As autoras são professoras de filosofia e antigas alunas de Stanley Cavell.

 

Poucas horas depois da morte do influente filósofo americano Stanley Cavell na semana passada, jornais e revistas de renome publicaram obituários que realçavam o invulgar ecletismo do seu trabalho. O Times, por exemplo, escreveu que Cavell «descobria ideias arrojadas não apenas na obra dos grandes pensadores do passado, mas também nas comédias românticas de Hollywood». O Washington Post disse que Cavell era «um antigo pianista de jazz que trocou a música pela filosofia mas manteve um interesse inabalável pelas artes, um explorador de comédias screwball, dramas shakesperianos e da “nova música” do pós-guerra em busca de iluminações filosóficas».

É verdade que o alcance de Cavell era invulgarmente amplo. Ele via a filosofia — o impulso para fazer sentido da experiência humana — como uma actividade variada e democrática que não pode ser confinada à academia e que se estende naturalmente a todos os aspectos da cultura, uma actividade de que nos tornamos praticantes quando aprendemos, segundo ele, «a pensar sem distracções sobre coisas que os seres humanos comuns não conseguem deixar de pensar». A isto se deve em grande parte ter-se tornado um dos pensadores mais amplamente lidos e amados do seu tempo. 

Mas o que não chegou às homenagens foi a centralidade da questão, cerzida em praticamente tudo o que Cavell escreveu ao longo dos seus quase 50 anos de carreira, do que significa ser um cidadão na contradição que são os Estados Unidos da América — um país fundado num voto sagrado de liberdade e justiça tanto quanto numa destruição genocida de comunidades indígenas e no acolhimento da escravatura, práticas cujos legados nos fizeram cair em desgraça desde a fundação do nosso país até à catástrofe que é a administração Trump.

Cavell, que passou a maior parte da sua longa carreira no departamento de filosofia da Universidade de Harvard, era diferente de outros filósofos profissionais. Não aderiu a nenhuma tradição ou escola de pensamento, não se limitou a uma só área da filosofia ou a tratar questões filosóficas com as abordagens gastas do costume. Em vez disso, exemplificava aos seus leitores e alunos — onde nós as três estávamos incluídas — o que poderia significar imaginar que «o que é verdadeiro para ti no teu coração íntimo é verdadeiro para todos os homens», tal qual Ralph Waldo Emerson argumenta no ensaio «Self-Reliance». Cavell não estava a dizer que tudo o que é verdadeiro para nós é objectiva e completamente verdadeiro; a ideia é que prestar atenção ao que é importante para nós é um pré-requisito para pensar realmente de modo sério.

Cavell concretizou esta ideia nas suas explorações filosóficas individuais, embora soubesse que filosofar desta maneira era, pela sua natureza, arriscado. Reflectir sobre os próprios interesses pode resultar apenas no que Emerson chamou «capricho» — ou pior.

Cavell nunca ditou aquilo que os leitores deviam pensar — uma posição pedagógica decisiva para a filosofia como ele a praticava. Acreditava que o sucesso da democracia dependia de tornar a tarefa de pensar em algo atractivo para as pessoas. Mostrou pelo exemplo o que significava pensar por si próprio, e encorajou os leitores a descobrir e a desenvolver as suas próprias sensibilidades — um pré-requisito, segundo ele, para o crescimento do tipo de individualidade necessária ao florescer da vida democrática.

Também entendia a democracia americana como um ideal exigente que, no seu melhor, tomou a forma de uma conversa em que os participantes exemplificam uns aos outros as possibilidades da cidadania. Esta preocupação é uma constante nas discussões sobre figuras tão díspares como Wittgenstein, Katharine Hepburn, Platão, Thoreau, Frank Capra, Kierkegaard, Samuel Beckett, Lady Macbeth e John Stuart Mill, e tópicos tão ecléticos quanto o cepticismo filosófico, o poder da voz humana, a nossa relação com a natureza, e aquilo a que chamou a ontologia do cinema.

A preocupação é trabalhada de formas diferentes nos muitos livros de Cavell, incluindo aqueles sobre os filmes da «era dourada» de Hollywood, como Pursuits of Happiness, e aqueles que se ocupam do pensamento de Wittgenstein e J. L. Austin, incluindo a sua primeira colectânea de ensaios, Must We Mean What We Say? Muitos dos leitores mais entusiastas de Cavell acham o excepcional alcance dos seus interesses tão absorvente que simplesmente os adoptam para si próprios. Contudo, o seu objectivo era que os leitores prestassem atenção às coisas que eles próprios achavam interessantes, e que depois as assumissem e pensassem nelas e à luz delas. Via este acto de admissão como um dever nosso, enquanto seres humanos e cidadãos de qualquer estado, por mais imperfeito, a que chamemos casa.

Cavell acreditava que uma democracia floresce apenas quando cada pessoa possui no seu dominío não só a liberdade de assumir, desenvolver e exprimir os seus gostos idiossincráticos, mas também os meios para o fazer — assim como para honrar os (honrosos) gostos e aspirações dos seus companheiros cidadãos e assim permanecer receptiva à possibilidade de novas versões de si própria. Acima de tudo, exortou-nos a avaliar a adequação de um governo pela sua capacidade de sustentar esta visão de florescimento humano, uma visão a que se referia como «perfeccionismo moral», não estando em causa a busca por um resultado final perfeito, mas um compromisso contínuo com a possibilidade de uma comunidade democrática florescente.

Cavell estava convicto de que uma democracia funcional não só promove os valores da liberdade e da igualdade mas, além disso, o faz porque fornece as condições nas quais podemos usar palavras para fazer sentido das nossas vidas. O interesse que durante toda a vida demonstrou pelas Investigações Filosóficas de Wittgenstein deve-se em muito ao pedido deste filósofo para repararmos que o nosso comércio com as palavras exige ter noção da importância das semelhanças entre os contextos em que as usamos. É suposto vermos que usar a linguagem não é uma empresa intelectual árida, e que ser capaz de falar com autoridade é ter talento para projectar os nossos conceitos em novos contextos de modo infinito.

É este argumento que Cavell está a fazer quando, num excerto do ensaio «The Availability of Wittgenstein’s Later Philosophy», afirma: «Se, de forma geral,» nos manifestamos na linguagem, «isso resulta de partilharmos caminhos de interesse e sentimento, modos de reacção, sentidos de humor e de significado e de satisfação, do que é ultrajante, do que é parecido com o quê, o que é uma reprimenda, o que é o perdão, quando é que uma elocução é uma asserção, um apelo, uma explicação — todo o remoinho de organismo a que Wittgenstein chama “formas de vida”.»

Embora cada um de nós partilhe as coisas que Cavell nomeia neste excerto, ao pensar e ao falar ficamos inevitavelmente dependentes do nosso próprio juízo sobre aquilo que importa. Ao seleccionar as palavras particulares que usamos nesta ou naquela situação particular, com efeito estamos a tomar uma posição acerca daquilo que deve ser dito e quando. Esta lição tem consequências políticas, como Cavell sublinha, porque implica que pensar é uma actividade que não permite subcontratação. Sem as condições materiais e políticas que encorajem os indivíduos a exprimir a sua própria noção daquilo que é importante, arriscamos ficar reduzidos à turba descerebrada a que Heidegger chama «das Man» e à condição anátema à conversa democrática que Emerson, um americano preocupado com a fragilidade e a imperfeição da fé do novo país no «génio» de cada indivíduo, nos avisou ser o «mero conformismo».

Clareza acerca da natureza deste perigo é essencial nos tempos que correm, em que o público tem de enfrentar diariamente mentiras óbvias e acusações de «fake news» por parte de Donald Trump e dos da sua perigosa laia. O propósito destes mecanismos de propaganda é transformar-nos numa manada descerebrada colectiva, destruir a capacidade de pensamento autónomo que é a fonte vital da democracia. O antídoto para a toxina é criar as condições sociais que permitirão a cada cidadão promover a tarefa socrática — sublinhada de modo tão consistente na prosa de Cavell — e nela perseverar, procurando conhecer-nos a nós mesmos de modo contínuo, identificando os nossos próprios caminhos de sentimento e noção do que importa, e — imprescindivelmente — medindo estas sensibilidades publicamente com as sensibilidades dos nossos companheiros cidadãos.                       

Os desafios desta empresa ultrapassam a mera descoberta dos recursos retóricos e materiais para varrer a desilusão para debaixo do tapete. Ser um participante numa pólis democrática satisfatória é um projecto perpétuo que exige levar a sério os gostos e os interesses, permanentes e em desenvolvimento, de cada um, e trabalhar sem descanso para criar um espaço social e linguístico em permanente expansão para cada indivíduo que chega às nossas costas, ou às nossas fronteiras, seguir em busca da felicidade.  

 

As autoras são professoras de filosofia: Nancy Bauer na Universidade Tufts; Alice Crary na Universidade de Oxford; Sandra Laugier na Universidade de Paris 1, Panthéon – Sorbonne.

* Tradução de Helena Carneiro; texto original publicado no New York Times: «Stanley Cavell and the American Contradiction».  

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