humanos. Julgo que a diferença ao nível dos nossos enfoques — racionalidade vs. conhecimento — tem que ver com diferenças ao nível das nossas formações filosóficas e talvez não seja muito substancial.

É importante salientar aqui, e sei que a Alice concordaria, que o ideal de neutralidade ética não caracteriza toda a filosofia analítica, embora caracterize parte dela. (E caracteriza também, talvez surpreendentemente, alguma Teoria Crítica contemporânea.) Figuras como Elizabeth Anscombe, John McDowell (o orientador de doutoramento da Alice), Cora Diamond e o meu brilhante colega de Oxford A. W. Moore partilham, de uma maneira ou de outra, a ideia de que a subjectividade humana desempenha um papel central na aquisição da realidade objectiva. E talvez valha a pena notar que todas estas filósofas e filósofos foram de uma maneira ou de outra influenciadas por Wittgenstein.

Quando falei na necessidade de a filosofia analítica ser mais direccionada para o mundo, quis atentar criticamente no modo como uma certa forma comum (e dominante) de filosofia moral e política analítica parece ser movida por um intenso desconforto a respeito da realidade social e política — como se o mundo das outras pessoas (e dos próprios animais não-humanos) não pudesse ser enfrentado sem que antes se encontrasse uma teoria para mediar entre o «eu» e esse mundo. Num certo sentido, isto é tão somente o impulso filosófico: a filosofia advém de uma alienação do mundo. Pelo que muita filosofia moral e política analítica parece partir da ideia de que o mundo propriamente dito não contém quaisquer respostas éticas: de que a observação atenta do mundo nada nos pode ensinar a respeito de como as coisas devem ou não ser. Daí que essa filosofia praticamente não se sirva da sociologia ou da história, a não ser como um armazém de exemplos.

 

RP: Ainda em relação a isto, acha que há algo inerente à filosofia analítica que fez dela um veículo considerável de transfobia no Reino Unido? Por outras palavras, será apenas uma coincidência que a filosofia feminista transfóbica que tem surgido no Reino Unido seja analítica? E o que dizer da britanicidade desta? Por exemplo, Alyosxa Tudor fala no «TERFismo» como um «delírio branco», mas poderia comentar o contexto especificamente britânico em que nos encontramos neste momento e a forma de transfobia académica que se apresenta como «pensamento cogente» e «senso comum»?

AS: Essa é uma grande questão para a qual não tenho de todo uma resposta satisfatória. Para começar, um aspecto óbvio: a filosofia analítica é, por excelência, a disciplina que «questiona tudo». Pelo que a haver alguma disciplina que tome uma questão politicamente incómoda (ou mesmo culturalmente resolvida) como objecto de uma investigação aparentemente neutra — Será a tortura permissível? Deverão os bebés deficientes ser eutanasiados? Deverão os carnívoros selvagens ser exterminados? Serão as mulheres trans realmente mulheres? — será a filosofia analítica. Não quero com isto dizer que a auto-imagem da filosofia analítica como a disciplina que questiona tudo seja inteiramente fidedigna. Algumas questões são tabu, até mesmo para os filósofos analíticos: julgo que um filósofo moral que apresentasse um argumento a favor da escravatura encontraria alguma resistência. (Embora talvez acolhessem o seu trabalho na Journal of Controversial Ideas, publicação que conta com dois editores que já argumentaram, inter alia, a favor da permissibilidade da tortura, do infanticídio de bebés deficientes e da extinção forçada dos carnívoros selvagens.) Da minha parte, sou uma defensora firme da liberdade académica — que não devemos confundir com a liberdade de expressão (este é um assunto sobre o qual escrevi juntamente com Robert Mark Simpson) — e preocupo-me com a tendência, em certos quadrantes da esquerda, sobretudo a esquerda estudantil, de recorrer a autoridades, sobretudo as administrações das universidades, para regular e punir o discurso. Ao mesmo tempo, julgo que há algo preocupante — porventura doentio — numa disciplina que se vê repetidamente arrastada para estas questões e estes métodos de investigação.

Pensemos, por exemplo, nas discussões de Peter Singer sobre pessoas com deficiências cognitivas. Porquê invocar o direito dessas pessoas a serem tratadas com respeito — direito esse que, na melhor das hipóteses, é reconhecido de um modo precário e raramente universal — num argumento a favor de um melhor tratamento de (certos) animais não-humanos? Acho difícil não pensar que há mais do que uma preocupação com os animais a motivar argumentos como estes — e esta impressão aumenta quando me deparo com repetidos usos do insulto «atrasado mental» na literatura, e com uma relutância em levar a sério os testemunhos de pessoas deficientes acerca das suas vidas (em particular que estas «valem a pena ser vividas»). Será isto apenas uma investigação neutra em torno de uma questão filosoficamente interessante?

Julgo que uma questão semelhante se pode colocar a respeito de outras intervenções no âmbito da filosofia moral e política analítica, nomeadamente sobre a inclusão de pessoas trans. Kathleen Stock, por exemplo, aposta muito em apresentar-se como uma filósofa razoável e judiciosa, que segue cuidadosamente o curso dos argumentos até onde estes a levam. Mas quem quer que a tenha acompanhado nas redes sociais ao longo dos anos sabe que há também aí muito vitríolo, um certo espírito populista que tem claro prazer em irritar as pessoas, e uma falta de rigor e generosidade intelectual. São estes hábitos de pensamento e comunicação — hábitos que Stock é muito boa a suspender quando precisa, como, por exemplo, na sua participação extraordinariamente convincente no Woman’s Hour da BBC depois de se ter demitido de Sussex — que aborrecem muitas das suas críticas e críticos no seio da filosofia. questões filosóficas interessantes acerca do género, da identidade de género e do sexo levantadas pelas experiências de pessoas trans, tal como há questões filosóficas interessantes levantadas por fenómenos como o aborto, a violação, o trabalho sexual e a dominação racial. Não subscrevo a ideia de que não devemos filosofar acerca das vidas de pessoas — o que seria do trabalho de Simone de Beauvoir ou Angela Davis se se seguisse este princípio? — mas julgo que tal filosofar exige uma qualidade particular de atenção ética e cuidado intelectual que está demasiadas vezes em falta em certos quadrantes (embora não certamente todos) da filosofia moral analítica.

Pergunto-me também, no que diz especificamente respeito ao «debate trans», se o facto de a filosofia analítica ter sido historicamente tão dominada por homens tem algum papel explicativo. Há muita ira justificada entre mulheres na filosofia; como escreve Michèle Le Dœuff, «Quando és mulher e filósofa, é útil seres feminista para perceberes o que te está a acontecer». Talvez para algumas mulheres cis filósofas, que tiveram de lutar tanto por um lugar na disciplina, o espectro da «mulher trans infiltrada» se torne um bode expiatório conveniente e psicologicamente poderoso. Isto relaciona-se com aquele que me pareceu ser o relato mais esclarecedor da britanicidade do fenómeno trans-excludente, da autoria da jornalista feminista Katie J. M. Baker, num belo artigo intitulado «The Road to Terfdom», publicado na Lux (uma revista feminista socialista que toda a gente deveria assinar). Baker salienta a importância do Mumsnet, um website sobre parentalidade, enquanto espaço de radicalização anti-trans; aí, mulheres justificadamente agastadas pelas dificuldades associadas à educação dos filhos numa esfera social neoliberal são incentivadas a direccionar a sua ira contra o chamado «lobby trans». No Reino Unido, julgo que este fenómeno — o de as pessoas trans (sobretudo as mulheres trans) serem bodes expiatórios de ressentimentos genuínos — generaliza-se para além do Mumsnet, embora me pareça difícil exagerar o quão importantes têm sido as redes sociais na criação e perpetuação deste fenómeno, nomeadamente devido à sua enorme influência na imprensa britânica mainstream

Há também o facto de, nos Estados Unidos, os inimigos das pessoas trans serem também, sem sombra de dúvida, os inimigos das mulheres cis, mulheres lésbicas e homens gay; vejam-se os desenvolvimentos recentes no Texas, onde toda uma panóplia de legislação atacou simultaneamente o direito ao aborto, os direitos das pessoas trans e os direitos das pessoas lésbicas e gay. Pelo que talvez, no contexto dos Estados Unidos, seja mais óbvio quem são os nossos aliados políticos quando, enquanto feministas, nos envolvemos em política trans-excludente. No Reino Unido é menos óbvio que as feministas trans-excludentes estejam a dar apoio à direita, embora seja esse o caso, claro: nomeadamente ao alimentar a obsessão da imprensa mainstream com «a questão trans» enquanto o Partido Conservador orquestra um plano para espremer a esfera pública — o serviço nacional de saúde, as instituições artísticas, as universidades, a BBC — até à última gota, ao mesmo tempo que agrava a miséria privatizada dos britânicos comuns. 

 

RP: Em «How to Do Things with Philosophy» (2018), escreveu: «não é suficiente pegar nas nossas ferramentas filosóficas habituais e aplicá-las a novos tópicos … Precisamos antes de reexaminar as nossas ferramentas, de perguntar o que é que estamos a fazer com elas, e porquê». Como é que esta perspectiva informa a sua própria abordagem ao escrever O Direito ao Sexo? Seria possível dizer algo sobre a forma fragmentária e aforística da coda do capítulo «O Direito ao Sexo», que está escrita num estilo muito diferente do dos principais capítulos do livro? E como é que entende o papel do filósofo em relação ao do intelectual público? Se, tal como diz no parágrafo inicial de O Direito ao Sexo, o feminismo é «um movimento político que visa transformar o mundo a ponto de o tornar irreconhecível», como é que entende o papel da filósofa feminista?

AS: Vejo O Direito ao Sexo primariamente como uma obra de teoria feminista mais do que de filosofia feminista, uma vez que este último termo (pelo menos no mundo da filosofia analítica) está associado a uma forma de teorização feminista que procura usar as ferramentas próprias da filosofia analítica (e.g., análise conceptual, semântica e pragmática, epistemologia, metafísica, etc.) para estabelecer a verdade ou plausibilidade de teses que são (em princípio) relevantes para as vidas e os destinos das mulheres. Este é um método que não me atrai particularmente quando se trata de escrever sobre feminismo. Os meus textos de teoria feminista preferidos são formalmente mais inovadores do que aquilo que encontramos tipicamente no feminismo analítico. Esses textos não se limitam a dizer coisas mas tentam também fazer coisas: criar novos desejos e formas de subjectividade política, revelar novas possibilidades imaginativas, encorajar novos modos de reflectividade e consciência política. Não podemos ler algo como «Wages Against Housework» de Silvia Federici como apenas um conjunto de proposições sobre o trabalho doméstico. A retórica do texto só por si — «Eles dizem que é amor. Nós dizemos que é trabalho não remunerado. Eles chamam-lhe frigidez. Nós chamamos-lhe absenteísmo. Todo o aborto espontâneo é um acidente de trabalho» — deve tornar claro que Federici, e outras feministas do WFH tais como Mariarosa Dalla Costa e Selma Jones, estão a tentar fazer algo mais do que levar a cabo uma análise conceptual de «trabalho» ou apresentar um argumento a favor da remuneração do trabalho doméstico das mulheres. Como diz Federici, a reivindicação de salários para o trabalho doméstico não é uma reivindicação de uma «coisa» mas de uma nova «perspectiva política»; Federici está a tentar criar uma nova forma de consciência política, e uma nova classe politizada.

É a esta tradição de teoria feminista radical, utópica, que o meu livro procura oferecer uma pequena contribuição. Nele procuro dizer algumas verdades sobre a formatação política do desejo sexual, sobre o funcionamento da ideologia patriarcal, sobre os perigos de invocar o poder carcerário do estado, sobre o muitas vezes lamentável estado do feminismo anglo-americano contemporâneo. Mas estou também interessada em contribuir para essa tradição feminista que incita as mulheres, e até os homens, a desejar e a exigir mais: que recusa aceitar uma reforma estreita do status quo como tudo aquilo a que podemos aspirar, e que não apenas vê mas sente a falta de liberdade em todas as suas facetas — classe, raça, casta — como indestrinçável da falta de liberdade inerente à dominação sexual. Estou interessada em revigorar a imaginação feminista, e ao mesmo tempo tornar claras as condições materiais, sobretudo a exploração económica e o empobrecimento, que são prejudiciais ao funcionamento dessa imaginação.

Julgo que para algumas filósofas e filósofos, incluindo algumas filósofas feministas, este género de trabalho é irreconhecível como teoria (e muito menos como filosofia). Por exemplo, numa recensão do meu livro para The Raven, Sally Haslanger acusou-me de não ter uma teoria social — isto é, uma teoria de como a sociedade funciona e de como se altera, sobretudo de maneiras progressivas. De facto, ela declara que, seja o que for que eu esteja a fazer no livro, «não estou a fazer teoria». Ora, eu sou uma admiradora da Sally, quer a nível pessoal quer filosófico; nunca é demais realçar a sua importância no desenvolvimento do feminismo analítico contemporâneo, sobretudo da metafísica feminista. Mas julgo que a sua leitura do meu livro revela um entendimento fundamentalmente limitado daquilo que a teoria feminista é e pode fazer, um entendimento demasiado preso à visão analítica do mundo e demasiado afastado da verdadeira história da praxis feminista. Por «teoria feminista» Haslanger parece entender uma concepção explícita e sistemática de como a sociedade funciona sob condições de dominação patriarcal. É verdade que eu não ofereço qualquer concepção desse tipo em O Direito ao Sexo — como nota Haslanger, esse não é o propósito do livro, nem tampouco (e isso Haslanger não nota) de muitas obras canónicas daquilo que é habitualmente tomado como teoria feminista. Mas qualquer pessoa proveniente da ampla tradição do feminismo marxista e socialista reconheceria a teoria social que sustenta o meu trabalho. É essa tradição e orientação teórica que explica o meu enfoque na reprodução biológica e social como um fenómeno central na opressão das mulheres; a minha insistência na classe enquanto categoria primordial para a análise feminista; a minha crítica especificamente anti-capitalista do feminismo carcerário; o meu entendimento da família nuclear heteronormativa como um mecanismo central de produção capitalista; o meu interesse em formas de coligação radical transversais a vários eixos de identidade; a minha convicção de que as mulheres pobres, sobretudo as mulheres de cor pobres, são agentes de mudança histórica; o meu desconforto a respeito do poder do estado e do moralismo burguês; a minha adopção de certos enquadramentos psicanalíticos da dominação sexual; e, acima de tudo, a minha insistência num espírito utópico que Haslanger desconsidera, tomando-o como «pensamento ilusório» (wishful thinking). (Para que conste, considero a rejeição, sob pretexto de se tratar de algo «ilusório», de reivindicações — tais como cuidados infantis públicos e aborto gratuito — que as feministas da década de 1970 pensaram que seriam rapidamente satisfeitas, nada mais do que uma capitulação perante um senso comum neoliberal que se opõe de todas as maneiras e feitios à libertação das mulheres. Julgo também que tal rejeição revela um desentendimento do papel que as reivindicações podem desempenhar na política radical, como se todo o seu propósito fosse ser «razoável». A respeito da função da «reivindicação» feminista, o livro The Problem With Work: Feminism, Marxism, Antiwork Politics, and Postwork Imaginaries, de Kathi Weeks, é excelente.)

Haslanger é especialmente crítica do quarto capítulo do livro, «aforístico e fragmentário», como oportunamente o caracterizaram, que funciona como uma coda do ensaio que dá o título ao livro. «Será que o feminismo precisa de teoria?», pergunta retoricamente Haslanger. «Ou será que nos podemos contentar com um conjunto disperso de considerações e questões, algumas das quais numeradas, que não coerem de um modo evidente?» Uma vez mais, julgo que o que está a faltar a Haslanger é a perspectiva marxista básica segundo a qual a vida social e política contém contradições — não no sentido de contradições lógicas (ainda sou uma filósofa analítica!), mas no sentido de que uma mesma tradição política pode conter dentro de si tendências que se opõem umas às outras. Por exemplo: será que a família oferece um refúgio face ao capitalismo ou é um lugar de reprodução do mesmo? A resposta é: as duas coisas. Será a violência sexual masculina a expressão do poder dos homens ou da sua vulnerabilidade? As duas coisas. Será o direito penal uma potencial ferramenta de justiça feminista ou uma arma do estado capitalista? Uma vez mais: as duas coisas. O propósito da «Coda» é explorar estas e outras contradições — ou, num registo mais psicanalítico, abraçar as ambivalências da vida política e social. Escrevo, por exemplo, ao analisar o fenómeno incel: «Por um lado, há uma patologia daquilo a que por vezes se chama neoliberalismo: uma absorção de um número cada vez maior de domínios da vida pela lógica do mercado. Por outro, há a patologia do patriarcado, que, nas sociedades capitalistas, tendeu a ver as mulheres e o lar como refúgios face ao mercado, como fontes de cuidado e amor oferecidos gratuitamente … O facto de estas duas tendências se encontrarem em tensão não significa que elas não se alimentem uma à outra, ou que não constituam uma unidade orgânica.»

Há algo sobre o meu livro que julgo que Haslanger percebe muito bem: estou a tentar simultaneamente praticar e incutir aquilo a que ela chama uma «consciência crítica feminista». Mas ela insiste que isto ainda não é fazer «teoria», porque a sua ideia de teoria advém, em última análise, da filosofia: uma teoria é um modelo total do mundo, ou então não é nada. Pergunto-me que outras feministas veriam então o seu trabalho excluído do domínio da teoria segundo esta visão das coisas: talvez Elizabeth Spelman? bell hooks? Andrea Dworkin? Cherríe Moraga? Alexandra Kollontai? E o que dizer de Maggie Nelson, Sara Ahmed, Andrea Long Chu, Sophie Lewis, Lola Olufemi? O que é que se ganha ao certo ao dizer que o trabalho destas intelectuais feministas não é algo chamado «teoria»? E o que é que se pode perder?

Uma pequena ironia aqui é que julgo muitas vezes que Haslanger, ao promover o seu projecto de «metafísica melhorativa» — no qual se propõem análises de conceitos que se julga servirem melhor as nossas necessidades políticas — dispõe de uma teoria social empobrecida, uma teoria que atribui à filósofa, enquanto tecnocrata conceptual, um papel peculiarmente privilegiado na moldagem da realidade social por meio de um decreto pragmatista. Deste ponto de vista, a filósofa explicará ao grande público quais os entendimentos de conceitos cuja adopção melhor contribuiria para uma sociedade mais justa. O problema não é apenas que esta abordagem ignora o lembrete de Gramsci de que a teoria não é feita apenas por elites intelectuais, mas codificada na acção quotidiana e revelada através desta. É que ignora também o que era suposto ser inovador na teoria feminista. Num ensaio de 1979 intitulado «Feminist Theory and the Development of Revolutionary Strategy», a grande feminista marxista Nancy Hartsock contrapôs o entendimento feminista de «teoria» àquela perspectiva tradicional de esquerda que «defendeu que a classe trabalhadora era incapaz de projectar o seu próprio futuro e que quem a conduziria à liberdade seriam aqueles que … estivessem equipados com uma teoria geral que os ajudaria a organizar o mundo» (itálico meu). Pelo contrário, Hartsock afirma, «O feminismo enquanto modo de análise, sobretudo quando a consciencialização é entendida como um aspecto fundamental desse método, requer uma redefinição do conceito de intelectual ou teorizadora, uma reformulação deste papel social nos termos da vida quotidiana.» Hartsock está a sugerir que a teoria feminista não consiste em construir modelos do mundo que servirão como um mapa para as massas, mas antes em promover uma análise crítica contínua em diálogo com aquelas que reconhecemos como camaradas de luta iguais. (O meu pensamento sobre o que é distintivo da «teoria» feminista — e da sua relegação ao estatuto de «não-teoria» por parte das disciplinas da filosofia e da teoria política — é muito influenciado por Sophie Smith).

Um exemplo interessante é a análise melhorativa de «mulher» levada a cabo por Haslanger no seu artigo de 2000, «Gender and Race: (What) Are They? (What) Do We Want Them To Be?», que lecciono frequentemente em contextos de licenciatura. Com grande clareza analítica, Haslanger leva a cabo uma análise de «mulher» que será espantosamente familiar para quem conhece a história do pensamento feminista, sobretudo o trabalho de Simone de Beauvoir, Shulamith Firestone e Adrienne Rich. O que é que se ganha, poderíamos perguntar, em usar as ferramentas da metafísica analítica para chegar a este lugar familiar, sobretudo tendo em conta que são poucas as pessoas sem treino em filosofia analítica que se conseguem orientar num artigo de metafísica? Isto não é uma pergunta retórica. Julgo que este tipo de trabalho é muito útil para filósofas analíticas que estão à procura de uma consciência feminista — algo que, em boa parte graças ao trabalho da Sally, é cada vez mais frequente. A questão é que as pessoas não são, na sua maioria, filósofas analíticas, e a maioria das feministas passa bem sem a filosofia analítica. Para uma filósofa analítica, faz sentido exigir uma «teoria» (i.e. modelo) total do mundo antes de agir, querer prescrições específicas para guiar a acção, e sentir insatisfação perante uma intervenção feminista que basicamente coloca a responsabilidade sobre nós mesmas e nos tenta animar enquanto sujeitos políticos, em vez de nos dizer precisamente o que fazer. Do meu ponto de vista — quer lhe chamemos «teoria» ou não — dizer às pessoas o que fazer não é a melhor forma de as intelectuais servirem a política radical. Quero mais para a teoria feminista, e quero convidar outras e outros a partilhar comigo este desejo: quero que ela própria seja, como disse bell hooks, uma prática libertadora.


[1] The Right to Sex: Feminism in the Twenty-First Century. Uma tradução portuguesa, da autoria de Artur Lopes Cardoso, foi publicada em Março de 2022 pela Temas e Debates.

[2] RP 2.12 (Spring 2022).

[3] N.T.: A expressão original é «sexual entitlement» e refere-se à ideia, explícita ou implícita, de que os homens hétero têm, num certo sentido, direito ao sexo e de que a sexualidade feminina está subordinada a esse putativo direito. Trata-se, pois, de uma manifestação particular de «dominação sexual masculina», tradução pela qual se optou na ausência de uma expressão mais precisa em português.

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