Desde os tempos Romanos que a organização da experiência humana assenta na divisão entre pessoas e objectos. A distinção assumiu-se como o chão de vários tipos de pensamento; económico, filosófico, político. Este corte definiu duas áreas perante as quais normalmente assumimos dois papéis: estamos do lado das pessoas (anti-fetichismo) ou estamos do lado dos objectos (fetichismo). O dualismo está assente no medo que o poder do objecto tem sobre as pessoas e conduz à acusação de fetichismo. No pensamento Ocidental a apropriação do objecto e a sua redução a um papel subserviente está ligada à perda de poder do sujeito, à crença de que o objecto representa um universo natural de mercadorias. A crítica do objecto confunde-se assim com a crítica da mercadoria.

Os objectos foram, até recentemente, considerados de importância secundária, meras decorações sociais. A antropologia da ciência e da técnica veio introduzir os não-humanos, os objectos, como actores de pleno direito, fazendo-os sair do seu papel de bonecos manipuláveis. Estudos antropológicos revelam-nos que existiram, e existem, sociedades onde as pessoas e as coisas formam parte de um mesmo horizonte, longe da racionalidade moderna que fez do objecto unicamente um espaço de representação - o objecto é aquilo que está fora do sujeito, diante dele. Compreender que toda a interacção social implica objectos é perceber o poder que eles têm em determinar o mundo. O seu poder de acção faz-nos sair do dualismo sujeito/objecto: «Cet autre radicalement différent qu´est l´object pose, par sa seule présence, une enigme au sujet» (Bernard Blandin, 55).

Possuir um património traduz-se não só em possuir coisas como em exercer poder sobre aqueles que têm menos posses e são forçados a colocarem-se nas mãos de outros. Aquilo que seria uma oposição estável — entre pessoas e coisas — deriva para uma ambiguidade entre estes dois estatutos. A classificação das pessoas como coisas revela uma condição possível e permanente que balança entre a autonomia e a escravatura. A propriedade sobre as coisas associa-se, por uma troca de papéis, à propriedade sobre as pessoas. Algumas delas são reduzidas ao estatuto de coisas, são consideradas como coisas com voz, «speaking tools».

But the slave usually remains a potential commodity: he or she continues to have a potential exchange value that may be realized by resale. In many societies, this was also true of the "free", who were subject to sale under certain defined circumstances. To the extent that in such societies all persons possessed an exchange value and were commoditizable, commoditization in them was clearly not culturally confined to the world of things. (Igor Kopytoff, 65)

 

In order for something to become unequivocally one’s own, it had to have been torn from nature or from other people... Of course, a legally regulated transfer of property did exist. But the first property was always created by occupying an empty space or by taking possession of an object that had no owner. (Roberto Esposito, 22)

Se as pessoas podem ser consideradas objectos então os objectos também podem ser considerados pessoas. É um paradoxo que a ordem legal que separa as coisas das pessoas seja também aquela que legaliza o rebatimento de uma sobre a condição da outra, um dispositivo de despersonalização que usualmente serve para aumentar o poder de quem o exerce; o direito de usar e abusar,

The concept of person, which in principle should lead to the universalization of inalienable rights, has long been employed to exclude some types of humans from the benefits granted to others. It has been used to make them into person-things to be used and abused...Suffice to say that the institution of slavery, which appears to us today as having faded into the obscurity of a remote past, was only abolished less than two centuries ago—only to reappear, as we well know, in other forms of de facto slavery that are still widespread. (Roberto Esposito, 32)

A despersonalização está muitas vezes associada à ocupação, por quem está privado da propriedade privada, de espaços negligenciados, de espaços residuais do urbano. Este resíduo é semelhante a um resto, a uma sujidade; é aquilo que está fora do lugar, ou mesmo sem lugar para ocupar. Estes restos, desperdícios, detritos, podem ser objectos, espaços, pessoas, animais. Depois de um tempo de uso, os desperdícios são deslocados, são abandonados. Escapando a processos de renovação, representam aquilo que é conduzido às fronteiras de si próprio e da sociedade com a finalidade de esta preservar a sua ordem. No entanto, a norma que rege o equilíbrio entre a sociedade e aquilo que é relegado para fora dela pode a todo o momento ser substituída pela possibilidade inversa. Tudo o que perdeu a utilidade, o valor, tudo o que se tornou impuro, perturba o sistema. A energia do que é relegado para fora da sociedade é uma ameaça ao equilíbrio social e por isso esta norma é sempre instável. Há uma relação de exclusão entre o que está no lugar próprio (limpo) e o fora de lugar (sujo), mas mais sob a forma de ambiguidade do que de uma relação de contradição.

Mary Douglas distingue os gestos de inclusão e exclusão que decorrem a partir de uma qualquer ordem imposta. A primeira fase decorre do apagamento violento daquilo que é rejeitado, posto à margem por já não ter lugar, mas que ainda tem uma identidade:

This is the stage at which they are dangerous; their half-identity still clings to them and the clarity of the scene in which they obtrude is impaired by their presence. (Mary Douglas, 21)

A fase seguinte passa por um longo processo de dissolução: 

...pulverizing, dissolving and rotting awaits any physical things that have been recognized as dirt. In the end, all identity is gone. The origin of the various bits and pieces is lost and they have entered into the mass of common rubbish. (Mary Douglas, 21)

Entre estas duas fases existe uma componente memorial dos desperdícios que ainda não se transformaram em amálgama nem foram apagados da memória. Achando-se neste lugar ambíguo onde deixam de ser, mas onde ainda não desapareceram de todo, eles respiram, pulsam e persistem; têm uma energia errante, própria de quem, ou da coisa, que está fora de lugar. É um interstício que permanece aberto, pois o desperdício e a pureza, o sujo e o limpo, mantêm uma dinâmica que pode inverter os usos e valores do sistema dominante. A passagem do limpo ao sujo e vice-versa faz-se através do uso e do trabalho. Não há aqui uma relação de mera negação, podemos antes concebê-la como uma instância na qual o sistema, depois das fases de rejeição e exclusão, estabelece uma ligação diferente com aquilo que rejeita. Tornados lixo, os objectos não são necessariamente expulsos do sistema. Existe um potencial no desperdício; a impureza, reciclada, pode ser reintroduzida no sistema, levando-nos a concluir, com Michael Thompson, que a categoria mais adequada para estudarmos a noção de valor na sociedade é a do lixo.

A dramatização do artefacto encontrado faz parte daquilo que deu origem, falando do teatro de Tadeusz Kantor, à definição do «bio-objecto». Ele não é tanto um acessório da acção, mas um companheiro das personagens. De um teatro com objectos passamos a um teatro de objectos, sem eles a comunicação entre as personagens seria cortada:

Ce ne sont pas des accessoires mais des ‘bio-objects’ qui commencent à jouer avec les organismes vivants que sont les acteurs...sans eux les comédiens n’existeraient pas; la femme qui lave la vaisselle se déplace toujours avec son bac en aluminium, le souteneur a besoin de sa table pour exister, c’est à dire pour jouer aux cartes, le mourant ne peut agoniser sans son lit, et l’enfant ne se promène qu’avec son chariot. (Tadeusz Kantor, 9)

Tadeusz Kantor, Edgar Kałpor. Homem com malas, 1967.

Tadeusz Kantor, Edgar Kałpor. Homem com malas, 1967.

Os objectos têm um poder de acção que escapa quase sempre à nossa compreensão; são entidades que têm uma biografia, atravessadas por tensões e estados múltiplos. Uma vez eclipsada a noção de utilidade, uma outra vida começa para os objectos. Abandonados, o seu estado de indecisão entre ser e não-ser atrai um movimento ausente do peso do mundo:

Where does the thing come from and who made it? What has been its career so far, and what do people consider to be an ideal career for such things? What are the recognized "ages" or periods in the thing's "life," and what are the cultural markers for them? How does the thing's use change with its age, and what happens to it when it reaches the end of its usefulness?... We have similar biographical expectations of things. To us, a biography of a painting by Renoir that ends up in an incinerator is as tragic, in its way, as the biography of a person who ends up murdered. That is obvious. (Igor Kopytoff, 66)

Tal como as pessoas, os objectos podem ser singularizados. A ideia de os tratar como seres com etapas, de segui-los nas significações inscritas nas suas formas e usos confere-lhes um poder de acção. O observar da sua trajectória, o calcular a sua esperança de vida, coloca-os num campo de acção semelhante ao do humano. A sua cronologia e o modo como passam de mão em mão permite descobrir detalhes nas suas vidas e nas vidas de quem os usa, que de outro modo permaneceriam obscuros. Um objecto deve ser olhado como uma entidade cultural, dotada de sentidos específicos e rodeado de inúmeros eventos.

Nam June Paik. Primitive Music, 1961.

Nam June Paik. Primitive Music, 1961.

Tadeusz Kantor. Judgment Day Trumpet, 1979.

Tadeusz Kantor. Judgment Day Trumpet, 1979.

Os detalhes biográficos dos objectos revelam uma massa enorme de julgamentos políticos, estéticos e históricos, que podem ser redefinidos quando são adoptados por diferentes culturas. O destino do que é descartado pelos humanos pode depender do acto de selecção de alguém que salva de um monte de lixo um objecto condenado à destruição. «Gambiarra», no sentido de improviso, é uma expressão que revela um caso particular de apropriação, adaptação e inventividade de quem soluciona um problema de maneira extemporânea e caracteriza-se pela precariedade, pelo ilícito, pelo efémero, provisório e vernacular. Acima de tudo revela um modo de trabalhar os objectos e a tecnologia, que age sobre a forma, corta-a, desmantela-a e reagrupa-a. O seu princípio é o de «something can always be used for something», culminando numa solução que rejeita a forma-função ou planos previamente concebidos. Longe de serem relíquias do passado estes objectos são constituintes do presente.

William Kentridge. Untitled (Bicycle Wheel Sculpture), 2013.

William Kentridge. Untitled (Bicycle Wheel Sculpture), 2013.

Appadurai, Arjun. The Social Life of Things: Commodities in Cultural Perspective, Cambridge University Press, 1986; ver Igor Kopytoff, “The Cultural Biography of Things.”

Blandin, Bernard. La Constrution du Social par les Objects, PUF, 2002.

Douglas, Mary. Purity and Danger: An Analysis of Concepts of Pollution and Taboo, Nova Iorque: Pelican, 1970.

Esposito, Roberto. Persons and Things, Polity Press, 2015.

Philippe du Vignal e Tadeusz Kantor. «Qu´ils crêvent, les artistes! Interview», Art Press nº95, 1989.

Obici, Giuliano. «Revisiting the Musical Instrument from a Bricolage Perspective», Leonardo Music Journal, Vol. 27, pp. 87–92, 2017.

Thompson, Michael. Rubbish Theory: The Creation and Destruction of Value, Oxford University Press, 1979.

 

 

 

O olho prevenido #7

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