You can fool the souls of people, but you can’t fool the souls of the material.
Adolf Loos

…an inner affinity between music and the original foundation of the world.
Pitágoras

                                                       The great god Pan, it has been said, is dead. But gods of the ears cannot fade away. They return behind the mask of our amplifiers and sound systems.
Friedrich Kittler

                                                                        Clean this place out thoroughly, will you. It gives me a headache just listening to myself think.
J.G.Ballard

 

A experiência sonora forma uma matéria sensorial através do contacto contínuo com o corpo, do entrelaçamento com os movimentos da mente, pensamentos e sentimentos. Há uma influência sonora efectiva que envolve o corpo, da qual emerge uma energia táctil constituída de vibrações, de pressão atmosférica, do fluxo constante que o atravessa. Sendo o som uma presença consciente incessante e  imersiva, também existe, sob a forma de vibrações, abaixo do limite de audibilidade humano. As vibrações de objectos e materiais geram sons que através de um contacto recíproco concebem novos sons quando atingem outras superfícies materiais. Muitas vezes as vibrações passam despercebidas, porque são subliminares, mas a sua energia e força tornam-se tácteis; pequenas vibrações viajam constantemente entre os objectos e a nossa pele, formando uma extensão acústica que liga o plano material ao nosso «eu» emocional. A dimensão acústica, o movimento de oscilações vibratórias, a experimentação e manipulação da matéria resulta numa energia táctil, que ocorre frequentemente aquém do que é audível, e forma uma paisagem sonora subliminar que se estende ao plano material, unindo o corpo a um campo energético táctil. Ser afectado por um lugar, pela sua particular atmosfera, é um encontro concreto com o meio físico e afecta a psique. A audição é essa complexa forma que envolve o corpo inteiro.

A estrutura arquitectónica do ouvido — pavilhão externo, cumes e cavidades — usa pistas monoaurais como meio de restringir as possibilidades de localização acústica. O ouvido é moldado assimetricamente para que o som seja distorcido de um modo que depende da direcção do lugar de onde parte. É por essa razão que a nossa capacidade de ouvir existe não só no espaço, mas também através dele, ou seja, os sons dos objectos arquitectónicos não são apenas os sons dos materiais construídos, mas também o sons das distâncias entre eles; isto apenas é possível porque o ouvido é já em si espaçado, construído e estruturado tridimensionalmente. A reverberação é também uma pista monoaural, e mesmo que por nós não seja percebida, o cérebro usa essa informação para localização de obstáculos ou objectos; natural nos morcegos e em outros animais, a eco-localização é uma diferenciação espacial que resulta do balanceamento dos ecos provenientes dos objectos e que chega em tempo diferente aos dois ouvidos de modo a que este hiato se traduza em diferenças espaciais, no espaçamento do que está à volta.

Vision comes to a human being from one direction at a time: to look at a room or a landscape, I must move my eyes around from one part to another. When I hear, however, I gather sound simultaneously from every direction at once: I am at the center of my auditory world, which envelops me, establishing me at a kind of core of sensation and existence. This centering effect of sound is what high-fidelity sound reproduction exploits with intense sophistication. You can immerse yourself in hearing, in sound. There is no way to immerse yourself similarly in sight. (Walter J. Ong, 72)

 

1. Amplifiers, Bolling Field, 1921.

 

2. Japanese Type 90 Small Detector, 1930.

 

3. War Tuba in 1932, Japan.

O som reúne a sensação de desmaterialização com a sensação de movimento, porque subverte a solidez das formas, revelando outro tipo de campo energético, exibindo qualidades de ondas ou partículas, oscilações sonoras e musicais. Uma dimensão de instabilidade e impermanência é conferida às formas pela variação sonora que dissolve os contornos das formas. A natureza evanescente e temporal do som provoca grande flexibilidade e incerteza à estabilidade dos espaços e devido às condições particulares de propagação, a cidade — uma geografia sónica — exponencia a capacidade dinâmica do som na desintegração e reconfiguração das suas particularidades espaciais e temporais.

O som confere uma temporalidade à experiência do olhar e o caso particular do eco, ao exagerar a passagem de um som e prolongar o evento sonoro, torna concreta essa temporalidade; o eco transforma o som em espaço, em presença dimensional, em objecto. Que os objectos palpitem, que emitam uma vida, tenham um eco, é uma possibilidade a considerar. Objectos abandonados, fragmentos, restos, formas encontradas ou detalhes, que não remetem para a «grande» arquitectura e que são ofuscados muitas vezes pelo seu uso quotidiano ou por um desprezo atribuído pelo hábito, formam uma esfera pulsante que o deambular pela cidade esquiça. Estes objectos, pequenas formas ou fórmulas da ansiedade, são microcosmos estranhamente estereoscópicos; as vibrações que emanam reúnem as ambiguidades do imaginário e lembram criaturas vivas ao mesmo tempo herméticas e transparentes. Estarmos rodeados por uma variedade de dispositivos vibratórios e sonoros torna relevante o facto de uma série de momentos sónicos atravessarem a nossa consciência. Percorrer a cidade torna-se um gesto volátil, em que a identidade pessoal deixa de ser fixa. Movendo-se por entre as estruturas urbanas, a identidade individual é posta em causa pelo mínimo trajecto, desafiando classificações ao entrarmos num espaço acústico em mudança contínua. O espaço mediador da rua, do passeio, é uma membrana e um fluxo de energia para o qual somos atirados, é um campo de acção dramático de jogo e performance.  Na redefinição da identidade, os objectos cumprem uma função essencial; eles emitem uma vibração, uma ondulação sonora, que participa da construção da sensação, da reconstrução da linguagem. Eles emanam sons e ecos, são uma quase-linguagem.

To speak up is to draw forth sound from the depth of the body, as a fundamental vibration — as air forced through a set of passageways — that in turn sculpts the relational figurations and contours of the spoken: speech carries forward the undulating pressures of the inside to an outside, to be brought back down again through one and another’s ear canal with its reciprocal, vibrating bone. (Brandon LaBelle, 185)

O pensamento social está normalmente associado à troca verbal entre os seres humanos, todavia o mundo dos objectos e das formas construídas é quase sempre deixado de fora.  

No seu último livro, Henri Lefebvre foca-se no «rhythmanalyst», um indivíduo que analisa os ritmos da vida quotidiana de modo a perceber o que o dia-a-dia esconde. O «rhythmanalyst» distingue o que é real, ouve o mundo, especialmente o que é considerado ruído, sem sentido, erro, murmúrio, os silêncios. Em «sistemas fechados» da cidade ele percepciona um espaço aberto, quebrando a continuidade entre forma e função, violando as funções atribuídas a certos espaços e áreas da cidade, proporcionando assim as condições físicas para um encontro inesperado e para a possibilidade de descoberta e inovação. O aparecimento deste tipo de densidade na cidade, o único capaz de estimular e expandir a sua vivência, encoraja o aparecimentode espaços que à partida são incongruentes. Estes espaços desdobram-se e sobrepõem-se ao caminharmos na cidade; «walking-writing» ou «step by step articulation» são termos que Michel de Certeau utiliza quando, no gesto de caminhar, coloca em confronto o corpo e a lei: o corpo é definido, delimitado e articulado pelo que é gravado e escrito nele. O acto de caminhar emerge, por isso, como caixa de ressonância, iniciando passagens e repositórios de ondulações sonoras dos espaços, estruturas e objectos da cidade, que existe na interferência entre o público e o privado. Caminhar é um acto que informa um pensamento flutuante.

One is tempted to believe that the creature once had some sort of intelligible shape and is now only a broken-down remnant. Yet this does not seem to be the case; at least there is no sign of it; nowhere is there an unfinished or unbroken surface to suggest anything of the kind; the whole thing looks senseless enough, but in its own way perfectly finished. In any case, closer scrutiny is impossible, since Odradek is extraordinarily nimble and can never be laid hold of. (Kafka, 428)

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4. Jeff Wall. Odradek, Traboritska 8, Prague, 18th July 1994, 1994. 229x289cm.

No início do séc. XX, as teorias de concepção do espaço, do som e da arquitectura foram transformados profundamente. Os estudos de Wallace Sabine culminaram, em 1900, numa fórmula que tornou possível o registo da dimensão sónica de cada espaço. Estudos de arquitectura acústica vieram mostrar como as ondas sonoras se propagam no espaço construído e como são percepcionadas. A coexistência entre modelos de explicação das ondas sonoras e da acústica arquitectónica passaram a ser objecto de reflexão entre arquitectos, em ensaios como «The Mystery of Acoustics» (1912), de Adolf Loos, ou «Space as Membrane» (1926), de Siegfried.

Adolf Loos, num protesto contra a demolição da sala de concertos Bösendorfer-Saal, em 1913, compara a sala de concertos a um precioso e insubstituível instrumento:

For forty years the material [of the Viennese Opera house] has absorbed good music and has been impregnated with the sound of our musicians from the Philharmonic and the voices of our singers. These are mysterious molecular changes, which until now have only been observed in the wood violins are made of… Halls in which only brass bands have played will always have poor acoustics. And the soul of the material is so sensitive that you only have to let a military band blast away in the Bösendorfer-Saal for eight days and its celebrated acoustics will have gone to the devil. (Adolf Loos, 108–109)

O argumento animista de Loos segue de perto as object-tales, que foram um subgénero da ficção iniciado por Charles Gildon, em The Golden Spy, no séc XVIII; são autobiografias de objectos, speaking objects, e criaturas que exploram duas preocupações dominantes desse século: as metamorfoses entre humanos e não-humanos, onde  a identidade individual se estende para além dos seus limites, e a simpatia para com os sentimentos das diferentes criaturas, que podem ser expressados e partilhados.

A cidade, definida pelos movimentos e vibrações geradas por um excesso de energia que forma um campo acústico, está aberta a esta espécie de cartografia dos elementos, onde cada componente tem uma vibração, uma «voz» própria.  Em «The Sound-Sweep», de 1969, J.G.Ballard descreve um futuro alternativo onde este excesso de energia acústica ambiental do passado sonoro é uma presença constante, onde milhares de vozes e sons são gravadas pelos materiais e estruturas da cidade, resistindo ao desaparecimento; «noise, noise, noise — the greatest single disease-vector of civilization... the whole world's rotting with it.» A distopia descrita no conto de Ballard é um paradigma temporal, na qual a informação auditiva nunca é perdida e se encontra encrustada nos materiais circundantes. O ofício de Mangon, o sound-sweeper, personagem do conto cuja sensibilidade auditiva lhe proporciona a delicada tarefa de varrer selectivamente e drenar todos os ruídos, torna-se imprescindível; os sons quotidianos, ao recusarem ir embora e ser efémeros, vivem nos materiais arquitectónicos, que se transformaram em fitas magnéticas, ouvidos e memórias infalíveis que disseminam a acumulação de ruídos na acústica ambiental. Mangon, munido do sonovac, um aparelho que tem a tarefa de remover as fontes sonoras indesejadas, tem a responsabilidade da auscultação da arquitectura dos espaços:

Even the most conscientious sound-sweep was limited by his skill, and Mangon, with his auditory super-sensitivity, was greatly in demand for his ability to sweep selectively, draining from the walls of the Oratory all extraneous and discordant noises — coughing, crying, the clatter of coins and mumble of prayer. (Ballard, 442)

O ofício de Mangon é um caso particular de streetwalker em busca de um novo paradigma auditivo, em que a actividade de remoção de detritos sonoros que tendem a agarrar-se à vida através dos materiais arquitectónicos, ofuscando e moldando todo o espaço habitável com ruído, é, no fundo, a construção de uma ecologia sonora.

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5. Francis Alÿs, The Doppelganger (Mexico City) 1999present (detail).

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6. Francis Alÿs, Reel/Unreel, Kabul, Afghanistan 2011.

As long as I am walking
As long as I am walking, I am not choosing
As long as I am walking, I am not smoking
As long as I am walking, I am not losing
As long as I am walking, I am not making
As long as I am walking, I am not knowing
As long as I am walking, I am not falling
As long as I am walking, I am not painting
As long as I am walking, I am not hiding
As long as I am walking, I am not counting
As long as I am walking, I am not adding
As long as I am walking, I am not crying
As long as I am walking, I am not asking
As long as I am walking, I am not believing
As long as I am walking, I am not talking
As long as I am walking, I am not drinking
As long as I am walking, I am not closing
As long as I am walking, I am not stealing
As long as I am walking, I am not mocking
As long as I am walking, I am not facing
As long as I am walking, I am not crossing
As long as I am walking, I am not changing
As long as I am walking,
As long as I am walking,
As long as I am walking,
As long as I am walking, I will not repeat
As long as I am walking, I will not remember

7. Francis Alÿs, 2010.

O Olho Prevenido #6

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