A Idade Média é um período rico em discussões que hoje integraríamos no âmbito da teoria e crítica literárias. Questões como a autoridade e a autoria; a relação entre a autoridade, a linguagem e a memória; as funções e o propósito do texto literário e seus efeitos morais e éticos; os sentidos alegóricos textuais; os modos de significação e a relação entre as palavras e as coisas; a exegese bíblica e o comentário de autoridades clássicas e, posteriormente, de fontes vernáculas, foram amplamente desenvolvidas ao longo da Idade Média, particularmente a partir do século XII, dando assim origem à crítica literária moderna. Porém, nem sempre a pujança da teoria literária medieval, plasmada em inúmeras obras e autores, foi reconhecida por pensadores contemporâneos. Em 1943, J. W. H. Atkins, em English Literary Criticism: The Medieval Phase, afirmava:
This volume is […] a continuation of the plan outlined in an earlier work, Literary Criticism in Antiquity […]. A narrower and less promising field is here explored, that of medieval England. In it, it may at once be said to look for original and lasting contributions to literary theory, or for illuminating appreciations of literary works themselves, would be alike unavailing and fruitless.[1]
Cerca de uma década depois, em 1957, Wimsatt e Brooks, em Literary Criticism. A Short History, ainda adiantavam:
Let us say, in summation, that the Middle Ages … were not in fact ages of literary theory or criticism … In short, it was an age of theological thinking in a theologically oriented and theocratic society. Such a society does not characteristically promote the essentially humanistic activity of literary criticism.[2]
De facto, até muito recentemente, grande parte destes estudiosos situava no Renascimento o início da teoria e da crítica literárias. O reconhecimento de que já existia, na Idade Média, uma reflexão sobre assuntos de natureza literária é acentuado, nos anos 80 do século XX, por Alastair J. Minnis e A. B. Scott. Em Medieval Theory of Authorship: Scholastic Literary Attitudes in the Later Middle Ages, de Alastair J. Minnis, e, sobretudo, em Medieval Literary Theory and Criticism, c. 1100 – c. 1375: The Commentary Tradition, de Alastair J. Minnis e A. B. Scott, estes autores divulgam o pensamento crítico de vários escritores medievais, apresentando ainda alguns dos seus trabalhos em tradução inglesa.[3]
Em vez de aqui interpelar um ou vários filósofos da Idade Média e as suas teorias sobre a literatura ou a linguagem acima referidas, optei por verificar como muitas dessas mesmas teorias, e até o debate epistemológico por elas originado a partir do século XIII, se cruzam na produção literária de Geoffrey Chaucer. Nestas páginas, aludirei a The House of Fame (HF), dado ser este um texto que antecipa as grandes questões de natureza teórica que virão a consolidar-se em The Canterbury Tales, a sua obra de maturidade.[4]
The House of Fame é um poema composto por Chaucer cerca de 1374-1385, que recupera a estrutura da visão onírica característica da literatura francesa, nomeadamente da tradição cortês do Le Roman de la Rose do qual o próprio Chaucer traduziu uma parte. Neste texto, Chaucer discorre sobre o papel da Fama e o modo como ela intervém na concepção da arte literária. Na Idade Média, a palavra Fama não significava apenas «reputação» (o seu sentido mais óbvio), mas podia também aludir ao saber adquirido ao longo dos anos. Este último sentido da palavra Fama é, pois, sinónimo de tradição, que, por sua vez, era perpetuada através da memória e da escrita. Na verdade, a Casa da Fama, para onde é levado o sonhador que protagoniza este poema, é também apelidada de «templo» (HF, v. 120) ou «igreja» (HF, v. 473), surgindo, assim, como metáfora da memória, numa associação habitual ao longo da Idade Média. Tanto no templo de Vénus, em que as pinturas nas paredes, numa instância de ekphrasis, permitem a descrição da guerra de Tróia por parte do narrador, como na Casa da Fama, à qual se acede por um penhasco de gelo coberto por estátuas e seus respectivos nomes, é preservada a memória, o que permite a sua reactualização no presente. Deste modo, sustentada pelos pilares de pedra onde se erguem os autores do passado, a Casa da Fama é o Palácio da Escrita, a domus auctoritates, e encontra-se ainda intimamente relacionada com a linguagem ao ser apresentada como o repositório de todo o discurso. Esta associação permite a Chaucer discorrer também sobre a origem da linguagem, sobre a forma como é produzida e recebida, e como intervém na produção do significado.
Neste poema, grande parte da reflexão em torno dos modos de significação decorre da lição proferida pela Águia, ou não fora esta ave símbolo privilegiado da palavra divina ao constituir um dos animais do Tetramorfo, figuração do Evangelista João, o Apóstolo do Verbo. Esta Águia, através da qual Chaucer interpela uma outra, a de Dante na Commedia, possui uma função simbólica, ao servir de guia ao narrador até ao Palácio da Fama. No entanto, o perorar da Águia é entendido pelo seu interlocutor como fastidioso, paternalista e professoral, numa paródia às convenções retóricas subjacentes às palestras de vertente académica. Porém, é pela voz da ave que o autor revela como domina completamente o debate sobre os modos de significação e a relação entre as voces (palavras) e as res (coisas). Ao transmitir ao narrador simplório, gorducho e assustado, a quem Chaucer deu o nome de Geffrey, os seus conhecimentos académicos, a Águia torna-se numa transmutação do eu poético, que bem domina as teorias dos clássicos sobre a linguagem, nomeadamente as de Platão e Aristóteles, cujos nomes menciona directamente (HF, vv. 757-59), bem como as perspectivas dos medievais sobre a natureza dos signos, sobretudo a de Santo Agostinho exposta em De Doctrina Christiana.
Chaucer esconde-se ironicamente sob a máscara de um Geffrey que mostra pouco saber sobre a verdadeira arte do amor, tendo já esgotado o seu saber livresco sobre a mesma. Em resposta, a Águia promete a Geffrey levá-lo à Casa da Fama onde terá acesso a motivos novos sobre o sentimento amoroso, tema que alimenta a poesia. De facto, em The House of Fame, a poesia é apresentada como escrita e equacionada com o amor (HF, vv. 641- 58). Geffrey tem como objectivo procurar uma arte poética pessoal e original, o que deixa implícita uma crítica velada às autoridades, que se afastam da experiência vivida, e à própria noção de Fama, entendida como reputação e como tradição. Assim, embora o narrador revele possuir uma intensa paixão pelos livros, característica que Chaucer decerto também partilharia, o poema denuncia a tensão estabelecida entre um saber construído apenas com base nas fontes de autoridade e um saber advindo da experiência. Ao parecer defender a pertinência do segundo, Chaucer poderá estar a afastar-se do pensamento neoplatónico e sua ênfase na estética alegórica para se aproximar de uma perspectiva mais racionalista, de base aristotélica, e das teorias nominalistas propostas, em Inglaterra, por William of Ockham.
Todavia, percebemos que afinal o poema não é sobre o amor. Chaucer brinca com aqueles que o escutam ou lêem, como, de resto, é nele habitual. O sonho decorre em Dezembro, ao contrário da tradicional visão onírica que tinha lugar na Primavera; a primeira paisagem com que o sonhador se depara é um deserto e não um campo verde e florido; o guia do narrador é uma águia palradora que leva Geffrey a um lugar governado por uma Fama, que, como a sua irmã, Fortuna, é imprevisível e escuta os pedidos de nove grupos de pessoas que pretendem ser reconhecidas como famosas, mas que vêm de um Palácio onde circulam rumores e bisbilhotices. Estes são exemplos suficientes que revelam como, em The House of Fame, Chaucer denuncia já não só o modo de escrever poesia no seu tempo, mas também as convenções literárias desgastadas, como os estereótipos das visões oníricas e o tema do amor, sobretudo o do amor cortês, que tão habilmente vai continuar a criticar ao longo da sua produção poética. Ao mesmo tempo, comprovando que se preocupa e inquieta com o seu labor artístico, quer ao nível da estrutura, quer ao nível do conteúdo, convida ainda aqueles que o escutam ou lêem a decidir se aquilo que escreve é engenhoso e complexo ou meramente superficial.
Desta forma, o autor inglês surpreende-nos ao subverter as nossas expectativas em relação às funções e propósitos do discurso, maioritariamente por intermédio da ironia: não só inverte e transforma fórmulas e convenções há muito estabelecidas, como também muda frequente e subitamente de tom, justapondo ainda as suas considerações sobre as várias áreas do discurso, que ora são de natureza filosófica ou linguística, ora poética ou histórica. Deste modo, e ao criar padrões de ordem e de desordem, parece, por um lado, advertir o seu ouvinte ou leitor que é necessário encontrar um caminho na conturbação do mundo que permita alcançar a verdade espiritual. Dando continuidade à tradição iniciada por Boécio, vem demonstrar como a manipulação do texto e da linguagem que o materializa possibilita a descoberta da consolação, bem como o enriquecimento ético, moral e espiritual do ouvinte ou do leitor, um dos propósitos de toda a arte poética.[5] Por outro lado, chama a atenção para a própria artificialidade da linguagem, à qual recorre para criar o seu texto ficcional, no qual também ele se insere como um elemento de ficção. Na verdade, The House of Fame constitui o primeiro momento da vasta produção literária de Chaucer em que assistimos ao desdobramento do autor numa persona. Toda a sua obra posterior, especialmente The Canterbury Tales, é devedora desta criação, como afirma Kimmelman:
I would like to argue that the voicing in the Tales [The Canterbury Tales], in the last analysis, comes from Chaucer’s deeply intuited relationship with his material, with tradition, with the very notion of text—all of which are bound up in the creation of Geffrey in his earlier work. This sense of ‘character’ can be seen to lie at the heart of the various voices in the tales whose tellers are, in all of medieval literature, unique and yet utterly familiar from the modern standpoint. (…)
As a unique creature (…) it is Geffrey who will be viewed as anticipating the modern realm of the psychological, that which we treat as the supreme construct of truth.[6]
Mas, se Chaucer se introduz como persona no poema enquanto Geffrey, fá-lo também com o intuito de subverter a própria noção de Fama no seu sentido de tradição, estabelecida a partir de fontes habitualmente assumidas como autoritárias. Uma das várias instâncias em que tal sucede ocorre precisamente no final do texto. Geffrey viaja nas garras da águia, mensageira de Júpiter, até ao palácio da Fama, onde o deus o recompensará por ter servido, com a sua obra literária, Vénus e seu filho, Cupido, oferecendo-lhe novas notícias sobre o amor («tydynges of love» — HF, vv. 644-45, v. 2143).
Na Casa da Fama, Geffrey ouve falar de amor e compreende que, finalmente, se irá cumprir a promessa de Júpiter. Logo avista um homem de grande autoridade cujo nome desconhece. No momento em que aguardamos saber quem é esta figura, que virá a fornecer ao narrador novas formas de renovar a sua poesia, o poema termina abruptamente. Não será este o melhor modo de contestar o papel da tradição e das autoridades na construção da obra literária? Chaucer não só volta aqui a evidenciar a ficcionalidade dos textos poéticos e a artificialidade da linguagem, mas acentua também a ideia de que cabe ao autor estabelecer, por si mesmo, sem o apoio das autoridades, novas estratégias retóricas e discursivas. Assim, por lado, dá conta da tensão entre autoridade e individualidade que se manifestava no final da Idade Média; por outro, denuncia as autoridades do passado de modo a construir de raiz a sua própria autoridade e se revelar como fabricante da sua própria tradição. Diz-nos Kimmelman: «the poet of the later Middle Ages found numerous and increasingly ingenious ways of insinuating, of weaving into the very fabric of poetry the modern claim—ego auctor.»[7] Por conseguinte, Chaucer, como alguns dos seus contemporâneos na Europa medieval, parece estar simultaneamente a condenar e a defender a tradição, ao assumir-se como um autor individual que, ainda assim, procura incluir-se nas auctoritates que ele próprio denunciou.
Em 1948, Albert C. Baugh descreveu The Canterbury Tales como uma biblioteca de literatura medieval em miniatura, uma vez que neles se encontram representados todos os géneros cultivados ao longo do período medieval.[8] Consistem, igualmente, no lugar onde se consubstancia toda a arte literária do autor inglês que possui, desde sempre, uma forte vertente de reflexão crítica sobre a tradição poética e o uso da linguagem. Atrever-me-ia a acrescentar que The House of Fame, a sua segunda obra, escrita após The Book of the Duchess, se assume como o texto no qual Chaucer experimenta abordar todos os problemas de natureza crítica que o inquietavam. Assim, embora sem o fôlego e a solidez de The Canterbury Tales, The House of Fame, com apenas 2.159 versos, constitui, a meu ver, um pequeno tratado de teoria literária medieval, dando ainda conta das tensões que, no seu âmbito, se estabeleciam, em grande parte, devido ao choque de duas visões filosóficas de cariz distinto: a realista, de linhagem neoplatónica, e a nominalista, de raiz aristotélica. Como afirma Andrew Galloway, The House of Fame, focando-se na redefinição da tradição literária, pode ser considerada uma obra de teoria poética.[9]
The House of Fame é um texto denso e complexo, auto-reflexivo e meta-discursivo, que revela como Chaucer, desde o início da sua composição artística, era um profundo conhecedor das grandes questões sociais, filosóficas e estético-literárias do seu tempo. O poema abre-se certamente a múltiplas leituras e interpretações. Aqui pretendi apenas demonstrar, de forma resumida e em muito breves linhas, como Chaucer nele revisita os principais assuntos de natureza crítica que circulavam no final da Idade Média, antecipando, em larga medida, a teoria literária subsequente.