Descartes e Kepler, o primado da visão

A produção de conhecimento pode reconhecer-se em vectores predominantes, e o modo como a visão é construída e intuída reflecte-se no modo como as crenças dão forma ao conhecimento. A hegemonia do modelo visual na cultura Ocidental foi fortalecida pela perspectiva no Renascimento e pelo modelo visual cartesiano validado pela ciência. A luz, desde há muito percebida como divina, foi, pela perspectiva e pelos princípios matemáticos, harmonizada com a vontade de Deus. O espaço tridimensional transformou-se em bidimensional na superfície da tela, a janela, metáfora de Alberti para a pintura, que reflecte de forma transparente o espaço geometrizado. Começa a desenhar-se um olho estático, fixo, reduzido a um ponto de vista, cujas implicações se fazem hoje plenamente sentir.   

A invenção de instrumentos ópticos no século XVII, o telescópio e o microscópio, não pertencem à categoria dos instrumentos matemáticos anteriores a 1600 e introduziram a noção de «instrumento científico» ao articular a construção conceptual na equiparação do telescópio ao olho humano. O olhar desapaixonado — the dispassionate eye of the neutral researcher, na expressão de Martin Jay [1] —, marcante do Renascimento, é por eles ampliado, mas aqui começa também a ilusão de que os instrumentos ópticos traduzem fielmente a realidade. Fazemos intuitivamente a analogia da câmara e do olho, mantendo a ilusão de que há uma relação íntima da visão com a máquina fotográfica, por exemplo.

No século XVII a visão tem uma importância fundamental na organização e estruturação do conhecimento. Kepler (1571-1630) — que trabalhou intensivamente na teoria do telescópio, inventou a refracção astronómica e melhorou consideravelmente o telescópio de Galileu — e Descartes (1596-1650) contactaram entre si, sugerindo que a informação produzida pelo telescópio seria a mesma que a obtida pelo olho nu. O telescópio trouxe uma diferença fundamental para com o século anterior: ele fornece informação que de outro modo não seria «visível», aumentando exponencialmente o alcance da visão e tornando visíveis espaços anteriormente invisíveis. A visão é reforçada a tal ponto que penetrou e tomou conta dos céus, tornou mortais os deuses que aí habitavam, quebrando as barreiras mentais que nos separavam do que era estranho à nossa experiência e aos nossos sentidos. Associado a este alcance e sucesso da invenção está a facilidade e simplicidade com que pode ser manejado por qualquer um, sem esforço. Se os instrumentos matemáticos no século XVI eram sobretudo instrumentos de construção, do fazer e da resolução de problemas, o telescópio e outros instrumentos ópticos como a câmara escura, são de natureza diferente, são construídos para conhecer. Verdade, evidência, clareza e ocularidade traduzem o pensamento de Descartes expresso no título das suas obras, no «Tratado da Óptica» ou no «Discurso do Método», nas quais traça as regras para bem conduzir a razão. Para uma imagem ser verdadeira há que ter dela uma clara imagem mental. Entre o ver e o conhecer existe uma relação directa, mas não podemos deixar de pensar que o instrumento óptico é um «olho» que vê por nós e que a cultura é por ele organizada. O olho mecânico é um elemento que atesta a verdade, mas esta é uma verdade construída, criando outra realidade, que não reproduz a do sujeito. Para Kepler, a visão deforma na sua sujeição à subjectividade, e as suas invenções ópticas tinham o objectivo de corrigir a visão. Desse modo, a realidade criada pela máquina é sinónimo de uma percepção deturpada da realidade subjectiva, que ficará na sombra. Estas zonas de sombra, mais ou menos em dormência, assaltam-nos ao longo da história.

 

Fantasmagoria e natureza-morta

A erosão das barreiras mentais, originada pelo primado da visão, teve consequências na pintura, com implicações diferentes no Norte e Sul da Europa. Svetlana Alpers[2] aponta para duas tradições: uma arte do Norte da Europa, mais descritiva e dependente dos avanços técnicos, da centralidade da visão e da ciência, ligada à descrição, ao detalhe e ao cristianismo protestante (Rubens e Rembrandt são disso exemplo); e a de uma arte mais literária e menos literal, a do Sul da Europa. A arte do Norte estaria mais ligada ao desenvolvimento do capitalismo e ao modo de estar burguês, ao fetichismo da mercadoria que trará uma estranheza radical ao estatuto do objecto. Mais tarde, Marx, ao pensar sobre o carácter fetichista da mercadoria, falará explicitamente em fantamasgoria e na transformação dos produtos do trabalho em aparências das coisas. Não é o produto do trabalho que Marx critica, mas a sua transformação em mercadoria, aquilo a que chama «phantom-like objectivity»,[3] em detrimento do processo de produção, onde o valor de uso é substituído pelo valor de troca — dupla face que o objecto doravante transportará.

Caravaggio. Natureza-morta com flores e frutos, 1601.

Caravaggio. Natureza-morta com flores e frutos, 1601.

Haverá um desfecho lógico para a arte descritiva do detalhe: a criação do género natureza-morta. Se há aqui um elogio da superfície visual também há, na proliferação de pormenores própria do género, uma clara contradição — ausência de enquadramento e entropia intrínseca — com os princípios cartesianos do empirismo visual. Estas mudanças têm em Caravaggio, Vermeer, Rembrandt e Velázquez implicações diferentes, e deram origem a uma maior autonomia da arte. Tomemos o exemplo de Caravaggio e o modo como, dentro de uma tendência geral ocularcêntrica, autonomizou a sua pintura.

 

Caravaggio, suspensão da narração, obscura luz

A sapiência da Renascença fará um largo uso do detalhe, tanto numa grande actividade gráfica como também em práticas devotas. Francisco de Holanda recorda-nos que a missão da instituição religiosa compreendia três vertentes: relembrar as verdades da fé, instruir os ignorantes e emocionar pela compaixão o devoto. A partir do século XIV, a ênfase será posta nesta última vertente, a da emoção, levando o fiel à prática de produção de imagens interiores de carácter afectivo devocional. O detalhe contribui para a composição de um dispositivo com vista a aproximar o espectador das figuras pintadas, dramatizando a relação devocional. Do meio humanista do século XV surge uma consciência renovada da pintura através do detalhe. A retórica grega, nomeadamente através da ekphrasis, introduzida no meio humanista por volta de 1400, elogia a capacidade descritiva da imagem, da descrição detalhada da pintura, «...ressemblance détaillé de l’image à son référent, capacité expressive de physionomies, varieté et abondance des éléments répresentatifs de la représentation. Une peinture est digne d’éloge si elle soutient les efforts discriptifs et si, possédant ces qualités, elle permet au discours de développer ses propres prestiges[4]

Caravaggio. O Sacrifício de Isaac, 1598.

Caravaggio. O Sacrifício de Isaac, 1598.

Face a uma arte descritiva do Norte da Europa, Caravaggio surge-nos como o pintor que começa por autonomizar a arte tirando da especificidade da própria pintura a sua lógica organizativa. Caravaggio reinventa algumas das prioridades do Renascimento ao bloquear a capacidade narrativa da pintura, dando ênfase ao detalhe. As personagens são semi-congeladas na suspensão da narração. Partindo de Alpers, Michael Fried viu nesse congelamento «an acceptance of the artifice of representation itself that is the genesis of what we call modernism in art»,[5] referindo-se também a esse congelamento da acção no quadro de Manet Le Déjeuner sur l´Herbe. Mas enquanto Caravaggio suspende a narração, não a suprimindo, a arte do Norte da Europa suprime-a em favor de uma descrição mais visual da superfície pictórica. Para o congelamento da acção contribui a luz extrema de Caravaggio, cuja fonte não se conhece, como um flash em ambiente extremo, a ausência de um setting, sem pistas sobre o local onde se situa a acção e as poucas personagens presentes. Veja-se O Sacrifício de Isaac ou David e Golias: são enfatizados os pontos decisivos da narrativa, conduzida apenas por pequenos indícios; tudo o resto que acontece entre esses pontos é deixado na sombra. O negro de Caravaggio é de uma rarefacção tão grande que nada aí se vê, parecendo apontar para uma narrativa que ficou para sempre na sombra. Caravaggio congela a acção, mas nela há ainda algo de literário, como que a arrancar algo de uma narrativa maior, não iluminada. No negro, a luz não penetra, existe numa noite em que tudo está fora do nosso alcance, um fundo ao qual não temos acesso, onde o humano não tem lugar. O negro bloqueia, impede o acesso e a comunicação, é intransigente ao espectador, mas também à intimidade do pintor. Há no negro uma relação entre a inospitalidade e a noção de algo absoluto, mas sem um Deus que sossega o espírito perante uma vida violenta, aleatória ou precária. Roberto Longhi, um dos seus grandes biógrafos, inventa um diálogo onde Caravaggio «brama per la verità» e acusa e condena Tiepolo de não partilhar a sua realidade dura.

Se antes o negro poderia ser revelador de algum mistério divino, em Caravaggio ele não é simbólico. O negro veda-nos o espaço, o olhar não consegue penetrá-lo, na sua relação com a luz cria um limite, uma «linha de sombra». O negro ergue-se numa linha separadora e recortada, de brusca passagem entre o plano da imagem e algo como um exterior inacessível à pintura. Este enigmático exterior, o negro e o flash instantâneo da luz impregnam a pintura de uma estranha densidade temporal, de provações e vozes que vêm de profundezas desconhecidas à realidade terrestre. Em Caravaggio não há dois planos, dois mundos — um superior e outro inferior, o terreno e o divino —, o negro implacável e o congelamento da acção preparam uma revelação, não a de Deus, mas a do mundo físico, a da condição humana. O espectador é directamente implicado na sua pintura de uma dupla maneira, diz-nos Fried: «Como sempre, o mecanismo é dialéctico: se a luz provoca absorção e imersão, a obscuridade remete para um “exterior”, retira-nos da pintura. Simultaneamente, o chiaroscuro impõe a absorção e a presença do exterior distante da pintura.»[6] A luz e o negro revelam-se plasticamente e são estritamente pictóricos. O artifício da representação quebra um limite, o da barreira mental existente entre a arte e a vida, e o espectador é directamente implicado na pintura.

Caravaggio. David e Golias, 1599.

Caravaggio. David e Golias, 1599.

 

 

[1] Martin Jay, «Scopic Regimes of Modernity» in Vision and Visuality, BayPress, Seattle, 1988, p.9.

[2] Svetlana Alpers, «Describe or Narrate? A problem in Realistic Representation», New Literary History, Vol. 8, No. 1, Readers and Spectators: Some Views and Reviews, Autumn, 1976.

[3] Johan Frederik Hartle, «Phantom-like Objectivity», Krisis, Journal for Contemporary Philosophy, Issue 2, 2010: http://krisis.eu/wp-content/uploads/2017/04/krisis-2010-2-11-hartle.pdf?

[4] Daniel Arasse, Le Détail, Pour une histoire rapprochée de la peinture, Flammarion, Paris, 1996, pág.141.

[5] Svetlana Alpers, «Describe or Narrate? A problem in Realistic Representation», New Literary History, Vol. 8, No. 1, Readers and Spectators: Some Views and Reviews, Autumn, 1976, pp. 15-41.

[6] Carlos Vidal, Diálogo com Michael Fried e uma longa digressão pela história da arte, de Giotto a Caravaggio e de Caravaggio à fotografia actual, 2009. http://5dias.net/2009/01/19/dialogo-com-michael-fried-e-uma-longa-digressao-pela-historia-da-arte-de-giotto-a-caravaggio-e-de-caravaggio-a-fotografia-actual/

O Olho Prevenido #5

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