Começo por agradecer o convite de Alberto Arruda para participar neste Dia do Sublime organizado por Teoria da Literatura, esperando contrariar aquele dito de Platão de que já não era do seu tempo que datava a rivalidade entre filósofos e poetas. O diálogo prossegue, e hoje certamente com grande proveito. 

I

Kant trata do sublime em meia dúzia de parágrafos da Crítica da Faculdade de Julgar, de 1790: os parágrafos 23 a 30, incluindo a «Nota Geral sobre a exposição dos juízos estéticos reflexionantes». 

Considerando a estrutura geral desta obra, o tratamento do sublime constitui uma espécie de enxerto, que continua a levantar muitos problemas: compreender os motivos pelos quais Kant o insere, e esgota, nestes poucos parágrafos, se comparados com os que dedica ao belo (na primeira parte) e à filosofia da natureza (na segunda). Esta via levar-nos-ia para a interpretação geral da filosofia kantiana e para a magna questão do lugar sistemático da terceira Crítica, cujo propósito é o de completar a arquitectónica da razão. Uma obra toda ela concebida segundo uma lógica de mediações: estabelecer passagens entre duas ordens — o conhecimento e a moralidade —, conciliando domínios que a separação entre razão teórica e razão prática das primeiras Críticas tornara incomunicáveis: entre o plano fenoménico e o plano das ideias, entre a natureza e a liberdade. Deixando de lado as questões sistemáticas, cuja complexidade continua a merecer a atenção de estudiosos (não posso deixar de referir um kantiano português, o professor Leonel Ribeiro dos Santos, que tem dedicado centenas de páginas a explicar Kant «melhor do que ele se compreendeu a si mesmo»), proponho duas entradas que filiam o sublime kantiano na história das ideias. 

A primeira remete para dois elementos que entroncam na tradição da retórica: a elevação (do discurso) e o pathos (dos auditores). O substantivo «das Erhabene», do verbo erheben (in die Höhe heben) tem em alemão o sentido de elevação, ascensão a um plano superior; central é igualmente a componente da emoção, contrariando a imagem de um racionalismo austero e frio que não corresponde nem ao espírito nem à letra do pensamento de Kant, atento que foi às tensões dramáticas da natureza humana de que a verticalidade desnivelada do sublime é momento exemplar. 

Destes elementos da retórica clássica, presentes em Aristóteles e no tratado do Pseudo Longino, podemos dar um salto temporal até à segunda entrada, a bifurcação das categorias estéticas na Modernidade tardia. O texto kantiano prolonga uma já riquíssima reflexão sobre o belo e o sublime, devida sobretudo aos autores da estética inglesa que sublinharam que nem toda a visão do mundo se enquadra nos parâmetros finitos e formais da beleza. 

Joseph Addison em «The Pleasures of the Imagination» (The Spectator, 1712) terá sido o primeiro a utilizar o termo sublime para designar o fascínio da montanha, acompanhando o novo gosto que se forma no século XVII e se vai impor no século XVIII: a sedução pelo majestoso, grandioso, terrífico… Shaftesbury, em The Moralists, elogia a natureza irregular e imponente, e considera-a preferível à regularidade. A Philosophical Enquiry into the Origin of Our Ideas of the Sublime and Beautiful (1757), de Edmund Burke, é o marco mais relevante ao conceder ao sentimento do sublime não apenas um lugar notável no seu ensaio, mas sobretudo ao defender o primado sobre o belo. 

II

Diferentemente da antropologia empirista de Burke, em Kant a experiência estética é inteiramente independente da afecção por causalidade, como se fosse uma mera reacção por parte do observador a características intrínsecas do objecto. Note-se o uso prudente de termos — «despertar» (erwecken), «suscitar», «dar ocasião» (Anlass geben) — que evitam a mínima sugestão de uma resposta imediata e passiva à acção exercida sobre o sujeito por certas propriedades das coisas em si. Esse momento primeiro, a receptividade sensorial do sujeito à existência exterior, é apenas o início da contemplação: a consideração atenta e demorada das representações. É apenas por meio da reflexão, uma «percepção reflectida» (Introdução, VII), que se processa a passagem da sensação (sensorial) (§3) ao sentimento estético enquanto «modo como o sujeito se sente a si mesmo na contemplação do objecto» (§1). 

A autonomia do estético relativamente a regras, conceitos e valores morais é solidária da liberdade judicativa das faculdades sensíveis (o entendimento, a imaginação, a faculdade de julgar reflexionante). A Urteilskraft opera no puro jogo subjecto-objectivo sem predeterminação do campo de aplicação e à margem da conexão de causas e efeitos. A categoria de causalidade é determinante para constituir a experiência científica da natureza: estabelecer nexos de fenómenos segundo constantes de causas e efeitos. A liberdade estética, por sua vez, aprecia situações, objectos, obras de arte, sempre enquanto manifestações singulares dotadas de diversidade qualitativa não redutível a conceitos e leis gerais. A natureza que admiramos na contemplação estética e celebrada pela  visão criadora dos poetas é a natureza conciliada com a liberdade, não a natureza regular explicada pelo mecanicismo das leis científicas. 

O princípio da conformidade fins sustenta a esteticização independentemente de critérios objectiváveis. Na linha da aesthesis grega recuperada por Baumgarten em 1750, Kant usa «estético» apenas como adjectivo, como modo da subjectividade, não decorrendo do ajuizamento,  sempre pessoal e irrepetível, nenhuma instituição objectiva de valor. Serão pensadores posteriores, de Schiller a Hegel, a reduzir a Estética à filosofia da arte. 

III

Suscitado por manifestações de grandeza ilimitada ou de potência desmedida da natureza selvagem, destituída «de encantos e de perigos» (§26), a vivência do sublime tem início numa desconformidade entre as operações da sensibilidade e aparições do mundo fenoménico, que anula qualquer expectativa de prazer. O desprazer é desencadeado por uma ruptura no movimento equilibrado do ânimo, gerado na instabilidade de estados contraditórios: atraído por qualidades sensíveis das formas mundanas que pelo carácter de excessividade suscitam, por sua vez, repulsão; o ânimo é de novo atraído para o que nelas, e através delas, se insinua como sem-forma (formlos). Pressentidos não são verdadeiramente esta montanha gigante e este deserto imenso, ou este vulcão e esta tempestade, mas a imponência, a magnitude e a violência eruptiva que os envolve e extravasa.

A distinção entre «dotado de forma» e «destituído de forma» (formlos) é a única pré-condição objectual para a bifurcação dos sentimentos: entre fenómenos que se dão como unidades delimitadas, reconhecíveis e identificáveis, e fenómenos informes, excessivos e inapreensíveis.  Reside aqui a diferença das experiências humanas: o prazer, assente na harmonia finalizada entre a imaginação e o entendimento em face de formas sensíveis, persiste durante todo o tempo da calma contemplação, proporcionando o equilíbrio e a pacificação; e o desprazer, assente na desarmonia, na «contra-finalidade», introduz a intensidade ambivalente do conflito, de aproximação e distanciamento, que coloca o sujeito na instabilidade entre expansão e contracção das suas forças vitais. 

Apenas a imaginação — não o entendimento — é chamada a dispor das suas próprias medidas de apreensão, máximos não comparativos, num esforço de esquematização, sucessivamente tentado, de captar conjuntamente na unidade de uma intuição o que não é de ordem espácio-temporal. Esforço esse, por fim malogrado como sentimento negativo: quer de inadequação entre «o medir de olhos» do pequeno em face do absolutamente grande; quer do medir de forças do impotente que tenta resistir a um poder maior. 

O infinito, que para a razão humana é uma ideia fenomenicamente irrepresentável, torna-se agora apresentável na natureza face a nós, figurada como «infinito visível», presença do suprasensível no mundo sensível. Símbolos da ideia de infinito, as duas modalidades de sublime assentam nos esquemas matemáticos e nos esquemas dinâmicos da imaginação, referidos respectivamente à razão teórica e à razão prática. 

Recordo a contrario as tentativas do senhor Palomar de Italo Calvino, que pretendia  isolar uma onda recortando-a do movimento incessante da maré. Sempre encetadas e sempre  fracassadas, são tentativas cerebrais e metodicamente planeadas, que se saldam pela desistência, não pela emoção. Mais de acordo com a perspectiva de Kant é o relato do jovem surfista, de cada vez seduzido pelas ondas gigantes que sabe poderem pôr a sua vida em risco; nesse confronto desigual cada vitória é acompanhada de uma indizível sensação de superioridade. Kant admite o medo como elemento gerador de sublimidade, com a ressalva de não ser necessário defrontar fisicamente o perigo (§28). 

Se a descrição fenomenológica é suficiente para alcançar a componente emocional do esforço, só a fundamentação transcendental — no plano do sistema das faculdades — pode elucidar o paradoxo de esta vivência não ser só negativa, mas converter-se em positiva: sentir-se por momentos maior que a imensidão ou a violência que nos suplantam; potências (Mächte) que já não exercem poder (Gewalt) sobre nós.

A componente de elevação não ocorre no plano estético-sensível, mas provém da esfera inteligível-moral. Daí que o acordo finalizado pela razão não restabeleça um prazer, mas um outro sentimento, de auto-estima — «o ânimo sente-se elevado na sua própria auto-estima» (§26) — e de respeito por uma outra força (a liberdade), esta sim, a potência à qual não se pode opor qualquer resistência. 

Na versão kantiana, a experiência do sublime é mista e impura, estética e ética, porque tem o seu fundamento na duplicidade da natureza humana (§29). Em sentido próprio não se deve chamar sublime às forças da natureza a que ainda oferecemos resistência, mas à humanidade moral em nós. 

Assim o vasto oceano erguido pela tempestade não pode ser dito sublime. O seu aspecto é aterrador; e é necessário que o ânimo esteja bem repleto de ideias diversas para que ele possa ser determinado por uma tal intuição a um sentimento que é ele próprio sublime". (§23)

Assim, a sublimidade não está contida em nenhuma coisa da natureza, mas apenas no nosso ânimo, na medida em que podemos tornarnos conscientes de sermos superiores à natureza em nós, e daí, à natureza fora de nós, desde que ela exerça a sua acção sobre nós.” (§28)

Fiquemos por aqui, acho que já há matéria suficiente para conversarmos. 

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