Em 1982, Shane MacGowan, Peter «Spider» Tracy, Jim Finer e James Fearnley formam os Pogue Mahone. Embora se tenham sempre identificado como uma banda irlandesa, todos nasceram em Inglaterra e fazem o seu primeiro espectáculo no Gossips Club, no Soho, em Londres. Esta cidade é, por isso, objecto tanto de repúdio, na denúncia política oferecida pela banda (veja-se, por exemplo, «Young Ned of the Hill»), como fonte de contemplação sentimental (que se pode observar em «Lullaby of London» e em «Misty Morning, Albert Bridge», uma das canções dos Pogues que mais ouvi na minha adolescência).

Esta oscilação entre o amor e ódio a Inglaterra não é a única que se manifesta na dinâmica musical, artística e conceptual da banda. De facto, os Pogues caracterizam-se por se situar no limiar de diversas realidades: a música popular e o rock, a tradição e a inovação, o passado e o presente, uma posição conservadora e uma estética pós-moderna, a celebração da identidade irlandesa e a sua subversão, a denúncia e a nostalgia, a música e a literatura, a Irlanda e Inglaterra, a Irlanda e o mundo, a desilusão e a euforia exaltada.

Para Kieran Keohane, a banda define-se, assim, pelo pastiche, por pôr em prática um processo de bricolage, oferecendo-nos uma conjugação de pedaços de sonhos, imagens, experiências e práticas, que, na sua totalidade, subentendem uma cultura de imigração e é nesta superimposição de elementos que a banda é assumida como pós-moderna: «In the Pogues we can discern a text, in fact a subtext, written in the cracks produced by the slippage and displacement of cultures. Their texts are, in a sense, notes from the underground: subtexts or in-between texts of the official texts of Haughey’s Ireland, Thatcher’s Britain, Reagan’s America […]» (Keohane 1990: 72).

De acordo com Keohane, este pastiche constrói-se a partir de experiências fragmentadas do presente e de relatos dispersos sobre o passado relacionados com a diáspora irlandesa. Canções como «Poor Paddy» revelam esse mosaico, tal como tantas outras nas quais a banda discorre sobre a vida quotidiana das classes trabalhadoras, a religião, a política e também sobre a bebida, o amor, o sexo e o jogo, percorrendo espaços geográficos diversos onde os Irlandeses se fixaram, como a Alemanha, a Espanha, a Austrália ou os EUA.

Sem, obviamente, contestar a perspectiva de Keohane, julgo que os Pogues se situam sobretudo num espaço intermédio que Victor Turner (1966: 95) designou de liminaridade:

The attributes of liminality or of liminal personae (“threshold people”) are necessarily ambiguous, since this condition and these persons elude or slip through the network of classifications that normally locate states and positions in cultural space. Liminal entities are neither here nor there; they are betwixt and between the positions assigned and arrayed by law, custom, convention, and ceremonial.

Turner associa este espaço intermédio aos ritos de passagem, desta forma salientando a sua vertente religiosa, pelo que a liminaridade propicia um momento de revelação, de oportunidade de transformação não só do indivíduo, mas sobretudo das normas sociais que lhe são impostas, isto é, um momento de caos, sendo o último entendido precisamente como motor de transformação (Farazmand 2004).

Assim, o conceito de liminaridade pressupõe a ideia de in-betweeness, explorada por Homi Bhabha em The Location of Culture. Partindo do binarismo da estrutura da linguagem postulado por Saussure (1917), e a do signo linguístico em particular, Bhabha defende que é no espaço liminar entre pólos binários, isto é, na emergência de um signo intersticial, que a produção cultural é mais produtiva porque não determinada nem por um pólo nem por outro. Cria-se assim um lugar híbrido e ambivalente que permite a problematização de identidades sociais e políticas, um terceiro espaço, como afirma Bhabha, recuperando Jameson (1994: 37):

The intervention of the Third Space of enunciation which makes the structure of meaning and reference an ambivalent process, destroys this mirror of representation in which cultural knowledge is customarily revealed as an open, expanding code. Such an intervention quite properly challenges our sense of the historical identity of culture as a homogenizing, unifying force, authenticated by the originary past, kept alive in the national tradition of the People. […]

It is that Third Space, though unrepresentable in itself, which constitutes the discursive conditions of enunciation that ensure that the meaning and symbols of culture have no primordial unity or fixity; that even the same signs can be appropriated, translated rehistoricized and read anew.

O próprio Keohane, na citação acima transcrita, refere as letras intersticiais dos Pogues, localizadas num espaço liminar, in-between, de fronteira, com textos oficiais.  Penso que é este lugar liminar, de transição, onde tudo também é transitório e, ao mesmo tempo, ambíguo, ambivalente, híbrido e paradoxal, que define a essência da banda, não apenas no que às letras diz respeito, mas também à sua música. Na verdade, esta caracteriza-se pela liminaridade ao ocupar uma zona entre o rock, o punk rock, a música tradicional de raiz celta, e o jazz. Julgo ainda que a ambivalência liminar situada entre os pólos de oposição que comecei por referir é possibilitada pelo modo como a banda se apropria de determinados autores literários, maioritariamente de origem irlandesa, entre os quais Brendan Behan, Edna O’Brien, Flann O’Brien, Frank Connor e Samuel Beckett. No entanto, é James Joyce a figura literária que mais os inspira, tanto na experimentação narrativa de MacGowan como no próprio espírito da banda, que, por meio do autor irlandês, reclama uma terceira voz tanto no panorama musical, como no próprio modo de situar Joyce numa área híbrida, entre o estritamente académico e a quotidianidade. 

A apropriação de Joyce revela-se de imediato no nome da banda ― Pogue Mahone ― como afirma James Fearnley em Here Comes Everybody: The Story of the Pogues (2012, s.p.):[1]

‘If we’re doing a gig,’ Spider said, ‘we need a name.’
‘The Men They Couldn’t Hang,’ Shane said.
‘The Noisy Boysies,’ Spider said.
‘The Black Velvet Underground.’
‘Pogue Mahone,’ said Spider.
‘Pogue Mahone! Ye-es! Fuck! Yeah!’ Shane said, slapping his head with the palm of his hand.
‘“Pogue mahone! Acushla machree! It’s destroyed we are from this day! It’s destroyed we are surely!”’ Spider said. ‘It’s from Ulysses. It means kiss my arse. Pogue Mahone!’
‘Pogue Mahone!’ Shane said.

Joyce é o autor que, para os Pogues, se encontra nos interstícios entre a questionação da identidade irlandesa e a vida normal de todos os dias, entre a seriedade intelectual e o modo boémio de lidar com a inquietação do presente e do passado, como afirma Keohane (1990: 78): «The Pogues have identified a kindred spirit. Joyce and the Pogues express very similar ambivalences about identity and about Irishness». Em ambos se assiste a uma celebração da possibilidade da incerteza. De novo nas palavras de Keohane (78): «Joyce and the Pogues express […] a celebration of the art of living with contingency: getting wasted, getting laid, dealing with an uncertain present and an unpredictable future on the basis of a confused past».

Além de autor inatingível, de aura quase mítica, Joyce passa a ser um roqueiro punk, passando pelos dramas diários e pela mesma vida desregrada e suja de jogo, álcool e sexo. Quase o conseguimos imaginar de ar arruinado, totalmente embriagado e de sorriso marcado por restos de dentes apodrecidos, como MacGowan. O próprio MacGowan começa por admitir que a leitura das obras de Joyce é difícil: «Joyce is difficult to read. And if you’re not an Irish Catholic, large parts of it are absolutely meaningless» (MacGowan e Clarke 2001: 120). Mas confessa-se admirador de Joyce pela sua irreverência, criatividade e pela normalidade vulgar das personagens em Ulysses: «And he upset so many people. […] They were all disgusted by the obscenities . . . the so-called obscenities in Ulysses, which is simply people doing what they normally do: having sex, and pissing against walls, y’know, getting pissed in pubs, having fights, wanking off over young women, y’know . . . whatever. […] I admire all creative piss artists. I admire creative people, y’know (s.p.)»

Esta reclamação da figura de Joyce que passa a ocupar este espaço paradoxal na música dos Pogues é particularmente evidente na capa da edição norte-americana do terceiro álbum da banda. Em If I Should Fall from Grace with God (1988) podemos observar nove homens em linha, todos de fato e chapéus idênticos, exatamente na mesma posição.

Um olhar mais atento permite-nos descobrir Joyce ao lado de MacGowan e perceber que afinal são os Pogues que o imitam nas roupas, na expressão e no gesto.  Será Joyce um dos Pogues ou os Pogues uma reiteração de Joyce? Mais uma vez, estamos numa área liminar, como parece acentuar Kevin Farrell ao afirmar: «not only is Joyce a Pogue, but the Pogues are themselves a Joycean band» (2020: 150).

Para Farrell, a interpelação de Joyce pelos Pogues é distinta das muitas revisitações da obra deste autor por outras bandas e intérpretes. Enquanto os últimos, como Kate Bush, Syd Barrett e Jefferson Airplane, por exemplo, se distinguem pela experimentação poética à la Joyce, os Pogues, em vez disso, reclamam o seu espírito singular: «the Pogues themselves seem more interested in a Joycean ethos, a distinctly Irish Catholic libertinism and intellectualism», como defende Farrell (2020: 152).

O que me parece importante realçar é que James Joyce, entendido na sua liminaridade pelos Pogues, contribui para que também a banda se coloque a si nesse espaço híbrido e ambivalente de denúncia e celebração da herança irlandesa, o que, de resto, se encontra em sintonia com a própria singularidade da sua literatura. Neste sentido, penso que não é por demais afirmar que, por Joyce e com Joyce, os Pogues invocam a própria idiossincrasia da literatura da Irlanda cujos temas e motivos centrais mais relevantes sempre estiveram relacionados com o orgulho nacional mesclado por sentimentos de trauma, perda e sacrifício, relacionados com separação e o exílio.

De certa forma, os Pogues acabam por criar um terceiro espaço para Joyce onde também se inserem como banda e é desse espaço que o seu punk rock de raiz celta se vai construindo num tessitura tradicional e pós-moderna. Exemplo claro disto mesmo é «The Sickbed of Cuchulain» do álbum Rum, Sodomy a& the Lash (1985), onde dão voz a esse hibridismo que os caracteriza ao fazer sobressair um herói mítico, mas real. De facto, aí Cuchulain é identificado com um bêbedo irlandês que, às portas da morte anunciada pela Banshee, e por entre visões de anjos e demónios, relembra as suas viagens de embriaguez pelo mundo. Os Pogues recuperam a figura heróica de Cuchulain central nos mitos celtas da Irlanda antiga para também evocar a sua presença no poema de William Butler Yeats, «The Death of Cuchulain» (1939), e em toda a sua poética e postura político-ideológica que o elevou a símbolo de resistência nacional. Porém, em «The Sickbed of Cuchulain», a figura do herói do Ulster deixa de estar confinada à Irlanda para aludir a uma identidade irlandesa que se afirma fora dela por intermédio das figuras de John MacCormak e Frank Ryan, que embora irlandeses, viveram separados do país natal. De acordo com Farrell (2020: 160): «He [Cuchulain] becomes less a metaphor for Irish steadfastness and more a metaphor for Irish flexibility, as the traveler explores a world beyond the provinciality of simplistic nationalism or the conservativism of tradition».

Desta forma, a letra desta canção apela ao tema do exílio e da deambulação, entre espaços e lugares, tão caro à cultura e literatura irlandesas. Fá-lo, todavia, de modo simultaneamente solene e irónico, numa oscilação musical que balança ainda entre o tom elegíaco, consentâneo com a morte do campeão do Ulster, e uma toada alegre que remete para o inebriamento insaciável pela vida, simbolizado pela embriaguez do protagonista. E tal como acontece com Tim Finnegan, também esse regressa do mundo dos mortos no seu próprio funeral para poder continuar a desfrutar da água da vida, do whiskey, e da cerveja, talvez os únicos a emprestar à vivência de todos os dias algum sentido permeado de alegria e pura sujidade obscena.  

And they’ll take you from this dump you’re in and stick you in a box.
Then they’ll take you to Cloughprior and shove you in the ground,
But you’ll stick your head back out and shout, “We’ll have another round!”

Cuchulain torna-se assim imagem do passado nacional, da tradição e do orgulho irlandês, sendo igualmente o irlandês anónimo, que ocupa esse lugar límbico entre a vida e a morte, talvez o lugar mais ambivalente e liminar, onde simultaneamente se lamenta e celebra a existência humana.

Ouçamos, pois, os Pogues e The Sickbed of Cuchulain, de preferência durante ou após várias pints.

 

 [1] Apenas a censura por parte da BBC os fez alterar o nome para The Pogues.


Referências:

Farazmand, Ali (2003).  «Chaos and Transformation Theories: A Theoretical Analysis with Implications for Organization Theory and Public Management». Public Organization Review: A Global Journal 3: pp. 339–372 .

Farrell, Kevin (2020). «“If I Should Fall from Grace with God”: The Joycean Punk of the Pogues». New Hibernia Review. Center for Irish Studies. University of St. Thomas. Volume 24, Number 2, pp. 150-160.

Fearnley, James (2012). Here Comes Everybody. The Story of The Pogues. Londres: Faber and Faber.

Homi K. Bhabha (1994). The Location of Culture. Londres e Nova Iorque: Routledge.

Keohane, Kieran (1990). «Unifying the Fragmented Imaginary of the Young Immigrant: Making a Home in the Post Modern with the Pogues».  The Irish Review.  Cork University Press. No. 9, pp. 71-79 .

MacGowan, Shane e Victoria Mary Clarke (2001). A Drink with Shane MacGowan. New York: Grove Press.

Turner, Victor (1966).  The Ritual Process. Structure and Anti-Structure. Rochester e Nova Iorque: Cornell University Press.

 

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